Desde o dia em que viu, num museu londrino, o barco à vela Gypsy Moth, com o qual Sir Francis Chichester deu a volta ao mundo, Ricardo Diniz teve a certeza de que queria velejar sozinho. Tinha apenas 8 anos e ainda hoje se lembra do que sentiu. Ao lado daquela “casinha de bonecas para rapazes”, estava o veleiro britânico Cutty Sark não lhe ligou nenhuma.
Com 12 anos, começou a “trabalhar”, angariando capital para entrar no mundo da vela: vendia aos amigos, na praia, os bolos de cenoura confecionados pela avó; comprava, restaurava e revendia material de surf; lavava barcos na doca lisboeta de Santo Amaro; mais tarde, conduziria catamarãs, nas Caraíbas.
Muitas vezes aproveitou os caiaques utilizados em salvamentos para sulcar as ondas ou andar horas infindas em frente, até perder a terra de vista. Numa dessas incursões mar adentro, só e de tanga, surge um barco por perto. Lá dentro, saberia depois Ricardo Diniz, um pai e uma menina questionavam-se sobre o que faria aquele jovem no meio do Atlântico. Ricardo aproximou-se e, por brincadeira, fez-se passar por turista francês. Anos mais tarde, em 1998, no London Boat Show, uma rapariga contava um episódio vivido em criança, quando encontrou um francês sozinho no alto mar. Ricardo foi ter com ela, afinal filha do então comandante da Sagres, e apresentou-se. Ficaram amigos até hoje. Na vida deste velejador solitário, a imensidão do mar tem sido pequena para tantas surpresas.
Cresceu na Costa de Caparica (Almada), mas foi em Inglaterra que morou, dos 5 aos 11 anos e aonde voltou mais tarde, aos 17, para tirar a carta de comandante e ingressar na Universidade de Southampton, no curso de Ciências Ambientais Marítimas. Hoje, só consegue pensar e escrever em inglês, como revelam os seus diários de bordo. Ali estão inscritos angústias, humor, reflexões existencialistas e deliciosos mergulhos, sem roupa nem preocupações, no oceano profundo.
Mas, aos 35 anos, já lá vão quatro travessias transatlânticas em solitário, que equivalem a três voltas ao mundo. E, a partir de 15 de junho, Ricardo Diniz estará pronto a zarpar, mal as condições meteorológicas o permitam. Só, como se impõe, projeta levar a bom porto a expedição Montepio Mare Nostrum, em que circum-navegará a Zona Económica Exclusiva nacional, cujo limite, imagine-se, fica muito perto de… Nova Iorque.
Há a epopeia e outra novidade: pela primeira vez, o velejador embarcará num barco de que é dono e não alugado. O que pode significar o regresso da ansiedade de outros tempos.
26 de junho de 1996 De cabeça no ar
Ricardo tinha velejado de Inglaterra até Lisboa e, no regresso ao Reino Unido, a 35 mil pés de altitude, voando sobre o Golfo da Biscaia, rabisca as frases iniciais dos seus diários de bordo
Velejar de Inglaterra para a minha terra natal, Portugal, foi uma experiência cheia de coisas boas. Fiz parte da tripulação do Palandra, um Moody Ketch 52, pertença de Kevin e Anny Willis. Foi muito importante para mim. Uma fantástica viagem antes de ir de Lisboa para Peniche e voltar. A realização pessoal foi o mais importante.Tornou-me mais confiante e aumentou o meu conhecimento de velejar no oceano. Conhecemos pessoas maravilhosas e fi z bons contactos. Estava prestes a passar três semanas com estas pessoas, por isso um bom relacionamento era essencial. Houve alguns momentos desagradáveis…
1996 Uma cara assustadora
Há semanas sozinho no oceano, um espelho mostrou-lhe um rosto que nunca vira
A primeira travessia do Atlântico foi muito intensa, não estava preparado para a viagem, senti muita pressão, o barco era enorme… Não me olhava ao espelho há muitos dias e quando o fiz assustei-me: estava muito magro, seco, com o cabelo desgrenhado e sentia-me péssimo. Em 2001 voltei a sentir-me assim. O Gelpeixe foi o meu primeiro “sim”, depois de 3 999 “nãos”. Com desenho do arquiteto náutico Merf Owen, foi o primeiro barco de alta competição construído por alunos, numa parceria entre a Universidade de Pembrokeshire, no País de Gales, e o Instituto Superior Técnico, em Lisboa. Abençoado pelo padre Vítor Melícias e apadrinhado pela atleta Rosa Mota, parti sozinho das Docas de Alcântara rumo a S. Salvador da Baía, no Brasil, mas, ao largo da Madeira, dois ou três dias depois, ao lusco-fusco, tive o azar de bater contra um contentor. Estive mais de 20 horas a boiar na água, com o barco semi-submerso ao lado, e fui resgatado por um paquete. Investigámos o caso e estima-se que existam 80 mil contentores à deriva no meio do mar. Um verdadeiro drama ecológico.
De repente, desiludi todas as pessoas que tinham investido em mim. Demorei algum tempo a fazer as pazes comigo próprio, e contei com a ajuda de uma psicóloga de desporto. Mas nunca me passou pela cabeça deixar de velejar. O mar é o meu companheiro de viagem. Costumo falar com ele, era a minha religião, até perceber que por trás do mar há alguém a ouvir. A bordo levo alguns livros que interpretam a Bíblia. Sou mais cristão do que católico. Deus faz parte da minha equipa.
Sábado, 13 de julho de 1996 15:31 Latitude 035º. 09′. 32″N Longitude 038º. 52′. 66″W
A nadar no Atlântico – O primeiro banho da viagem nu
Um banho no mar. Boa temperatura, água límpida. Avistei uma baleia enquanto nadava, mas ela não se aproximou. Tirei divertidas fotografias debaixo de água.
(…) Paragem a meio da primeira travessia do Atlântico, bastante a sul dos Açores. Se o mar falasse dizia que gosto muito dele, sinto amor, entusiasmo. Contra tudo e todos é com ele que vou e ele já viu o que eu sofri (…)
1996 17:05 Rumo magnético 080º Velocidade em nós 5,7 Pressão atmosférica 1 014 Técnica: lápis de carvão e saliva para esborratar
Frente fria a chegar – Lições de um meteorologista autodidata
(…) foram os meus primeiros bolinhos de peixe de sempre. (.) O barómetro desceu três milibares em duas horas. A noroeste no horizonte surge uma nova situação. Parece um nevoeiro pré-frontal. As nuvens attocumulus surgem no horizonte como se estivessem a observar a área para dar lugar às líderes stratocumulus. (…) Devagar elas passam de pequenos e inexpressivos flocos para grandes figuras de algodão que fazem as crianças ver animais e imagens engraçadas. E longe, longe, no horizonte há cinzento à vista desde os 280 até aos 60 graus. A frente frontal está a caminho e nós vamos com ela.
(…) Uma tempestade pode ser uma coisa benéfica: para me posicionar melhor, para andar mais depressa. Ao preparar-me, arrumo tudo para não voar, verifico as janelas do convés e se as baterias estão carregadas.
Quando era miúdo e ouvia “ondulação de dois metros” corria para a praia. Achava que encontraria ondas dessa altura…
Comecei a desenhar o formato das nuvens, a verificar a direção do vento e a cor do céu e a fazer as minhas previsões. O céu é um livro aberto sobre a meteorologia (…)
24 de junho de 1997 00:27
Lena? Qual delas? Se todas as namoradas têm o mesmo nome, é complicado…
De um lado, os desenhos de rostos feitos por uma das três namoradas gregas que tive, todas chamadas Lena. Não me lembro qual delas foi. Do outro, a vista do meu quarto na Universidade de Southampton, numa altura em que era dos poucos alunos a ter computador e telemóvel.
1996
Proteínas ao pequeno-almoço – Quando surgem companhias inesperadas a bordo
No barco ando sempre descalço e seminu. De manhã, enquanto comia os cereais, pisei uma… barata. Um ratinho também andava por lá a fazer-me companhia. Nas Caraíbas é muito comum, vêm dentro dos caixotes.
(…) Em alto-mar o meu dia-a-dia é um verdadeiro xadrez da autodisciplina. Durmo quatro horas por dia, 20 minutos de cada vez. Para poupar a água doce, lavo-me com água salgada e passo uma esponja pelo corpo para tirar o sal. Tento também não desperdiçar a energia elétrica. Falo sozinho, canto, assobio e rezo. Levo livros como The Long Way, de Bernard Moitessier, uma fonte de inspiração; música; a minha almofada e algumas mantinhas de casa cheias de pelos do meu gato (…)