Um dia depois da conquista da medalha de ouro nos 10 mil metros, nos Europeus de Helsínquia, Dulce Félix correu mais de uma hora pelas ruas da capital finlandesa. Não para festejar o feito da véspera mas porque o próximo grande objetivo é a maratona dos Jogos Olímpicos e ela já definiu a meta para a estreia: “Um lugar nas dez primeiras.” Mas alimenta o sonho “de ser campeã olímpica”. Não é por acaso que Fernanda Ribeiro e Manuela Machado, duas das maiores representantes de sempre do atletismo nacional, são as suas referências. Tal como elas, Dulce Félix é de antes quebrar que torcer. “Já desisti a meio de uma corrida uma vez e detesto. Os dias a seguir são péssimos.” Ela não quer repetir a dose.
Namorado e companheiro de treino, Ricardo Ribas, também ele maratonista, reconhece que ao valor “inquestionável ” da atleta e ao seu profissionalismo, Dulce junta ainda um outro fator importante para as grandes conquistas: “uma família extraordinária, que está com ela em todos os momentos, nos bons, mas, principalmente, nos menos bons”. E sobre o facto de Dulce não ter vertido uma lágrima de emoção, nem mesmo no pódio, Ricardo esclarece: “Ela não tem meio-termo… ou chora como uma desalmada ou passa o tempo a sorrir. Desta vez foi assim, e ainda bem, porque ela é mais bonita a rir.”
Natural de Azurém, Guimarães, Ana Dulce Félix, hoje com 29 anos, está no atletismo também por teimosia. Quando era miúda, reconhece, “nem ligava muito a desporto”. Nos juniores do FC Vizela, por onde passou depois de deixar o ACR Conde de Guimarães, o seu primeiro clube, andou “tremida”. Mas “como sabia que tinha qualidades, decidi que era altura de me esforçar mais”, recorda. Já nessa altura, os treinos eram conciliados com o trabalho, “sempre em pé, de volta de uma máquina de costura automática” e que lhe rendia 450 euros mensais. O esforço e o talento não tardaram, porém, a serem reconhecidos por Sameiro Araújo, uma das mais conceituadas técnicas da modalidade, que a foi buscar para o Sporting de Braga e que agora a orienta ao serviço do Maratona Clube de Portugal. Só depois de assinar contrato é que deixou a vida na fábrica.
Não fora isso e a sua maratona seria hoje outra. “O meu meio é muito dependente do têxtil e eu vejo cada vez mais pessoas sem trabalho ou a trabalhar sem receber. Se tivesse continuado na fábrica, provavelmente teria pensado em emigrar. Nunca vi as coisas tão mal”, comenta.
No atletismo, curiosamente, o momento também não é famoso. “Cada vez há menos apoios e menos provas, num país que quase só pensa em futebol”, lamenta.
Mas nem isso a deixa abater e, poucas horas após o regresso da Finlândia, foi a casa deixar a medalha, “à vista de todos”, e festejar com a família. Depois, seguiu para Mira, onde tem feito quase todo o estágio pré-olímpico. Pouco dada a dietas ou “um bocado baldas com a alimentação”, nas suas próprias palavras, Dulce confessa-se perdida por doces. Mas, para já, a gulodice vai ter de esperar. A menos que as iguarias venham em forma de medalhas.