“Deitámos os separadores centrais abaixo, para socorrermos os acidentados dos dois lados da estrada. Não tinha havido um, mas sim dois acidentes, no nó de Talhadas. Dizia-se que os condutores do segundo veículo se tinham distraído a ver o primeiro sinistro e causado novo choque, mas não podia ser: as viaturas nunca chegaram a cruzar-se. Foi uma coincidência. Uma terrível coincidência.
Assim que saí da viatura de emergência, informei a equipa no terreno: “Tenho indicações para coordenar a evacuação secundária.” Até àquela altura, chefiava um médico. Mais velho, homem e militar. Ninguém me conhecia. E era mulher. Respondeu-me que já havia coordenador.
Respirei fundo e fui recolher informação sobre as vítimas. Entrei em todas as ambulâncias, verifiquei todos os carros.
Voltei para dizer ao comandante que ele não tinha percebido bem a minha mensagem, mas não era altura para estarmos a discutir. Coordenei toda a evacuação.
Antes de chegar a Talhadas, recolhi informação. Um dos médicos a quem telefonei disse-me: “Não consigo descrever o que estou a ver.” Havia mortos, feridos, carbonizados. Tudo. Já tinha trabalhado em muitos acidentes, mas nenhum como este. Um emaranhado de carros, colados uns aos outros. Não se distinguiam.
Do outro lado da estrada, estava um corpo tapado por uma manta isotérmica.
Levantei-a. Cobria uma criança de 7 anos a idade do meu filho. Tive de parar uns segundos. Crianças é o pior. Uma vez, depois da morte súbita de um bebé de 18 meses, vomitei e disse a toda a gente que se era para vê-las morrer não contassem mais comigo. Com o tempo aprendi a não me ligar tanto. Até é intrusivo para as vítimas. Mas, no caso da A25, houve profissionais a precisarem de apoio psicológico. Lembro-me de uma pessoa que andava à procura da família. Sabia em que carro vinham, mas não conseguia encontrá-los. Só percebemosporquê algum tempo depois. O condutor tinha-se afastado para ajudar outras vítimas e a viatura foi arrastada num novo choque em cadeia, até ficar compactada contra o camião.
Ainda guardo os registos originais do acidente na A25. Tive de mudar de folha várias vezes por causa da chuva. Estivemos lá sete horas e saímos a pingar. O telemóvel até se estragou com tanta água. Cheirava-me a queimado e sentia frio, mas só me dei conta no final da evacuação. Até aí, foi como estar dentro de um filme, a executar as manobras para as quais me treinaram.
Deveria ter entrado de férias nesse dia, mas, no regresso do turno, antes do acidente, passei pelo INEM para uma pequena reunião. Não contava demorar, por isso deixei o meu filho, na altura com 11 anos, a jogar no computador do meu gabinete.
Já estava no piso de baixo quando ouvi a chamada de emergência na A25. A diretora olhou para mim e eu disse logo: “Eu vou!” Esta paixão pelo INEM entranha-se. Parecemos horríveis, porque queremos ir quando os outros querem fugir.
Só na ambulância me lembrei que tinha deixado o meu filho nas instalações. A diretora levou-o para sua casa. Não foi a única vez que os miúdos sofreram com a minha profissão. No dia do acidente com um autocarro de hemofílicos, na A1, vinha com o meu outro filho no carro e fui a acelerar, com ele coladinho ao banco.
Entreguei-o a um funcionário: “Está aqui o meu filho e 20 euros. Ele ainda não tomou o pequeno-almoço.” Na A25, evitámos todas as mortes que podemos. Vim para a emergência e escolhi Medicina Interna porque gosto de ver resultados imediatos e de saber que fiz a diferença. É sempre mau. Sem nós seria pior.
Só parei quando fomos jantar, à 1 da manhã, numa tasca de Talhadas, ainda aberta por causa do acidente.
Tinham passado por lá quase todas as equipas de socorro. Ficámos ali a ver as nossas caras na televisão, que passava notícias sobre a tragédia, e finalmente a fumar um cigarro.