Há já alguns anos, o Rio de Janeiro, no Brasil, recebeu uma daquelas Cow Parades que também passaram por Portugal, e na Avenida Atlântica, junto à Praia de Copacabana, apareceu, sentada ao lado da estátua do poeta Carlos Drummond de Andrade, a Vaca Drummond: de pata traseira traçada e a ler um livro que segurava com as patas dianteiras, rapidamente os brasileiros começaram a chamá-la de Vaca Leitora. Vem esta lembrança a propósito do novo livro para a infância de Gabriela Ruivo Trindade (vencedora do Prémio LeYa em 2013 com o romance Uma Outra Voz), A Vaca Leitora, nascido de uma outra história: a do seu filho, que um dia quis saber o significado de “leitura” e, sem estar convencido com a explicação, notou que “leitura parece que vem de leite”, e, mais tarde, lamentou nunca ter visto uma “vaca leitora”.
Eis, então, aqui nestas páginas ilustradas com mestria por Rute Reimão a vaca Felisberta: uma vaca branca com manchas pretas com o focinho preto e branco dividido ao meio. Como todas as vacas, não percebia nada de política, mas esta estava sempre muito entediada com a monotonia de uma vida inteira a ruminar ervas e cardos insípidos – isto apesar de viver na quinta do senhor Manel e da senhora Lucília, onde todos eram bem tratados e felizes. Só Felisberta, “enjoada e melancólica”, achava as coisas sempre iguais e sonhava com novidades e dias diferentes. “É que, para uma vaca, Felisberta pensava demais. Era esse o seu maior problema. Por isso nunca se contentava. Quem pensa demais acaba por ser traído pela imaginação”, escreve Gabriela Ruivo Trindade. Valeram-lhe os jornais deixados por ali pelo senhor Manel, “com as folhas dobradas, confundindo-se uma notícia com a outra, misturando-se as palavras até já nada fazer sentido”, e que Felisberta abocanhou, deliciando-se. “Ruminar palavras, porém, é algo extraordinário. Primeiro as letras dividem-se em bocadinhos e pedacinhos cada vez mais pequenos. Depois, misturam-se os bocadinhos de umas com os pedacinhos de outras, até se formar uma salada de símbolos novinhos em folha. E assim nascem novas palavras.” Tornou-se Felisberta uma vaca gourmande, letrada, leiteira e leitora, pois. “E nunca mais se queixou do sabor enfadonho do pasto, pois o jornal era sempre uma novidade.”
Uma história sobre o gosto pela leitura, a vontade de conhecer outros mundos e a importância do sonho e da imaginação, que Rute Reimão ilustra, espalhando pelas páginas e pelas suas ilustrações pedaços de jornais, de rótulos, de embalagens e de outros papéis, misturando em colagens cores e padrões com traços a carvão. Agora imagine-se como será o leite de uma vaca leiteira feita vaca leitora… E já garantia Drummond de Andrade no seu poema Lembrete: “Se procurar bem você acaba encontrando. Não a explicação (duvidosa) da vida, mas a poesia (inexplicável) da vida.” Que o diga Felisberta.
A Vaca Leitora > De Gabriela Ruivo Trindade e Rute Reimão > D. Quixote > 48 págs. > €13,95