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Regras para uma noite bem dormida
Entrevista: “Uma criança que não dorme é uma família que não funciona”
“Já tentei tudo. O que faço agora: dou-lhe gotas para dormir?” Os lamentos e dúvidas das recém-chegadas ao universo da maternidade não é novo, nem o estado emocional alterado, “fora de si”, a lembrar o provérbio “deitar fora a água da banheira com o bebé lá dentro”. O furor com que mães e pais mergulham no mundo digital e partilham, em fóruns e sites, alegrias e dramas parentais e pedem ajuda, sem complexos, é que é inédito. Os tópicos de eleição são as dificuldades em adormecer e o acordar frequente, seguidos dos hábitos de sono. “Por exemplo, o bebé que só dorme nos quartos dos pais”, esclarece Cátia Costa, do site De Mãe para Mãe, que contabiliza mais de 400 mil visitas por mês. Na página Mãe-Me-Quer, a tabela do sono até aos 12 anos (Healthy Sleep Habits, Happy Child, de Mark Weissbluth) está no top das preferências. Os 22 meses de existência do projeto (a página no Facebook supera os ?38 500 gostos) levam a responsável do site, Elsa Lisboa, a afirmar que os pais “não se questionam tanto sobre as rotinas do sono nas idades pré-escolares”, embora nos comentários reconheçam o deitar tardio e a dificuldade em alterar rotinas, dada a “hora a que chegam a casa ao fim do dia”.
Lançado no verão passado, o livro 10 Dias para ensinar o Seu Filho a Dormir (A Esfera dos Livros, 166 pág., €15), vai já na 4.ª edição. A autora, Filipa Fernandes, não é médica, mas foi mãe há dois anos e passou pelas agruras da privação de sono e desacertos com os ritmos do bebé. Atingido o limite, encontrou a solução que precisava em poucos dias, graças a uma formação breve sobre treino do sono, em Inglaterra, aberta a profissionais e ao público. Criou uma página no Facebook – Sleepy Time – que, para surpresa sua, atingiu milhares de gostos e muitos pedidos de ajuda. Daí aos convites para escrever o livro e fazer palestras pelo País foi um passo.
Filipa Fernandes não se imaginava a fazer desta experiência um modo de vida, mas, aos 33 anos, dá consultas presenciais e por Skype. Tornou-se “terapeuta do sono” e traça um perfil das queixas mais comuns e do que elas escondem. “Dizem ?’o meu filho é muito enérgico’, ‘tem um feitio difícil’, ‘não gosta de dormir’; o problema é, quase sempre, a falta de tempo e de organização e os filhos percebem isso, querem ficar acordados, os pais permitem porque se sentem culpados.” Sem rotinas nem ajustes nas regras, o sono converte-se num bicho papão: “Tenta-se dar mama, colo, andar às voltas pela casa, como eu fazia… Funciona uma vez e depois não se sai disto.” Se a criança for saudável, estabelecer um programa personalizado de rotinas com a família traz bons resultados. “Os miúdos precisam de dormir e nós também”, lembra. Outro conselho, que se aplica à maioria das famílias que a procuram: “Jantar, banho, mimos e companhia durante meia hora valem mais do que as crianças andarem duas horas pela casa enquanto os adultos tentam fazer mil coisas.”
O ‘bê-á-bá’ que funciona
Educar os filhos para dormir pode ser mais difícil do que parece. Para Inês Almeida, 30 anos, e o marido, ambos enfermeiros hospitalares, o drama começou quando Francisco, com seis meses de vida, passou a dormir no seu quarto e a mãe voltou ao trabalho. O pequeno levava duas horas a pregar olho e acordava de hora a hora, sem embalo ou música que valesse. Inês Almeida ficou seriamente preocupada: “Ele via luz e queria brincar, eu estava grávida do nosso segundo filho e, exausta, não hesitei em pedir ajuda”, recorda. Uma consulta de aconselhamento bastou para repor a harmonia noturna nessa mesma semana. O segredo: deitá-lo mais cedo, às 20h30, sempre depois do banho, com pouca ou nenhuma luz no quarto e chuchas extra à mão no berço, para agarrar quando despertasse, a meio do sono. “Eu esperava um minuto ou dois e só lá ia se ele não adormecesse por si.” António, o novo membro da família, tem três meses e já está inserido nesta logística. Quando a enfermeira voltar ao trabalho, o casal não vai abrir mão da “organização escrupulosa”, graças à qual deve a calma que pensava perdida de vez.
Neuza Garção, 33 anos, formadora na área do empreendedorismo e a viver sozinha com a filha Beatriz, de dois anos, andava privada de sono quando recorreu a Filipa Fernandes. Reprogramar e consolidar rotinas levou-lhe três meses, mas o esforço, diz, valeu a pena. Alguns pormenores com importância no novo registo: iniciar e terminar o dia sempre à mesma hora, introduzir ajustes na amamentação, dar só um boneco de referência à filha, contar histórias, dar beijinhos e sair do quarto sem alimentar o colo. “Aprendi a dar um conforto controlado, usando frases como ‘a mãe está aqui’, ?’é hora de dormir’, até que a Beatriz começou a despertar para a vida e eu para a maternidade e para o meu tempo livre”, orgulha-se.
‘Está um monstro no meu quarto’
Os terrores noturnos e outras perturbações do sono infantil tendem a ampliar-se perante a falta de previsibilidade ambiental. ?O pediatra Mário Cordeiro, autor da obra Dormir Tranquilo (A Esfera dos Livros, 216 págs., €14,40), já na 4.ª edição, lembra que o registo de vida stressante desregula a hormona do sono, a melatonina, e receita-a em casos específicos, por ser segura e sem efeitos secundários. Porém, o cerne da questão está nas atitudes: “Há que aprender a dormir, e não ‘dormir a tiro’, para isso, como dizia um cliente americano do meu pai, ‘punha-se um dedo de whisky no último biberão'”. O especialista acha obsceno deixar um bebé desamparado a chorar, de porta fechada, como advogam alguns pediatras. Por outro lado, “ir para a cama dos pais é dar a sensação de que o caso é mesmo grave e que o quarto da criança é inseguro, sendo que, no dia seguinte, voltamos a coloca-la lá”.
Ele, que sofreu de insónias desde cedo e foi pai cinco vezes, reconhece como “custa levantar, tentar adormecer, manter a calma, mesmo que fazer bancos no hospital me tenha dado endurance”. No pior dos cenários, importa saber que tudo passa e, mesmo que uma criança que não dorme dê cabo da vida familiar, “é o nosso filho, inseguro, com medo – tentando manipular-nos, é certo, mas infeliz e carente”.
Jorge Apóstolo, investigador doutorado em desenvolvimento e intervenção psicológica, em Coimbra, e ligado à Fundação Brazelton, estudou uma amostra de 158 pais com filhos em idade pré-escolar e concluiu que os pais nem sempre adotam boas estratégias face aos despertares noturnos dos filhos e, sem quererem, estão a instalar hábitos desajustados. E explica porquê: “A criança de cinco anos que vai para a cama dos pais por não conseguir adormecer sozinha, dificilmente será autónoma noutras áreas da vida.” Sendo cada filho único, os pais devem ter em conta que um temperamento difícil requer “uma intervenção parental mais estruturada, com rituais e horários certos, senão agravam-se a vulnerabilidade e as birras”.
Autonomia segura
As noites em que a criança não dorme nem deixa os outros dormir são mais comuns nos dois primeiros anos de vida, quando ocorrem as fantasias e os medos da separação. Nesta altura, a criança precisa de sentir que consegue estar só, que os pais não desaparecem se ela ficar no quarto. E isto nem sempre acontece, esclarece o pediatra de desenvolvimento Filipe Glória Silva, do Hospital CUF Descobertas, em Lisboa. Nuns casos, as atitudes parentais potenciam a angústia infantil, “quando viajam em trabalho ou em férias sem se despedirem, ou as deixam no jardim de infância durante todo o dia, sem rituais seguros à noite”. Noutros, por excesso de protecionismo e falta de autoridade, “perguntando-lhes se querem ir para a cama, sem nunca os contrariar”. E, ainda, pelas suas próprias ansiedades: “Estão sempre a vigiar a cria, prolongando o uso de intercomunicadores além dos primeiros meses.”
O médico acaba de divulgar uma tese de doutoramento sobre hábitos de sono infantis, que lhe permitiu concluir que “em Portugal existe uma cultura de desvalorização do sono e tem-se a ideia, errada, de que as crianças ficam bem com o tempo de sono de um adulto”. Lembrando ainda que a associação americana de pediatria desaconselha o uso da televisão antes dos dois anos, Filipe Glória Silva sugere que sejam evitados estímulos na hora de dormir (soluções como o Baby TV são “pobres do ponto de vista relacional”) e que se priorizem horários e atividades, respeitando a tabela do sono (ver caixa).
Eu mal, tu mal
Nos últimos anos, esta urgência em eliminar sintomas, sem a calma necessária para compreender as causas, tem vindo a aumentar. “Doutor, resolva-me isto depressa, que estou sem forças” é o desabafo de quem chega, muitas vezes em fim de linha, às consultas de pedopsiquiatria do Hospital Dona Estefânia, em Lisboa, que atendem queixas de bebés até aos três anos de idade. Pedro Caldeira Silva, chefe de equipa da unidade de primeira infância, coordena há mais de uma década a consulta do bebé irritável e reconhece: os que têm manifestações difíceis, que vão além da capacidade de contenção dos pais, contribuem para a depressão parental. Porém, é mais comum ser a irritabilidade do bebé a sinalizar algo que não corre bem na família. “Cerca de 40% dos casos de perturbação comportamental do sono que nos chegam, segundo um estudo que fizemos, estavam associadas à depressão dos pais, sobretudo materna, tratando-se de situações emocionais prévias que se agravaram após o nascimento da criança.”
O médico não tem qualquer problema em recomendar o co sleeping – dormir na cama dos pais – se o bebé precisar, entre os três meses e os dois anos e meio, lembrando que as crianças crescidas é que não devem estar num espaço que é do casal, tal como não devem passar muito tempo entretidas passivamente, porque isso compromete a criatividade e o comportamento infantil durante a noite. “Vidas interessantes dão sonos tranquilos”, lembra. Experiências com escasso significado afetivo, emocionalmente insatisfatórias e pouco estimulantes, podem estar na base de uma perturbação do sono, “porque não se produz material para organizar durante o tempo em que se dorme”. Tal como a imprevisibilidade dos cuidados (mudanças de ama, creche, escola, turnos laborais), que exige muito desgaste e esforço de adaptação.
Em busca do sono perdido
A entrada dos filhos na adolescência impõe novos desafios, uma vez que os hábitos adquiridos na infância podem traduzir-se em novas competências ou em mais dificuldades. O Centro do Sono – CENC, em Lisboa, iniciou há seis anos o projeto Sono Escolas, que envolveu programas de intervenção com professores, pais e alunos, alicerçados em investigações. Numa delas, com uma amostra de 7 000 jovens, verificou-se que 72,4% dos inquiridos tinha menos de oito horas de sono durante a semana. Em média, “os adolescentes portugueses dormem menos hora e meia do que o recomendado (9 horas)”, afirma Teresa Rebelo Pinto, especialista do sono do CENC. “Nos fins de semana, a situação altera-se, procuram compensar as horas perdidas, mas a irregularidade de horários afeta o desenvolvimento e o rendimento”. Os resultados demonstraram ainda que os maus hábitos de sono pioram com a idade e se correlacionam com comportamentos de risco (propensão para consumos, uso de armas na escola e condutas agressivas). A despertar para esta realidade inquietante, as famílias começam a prestar mais atenção ao tema e podem fazê-lo na recém-lançada plataforma iSleep, um jornal online dedicado ao sono.
Pequenos ou grandes, os filhos esperam que os amem e orientem. Mário Cordeiro está convencido de que os pais só precisam de incentivo e avança algumas dicas: “Sejam frugais e autênticos. Usem o tempo a ajudar os vossos filhos a vencer medos e vulnerabilidades e a serem o que são. Não queiram ser perfeitos. Enganamo-nos, temos dúvidas, por cada passo que damos há mais 20 que temos de dar.” Por último, deixem a culpa à porta: “Vocês são os melhores pais que os vossos filhos poderiam ter. Digam-lhes que os amam e não tenham medo de ‘estragar as crianças’, mas sejam firmes na relação, estabelecendo limites.”