Para os cristãos, a questão não tem nada de surpreendente e é uma preocupação de todos os dias. Para os que não são crentes, trata-se apenas de um exercício de imaginação como outro qualquer. Mas saber o que Jesus Cristo acharia sobre o nosso mundo, tem pouco de adivinhação, depende, sobretudo, da interpretação que se fizer dos textos bíblicos, em particular dos Evangelhos. À esquerda, há quem ache que Ele sempre defendeu os mais desfavorecidos. À direita, há quem chame a atenção para o facto de Jesus também ter convivido com os ricos. E, no limite, é impossível responder à pergunta “O que diria Jesus se regressasse à Terra?” porque “Ele nunca saiu de cá”, como afirma o escritor António Lobo Antunes.
Possível é, contudo, olhar para o País à luz da Sua mensagem e, dos valores sociais vigentes à atual crise económico-financeira, fazer um esforço de compreensão no sentido de definir qual seria a Sua ideologia.
O que pensaria da maneira como a riqueza está distribuída? Como veria o modo como as famílias se compõem? Gostaria deste mundo de famas e celebridades? E sobre o poder do “poder financeiro”, o que diria? As respostas não são simples e podem desafiar as grelhas de leitura habituais.
Prosseguindo com o autor de Não É Meia Noite Quem Quer: “Sempre achei estranho que as pessoas rezem para pedir ajuda, porque a ajuda já está dada. Por exemplo, olhamos para este Governo e pensamos que é um erro da natureza, embora seja evidente que não o é. Aparentemente, Ele pôs aqui este primeiro-ministro e estes ministros para nos castigar, mas eu creio que é um bocadinho como as histórias de proveito e exemplo dos antigos: para nós aprendermos o que não se deve repetir.” Acrescentando que não concebe Deus sem humor, António Lobo Antunes diz ainda: “São muito curiosos os Seus caminhos. Deus serviu-se de Filipe La Féria para termos este primeiro-ministro. Deus teve de escolher entre duas desgraças. E preferiu que ele fosse primeiro-ministro a cantor”. Num ponto, o escritor está de acordo com o economista João César das Neves. Para este professor da Universidade Católica Portuguesa, “Jesus nunca deixou o mundo” e, por isso, a pergunta “O que diria Jesus se regressasse à Terra?” não é estranha a um católico que se interroga diariamente sobre ela. “Provavelmente iria chocar-nos como nos chocou quando esteve cá”, defende o ex-assessor de Cavaco Silva. “A sociedade presta atenção a certos oprimidos, mas às vezes os oprimidos estão num sítio no qual nós julgamos não estarem. Com esta mania que olhamos mais, vemos menos.” Sendo mais específico, César das Neves fala nas empresas, que “são sempre os maus da fita e no entanto são a base da economia”, e nos políticos, “alguns dos quais deram a sua vida pela política”. Sobre a atual crise económico-financeira, o professor de Economia tem uma perspetiva positiva e considera mesmo que a crise pode ajudar-nos a “olhar para o verdadeiro Bem”: “Estávamos habituados a ver o Bem no sucesso económico, no dinheiro e na fama. Esta crise é uma oportunidade de bondade, de caridade e de solidariedade para com os outros. Bendita crise que nos trouxe ao essencial. As pessoas voltaram a olhar para os seus vizinhos, para a sua paróquia, para os mecanismos sociais… A família tinha deixado de ser importante e, agora, está a voltar a ser o lugar de ajuda mútua”.
Para a deputada socialista Maria de Belém, a crise também pode conduzir a qualquer coisa de novo. “Momentos como estes são muito importantes”, avança a antiga ministra da Saúde de António Guterres, “as pessoas questionam o seu projeto de vida e põem em causa o valor queatribuem às coisas”. Responde à pergunta da VISÃO, mas antes sublinha que devemos atender à nossa própria interpretação da vida de Jesus: “Se ele regressasse à Terra, diria que os valores estão completamente alterados. Não são as pessoas que devem estar ao serviço da economia, é a economia que deve estar ao serviço das pessoas, o que aliás sempre foi a base da Doutrina Social da Igreja. As pessoas são criadas à imagem de Deus e, por isso, são transcendentes em relação a tudo o resto. A economia é instrumental”. Maria de Belém recorda, a propósito, os conceitos “universais” da solidariedade, da caridade, da justiça e do bem comum.
Segundo o Evangelho de Lucas, um judeu perguntou um dia a Jesus o que deveria fazer para possuir a vida eterna. Jesus replicou que, para além de cumprir os mandamentos, deveria vender tudo o que possuía e dar o dinheiro aos pobres. “É mais fácil um camelo passar pelo fundo duma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus”, declarou Jesus ao ver o homem desolado perante tais instruções. Maria de Belém lembra o conhecido episódio para explicar que “muitas vezes o rico inverte as suas prioridades e acaba por se preocupar com aquilo quetem uma dimensão de perenidade, com o que ele deixará cá”. A deputada refere-se ao economista Amartya Sen, vencedor do Prémio Nobel, para defender que o problema é a riqueza estar mal distribuída. “Devemos possuir o suficiente para o nosso bem–estar. O rico nunca fica saciado e convive agradavelmente com as pessoas que não têm o essencial. Acha que para ele tudo é pouco e para os outros tudo é demais”, argumenta Maria de Belém. D. Januário Torgal Ferreira aceitou responder à VISÃO imaginando Jesus a pregar. E o sermão não seria muito apologético do modo de vida dos mortais.
“Dir-nos-ia: queridíssimos homens e mulheres, meus filhos e minhas filhas, adoráveis irmãos e irmãs, o tempo que têm perdido com bagatelas, com minudências e com coisas que não interessam, o tempo que têm perdido a contar as notas e as moedas, o tempo que têm perdido com fotografias, brasões de armas, títulos e postos. Os homens agarraram-se ao supérfluo, à vaidade, à pretensa categoria, à insolência de que conseguem tudo através do dinheiro e do poder”, afirma o bispo das Forças Armadas e de Segurança.
A defesa dos mais pobres, no entender de D. Januário, continuaria a ser uma das preocupações de Jesus, que nos chamaria a atenção para o facto de não estarmos “a ganhar tempo com os últimos das hierarquias sociais”: “Se eu estiver com estes, lutando para que tenham melhores salários, batalhando contra as causas que originam a fome daqueles que têm fome, cobrindo aqueles que não têm com que se cobrir, Jesus vai dizer-me: ‘Tudo o que fizeste aos mais pequeninos fizeste-me a mim também'”. E conclui o bispo, que no último ano tem proferido comentários severos ao Governo de Pedro Passos Coelho: “Repara que esta humanidade chegou à Lua, teve progressos científicos ímpares, mas não tornou comum a defesa da justiça social e dos mais fracos. Como é que eu consigo levar os homens à inteligência? Há ali um país que se chama Portugal onde até aos mais humildes e aos mais pobres lhes foram tirar aquilo que tinham. Pobre desse reformado que, depois de uma vida a descontar, lhe tiram o pouco que ele tinha conseguido.” Na opinião do padre Jardim Moreira, que em Portugal preside à Rede Europeia Anti-Pobreza, uma organização não-governamental com representação em 30 países, “provavelmente Jesus também não iria gostar daquilo que veria”. Existe, nas suas palavras, “uma dicotomia entre o que se diz e o que se vive”. Além disso, o padre Jardim Moreira revela-se muito crítico do atual momento político, salientando que Jesus recordar-nos-ia que “temos um só pai, somos todos irmãos”. “Diria que este mundo continua a adorar o dinheiro e o poder. O grande poder europeu está a sujeitar-nos (e particularmente os mais fracos e injustiçados) ao dinheiro. O que importa é o êxito, a eficácia, o tecido económico europeu, ainda que sustentado à custa dos mais frágeis.
De fraternidade não temos nenhuma, mesmo que em algumas leis a palavra possa lá estar”, alega. Segundo o presidente da Rede Europeia Anti-Pobreza, Jesus “condenaria os construtores desta sociedade e lembraria as suas vítimas”. Proporia ainda, continua, “uma nova ordem social”: “O dinheiro deve estar ao serviço de todos e não só de alguns. Muitos possuem aquilo que não lhes pertence e que é propriedade daqueles a quem ele falta. Todos os impérios caíram, este império do capitalismo neoliberal também cairá.” O deputado europeu Paulo Rangel também não tem dúvidas que “Jesus condenaria o capitalismo selvagem e a exploração do homem pelo homem “. Salienta, no entanto, que, do seu ponto de vista, Jesus o faria com critérios diferentes, nomeadamente “uma justiça que está para além dos critérios humanos”. O antigo líder parlamentar do PSD é autor de um dos textos que integram o livro Quem Foi/Quem É Jesus Cristo?, coordenado pelo padre e professor de Filosofia na Universidade de Coimbra Anselmo Borges e lançado na semana passada em Lisboa pela editora Gradiva.
O capítulo assinado por Paulo Rangel intitula-se “Jesus e a política: reflexões de um mau samaritano” e, nele, o deputado europeu desenvolve as razões pelas quais advoga que Jesus não tinha uma ideia maquiavélica da política. “Os seus critérios são desconcertantes e subversivos porque não cabem nas grelhas doutrinais da política em que nós nos fechamos. A única coisa que vejo de semelhante é o amor incondicional de um pai e de uma mãe. Por isso é extremamente difícil dizer o que Jesus acharia hoje porque os critérios deles não são osque nós temos”, explica à VISÃO.
Como exemplos, Paulo Rangel cita duas parábolas: a dos trabalhadores da vinha (segundo a qual Jesus paga tanto a uma pessoa que começou a trabalhar de manhã quanto a uma pessoa que começou a trabalhar à tarde) e a parábola dos talentos, na qual Jesus repreende com palavras duras a um dos empregados. “És um mau trabalhador e preguiçoso. Sabias que ceifo onde não semeei e junto onde não espalhei. Então devias ter posto o meu dinheiro no banco, para eu, ao regressar, receber o que era meu com os respetivos juros”, disse Jesus ao empregado que tinha poucas moedas e que, em vez de as pôr a render, as guardou num buraco. Paulo Rangel remata: “Os critérios doutrinários do programa social de Jesus não têm nada a ver com os critérios da nossa justiça social”. Por muito que por vezes o queiramos, acrescentamos nós.