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A vida de Amável e Isolete – Primeiro capítulo
Lisboa, 1973. Isolete sai do supermercado Cabaz, no Conde Redondo. Além do saco das compras, traz pela mão duas crianças da família que a recebera, há poucos meses, vinda da província para ser criada de servir na capital. “Ó menina”, grita-lhe uma mulher de tez morena, trança comprida e saia rodada. Isolete pára e, reticente num primeiro instante, acaba por aceder e dar os sete escudos e quinhentos que traz no bolso para que a cigana lhe leia a mão. “Vai encontrar um rapaz de olhos verdes e russo (loiro) na festa da aldeia, vai-se apaixonar, casar e ser muito feliz. Vai ser trabalhadeira e corajosa. Mas não rica”.
Nos finais dos anos 1960, Amável e Isolete são dois jovens para quem o mundo é ainda pouco mais do que as suas pequenas aldeias. A algum tempo de completarem 16 anos e de partirem – ela para Lisboa, ele para França – sabem já que a vida pode ser agreste como os invernos de Trás-os-Montes, onde vivem.
Com 14 anos, ele vê a mãe ir com o padrasto e o irmão mais velho para França. Um ano mais tarde, não conformado em ficar com os avós, faz-se à vida: passa a fronteira, ao lado da aldeia onde vive, Mairos, no concelho de Chaves, e entrega-se ao contrabando. De dia guarda as vacas do patrão espanhol. À noite, acorda com ele a bater-lhe à porta: são horas de fazer a rota do contrabando e, calcorreando lameiros por vezes gelados, fazer chegar meias, pão de trigo, alpercatas, polvo congelado e até rebanhos de mil cabeças a Portugal.
Enquanto Amável espera ansioso pelos 16 anos para ter idade para trabalhar em França, junto da família, Isolete passa o tempo numa pequena aldeia de Mirandela. É uma de sete irmãos, filhos de um casal de lavradores que trabalham de sol a sol para por comida na mesa e pagar as terras que arrendam, enquanto sonham com um futuro melhor para a prole.
Amável e Isolete vivem a menos de cinquenta quilómetros de distância um do outro, mas o destino de ambos só há de cruzar-se anos mais tarde, num Verão quente, quando ela regressa de Lisboa para passar férias na terra natal e ele vem de França com o irmão, passar uns dias na aldeia da cunhada.
A menina dança?
É uma tarde soalheira de Agosto do ano de 1973. Isolete ajuda a carregar um andor na procissão da sua terra, Vale Gouvinhas, quando ouve uma voz perguntar-lhe: “Precisa de ajuda, menina?”. Recatada, responde um “Não, obrigada”. Mas ele não se fica: “É de cá?”. “Que lhe interessa?”, diz prontamente Isolete, revelando um caráter determinado.
Com o rapaz louro, de olhos verdes, voltará a cruzar-se depois de o sol se por, no baile da aldeia que a Brigada Vítor Jara celebrizou com o tema “Marião”. Mas ela, vaidosa na sua saia “sombreiro”, feita de sete tecidos diferentes, nem reparará nos atributos físicos do pretendente, que vem convidá-la para dançar.
Amável veste de uma forma que ela nunca vira: traz umas calças à boca-de-sino que abrem no fundo e deixam ver um tecido vermelho, o peito escondido por uma bonita camisa de seda, sapatos com um ligeiro tacão. Os cabelos lisos estão encaracolados, graças a uma “minivague”, moda numa França que vivia ainda a onda do Maio de 68.
Não dançariam juntos nesse dia em que se viram pela primeira vez. Mas na tarde seguinte, Amável já tinha descoberto onde era a casa da amada e passaria inúmeras vezes em frente dela, montado numa mota, a tentar impressioná-la. Numa das voltas, acaso ou não, a motorizada avariou-se mesmo em frente à porta de Isolete. O pai da menina, cujo coração está prestes a bater acelerado, sai para ajudá-lo. Quando volta a casa, a mulher comenta-lhe, com a desconfiança certeira do instinto materno: “Essa mota tem andado aqui a roncar muito”. Isolete disfarça e não lhe passa pela cabeça ir à procura do rapaz que não se intimidara pelo “não” ouvido na tarde anterior.
Mas o destino parece querer juntá-los. Passados minutos, o irmão mais velho, com quem tinha grande cumplicidade, vem buscar Isolete e leva-a à igreja da terra: “Está ali um rapaz que diz estar à espera de uma menina que mora em Lisboa. Só podes ser tu”. Isolete guarda, até hoje, esse momento gravado na cabeça. Vê-o à sua espera no adro, junto à pia de pedra que ainda hoje lá está.
Nessa noite, quando ela sai de casa com as calças floridas, que trouxera de Lisboa – “Foi a primeira vez que pus calças, ninguém as usava na altura e foi um escândalo” – já lhe tinha vindo à cabeça a previsão da guitana. “Será ele?”, pensou. O nome, como a cigana lhe tinha dito na altura começava, de facto, por um “A”…
Nessa noite bailariam juntos no arraial, com o pai dela de olho neles, a ver se a filha respeitava o que sempre lhe dissera: “No meio do rapaz e da rapariga tem de haver um fardo de palha”. E foi assim, ao som de A namorada que sonhei, de Nilton César, e d’O Calhambeque, de Roberto Carlos, dançando a uma distância que às vezes era de apenas “meio fardo”, que ela teve a certeza da profecia certeira.
Os “queridos” meses de Agosto
No Verão seguinte, quando se voltaram a encontrar, já o País vivia em liberdade e já Isolete e Amável eram namorados. O mês passou-se em longas horas de namoro à porta de casa, vigiadas da varanda pelo pai dela, que atirava uma maçaroca se via que a proximidade era exagerada.
Amável contava a Isolete o quão dura fora a sua chegada a França. Até então, o sítio maior que conhecia era Chaves. Paris era um mundo grande demais para caber na sua imaginação. Em vez de burros, nas ruas passavam Peugeots e Fords Capri… Fazia Isolete sorrir com muitas histórias, como a do dia em que estava sentado na paragem de autocarro e um hippie lhe veio pedir droga. Mas não escondia as “condições péssimas” que encontrara ao chegar. Amável dividia um quarto com a mãe e o padrasto. Ele trabalhava de noite, dez horas a limpar três hipermercados Monoprix. Podia, assim, descansar de dia na modesta cama onde o casal dormia de noite.
Depois desse segundo agosto, Amável enviou uma carta ao sogro pedindo a mão da filha em casamento. Isolete continuava em Lisboa e foi lá que recebeu o telefonema da sogra a pedir que fosse ter com eles a França, onde casariam, para Amável não correr o risco de ir para o Ultramar. A menina de Vale Gouvinhas não queria dar semelhante desgosto aos pais. Afinal, “sair de casa sem casar era uma vergonha”. Decidiram então casar por procuração. Mas no registo civil de Chaves Amável estava registado como mulher… Talvez tenham perguntado à mãe de que sexo era a criança e ela, sem entender, respondeu ao calha.
O casamento só viria a realizar-se na aldeia de Isolete, onde se tinham conhecido, a 4 de Setembro de 1976, com o vestido branco tantas vezes por ela sonhado. Trocariam juras de amor eterno na capela da Senhora do Rosário, que afinal assistira ao primeiro encontro dos dois. Partiriam para França logo de seguida.
Aos 20 anos, de minissaia vestida, cabelos pelo meio das costas, Isolete não estava preparada para o que iria encontrar. O quarto, num prédio parisiense para onde Amável se tinha mudado entretanto, era mínimo. Tinha uma bacia para lavar a cara, um guarda-fatos e, para por os lençóis e a colcha branca do enxoval, apenas um sofá-cama. A sanita era no corredor, partilhada com os restantes habitantes do andar, e a cozinha nem água tinha.
Isolete passou o primeiro dia a chorar. Quando, já escuro, abriu a janela do quarto e viu ao longe uma luz, pensou ver a Senhora do Rosário, a Santa que costumava ver iluminada na capela da sua aldeia.