Pode parecer estranho, mas senti-me em casa». É com um brilhozinho nos olhos, sorriso tímido e cabelo de madeixas verdes aos ombros que Ana Ester, 17 anos, lembra o seu primeiro dia de aulas no Coliseu Porto. A frequentar a mesma turma, o terceiro e último ano do curso de dança, Iúri Costa, 17 anos, sabe que «este sítio vai deixar marcas». Das boas, acredita. «Estar perto, ouvir os ensaios de artistas é incrível», atira, entusiasmada, Ângela Machado, 18 anos, que assume ter trocado o liceu (onde, segundo diz, «quem não se enquadra no padrão sofre») pelo teatro, sem hesitar. Desengane-se quem pensa apenas «vir para pisar o palco», pois, no Balleteatro, «aprende-se a olhar o outro, a respeitar a diferença», notam todos. Antecipando o encerramento do Edifício AXA, onde esteve nos últimos dois anos, a escola transferiu-se há 15 dias para o Coliseu Porto e aqui deverá permanecer nos próximos cinco anos.
Ao final da manhã, seja à saída de uma aula de movimento ou de improvisação, passeiam-se rostos afogueados e roupas leves a denunciar o esforço e o empenho emprestado às aulas. Entre sons sem palavras e corpos em constante oscilação, transpira-se muito. Sem perder o sorriso ou a conversa, que correm soltos pelas galerias, pelas escadas, por todo o lado… Nos dias em que não há espetáculo, o silêncio deixou de morar ali. O burburinho, os passos que se adivinham e os corpos à espreita a cada bater de porta podem até ser invisíveis num passeio rápido pela Rua Passos Manuel. No entanto, para os mais atentos, será difícil o movimento não ser tema de conversa num almoço à janela do Maus Hábitos ou na esplanada do The Traveller Caffé. A compra de bilhetes para os próximos espetáculos não dariam para tanto entra e sai. Todos os dias, de segunda a sexta, com Ângela, Ester e Iúri, entram no Coliseu mais 147 alunos da escola profissional do Balleteatro, dos cursos de dança e teatro, de nível IV, equivalente ao 12.º ano. Isto para além do público assíduo do serviço educativo e dos estudantes de formações contínuas, workshops, cursos intensivos e Balleteatrinho. Muita gente, portanto, a dar outra vida ao Coliseu.
No Natal há circo
Num intervalo, entre aulas, Né Barros, da direção do Balleteatro, senta-se nas escadas, à porta da Sala 2, para confidenciar que este sítio «é muito apelativo em termos de trabalho» pois permite uma certa contaminação entre projetos. O facto de agora serem uma estrutura residente, sublinha, «dá outra dimensão» ao Balleteatro e convida a explorar outros lugares do Coliseu, para lá da grande sala de espetáculos. A ocupação pode passar pelos camarins, onde cabem dez pessoas, pelo átrio, pelas galerias. Sem perder a componente nómada, esta nova casa da companhia «vai dar estabilidade» e permitir também «o ramificar» por outros lugares, de «intervenção com a comunidade», defende. Mudam os lugares, «a inquietação permanece». Aguarda-se, portanto, com expectativa, as criações que se seguem.
Ao longo dos últimos 32 anos de histórias e coreografias, muitos foram os artistas a dar os primeiros passos em cena no Balleteatro que, desde a criação, sempre esteve ligado às artes performativas. Entre eles, Dalila Carmo, Joclécio Azevedo, Igor Gandra e Victor Hugo Pontes. É também com nomes facilmente reconhecíveis que, mesmo sem ser residente, a música se fez parte fundamental da abertura do Coliseu à cidade. «É uma vida nova com provas dadas e evidências que o confirmam». Eduardo Paz Barroso, presidente da direção do Coliseu Porto, mostrou ao que vinha com a Festa Lotação Ilimitada Coliseu (FLIC), em abril passado. Um ano depois da entrada em funções, ainda que se assista a um aumento de 56% do valor das receitas, a verdade é que os números continuam negativos.
Contas à parte, o protagonismo de palco pela memória de ciclos vividos ao longos dos últimos 74 anos mantém-se, mas «a cidade e a região mudaram, falam outra linguagem». Segundo Eduardo Paz Barroso, o Coliseu não podia continuar fechado sobre si próprio, preso à rotina do aluguer. Com a nova direção, que tomou posse em setembro de 2014, a sala deixou de ser apenas paragem ocasional, para ver espetáculos, abrindo a um conjunto de possibilidades, habitadas por novos públicos. Sem reservas. Mantendo o acolhimento e a venda de bilhetes como componente fundamental da agenda do Coliseu, crescem parcerias e coproduções. Entre estas, figuram ícones como ópera e circo que, sem se desligar da tradição, se tornam mais contemporâneos. Como sempre acontece, em dezembro, o circo vai instalar-se no Coliseu, mas sem animais em jaula. O maior espetáculo do mundo chega com números de equilibrismo em bambus chineses, acrobacias em aros, malabarismos com taças de água, além da trupe de trapezistas The Flying Aces, os voos com tecidos e fitas de Nicole Birgio e Shanonon Mackenna do Cirque du Soleil e os embaixadores do riso da companhia espanhola Los Quixotes. Assumindo, por outro lado, uma vertente mais corporativa, o Coliseu abre ainda portas a congressos, jantares de empresas e visitas guiadas.
A vez da música
Para levar novos públicos «à praça coberta» da cidade, também se alargou a agenda a outras sonoridades. E, depois do encontro improvável de bandas na FLIC, numa noite de ocupação pacífica da Sala 2 e do Bar, chegou ao palco principal o ciclo Concertos Conversa Coliseu (CCC), em parceria com a Escola Superior de Música, Artes e Espetáculo (ESMAE), do Porto. A ideia é, resume António Aguiar, o presidente da ESMAE, ocupar a sala toda numa infiltração de concertos temática, criando, ao mesmo tempo, confrontos estéticos. Apesar do percurso já muito heterogéneo traçado entre a Orquestra Sinfónica, a Big Band e a Orquestra Barroca da escola, o objetivo continua a ser «variar e crescer», num registo de performance, de forma nada convencional. Numa escola onde há mais de 60 grupos de câmara, num universo de 700 alunos, assume particular relevância ter um palco para fazer os estudantes sair da zona de conforto, de apresentações entre pares. Hristo Goleminov, 18 anos, frequenta o 4.º ano de saxofone e, no último CCC, interpretou Crossfade, de Carlos Azevedo. Sentiu-se, conta, «parte do Porto e da região».
Neste ciclo, assumido como um real piscar de olhos à comunidade, o professor/comentador Mário Azevedo abandona a análise da obra e inaugura outras perspetivas. Sendo «ouvinte privilegiado», segreda ao ouvido da plateia algumas «pequenas verdades de coisas profundamente ilusórias», explica. Em intervenções curtas e incisivas, sem provocar ruído. Para quem faltou às anteriores, o CCC oferece mais duas conversas educativas. Ainda em outubro, com o Live Jazz@Coliseum! da Big Band, sob direção de Telmo Marques (ver caixa), Mário Azevedo vai continuar a oferecer «paixão e arrebatamento» num cardápio de proximidade com os compositores, a pensar num público de ouvido «pouco experimentado». No último concerto do ano, a 15 de novembro, a Orquestra Barroca da ESMAE partilha o palco com a Companhia de Dança Kale.
Nem só de bilhete na mão se entra no Coliseu. Uma vez por mês, na última terça-feira, as jam sessions levam alunos da ESMAE a tomar conta do bar, para noites mais ou menos agitadas, em ligações improvisadas. Abertas a todos, sempre de entrada livre, as sessões começam às 22 horas, com os estudantes em palco. Mais tarde, o convite estende-se a qualquer músico presente na sala, para dar uma de «jazz», em palco. É uma casa, com certeza, de espetáculos, de todos, para todos.