O meu baptismo de fogo em Andorra, onde chego, em férias, numa noite cerrada de Inverno, é com o homem do lixo. Só lhe falta o chapéu com orelhas da rábula dos Gato Fedorento. Através do vidro aberto, põe o nariz dentro do carro, para que a sua indicação sobre a localização do hotel que procuramos, gritada entre interjeições do bom vernáculo minhoto, seja bem compreendida. “São portugueses, c….?”, alegra-se ele, ao ver turistas da sua terra. Nem a senhora nem a criança, que também viajam, inibem a linguagem, digamos, pitoresca, deste português do Norte. Tenho ali um amigo! Coloca-se no meio da via, faz parar o pouco trânsito que circula e incita-me a uma inversão de marcha irregular, por cima de dois traços contínuos. Mostra quem manda: ele domina Andorra! É o primeiro de muitos. Ao longo das curtas férias, não falarei outra língua senão o português. No hotel, nas lojas, nos restaurantes – na rua. Estão na construção, no comércio e até na administração pública. São trabalhadores, operários ou mesmo grandes empresários. Chegam a 13 682 (último registo), mas sem contar com a segunda geração, que, pela proximidade a Portugal, mantém as raízes, o vínculo, a cultura e a língua – talvez 16 mil, quase um quinto da população. Se os portugueses saírem, de repente, todos ao mesmo tempo, Andorra fecha. Não fazia ideia, ninguém faz ideia. Andorra merece uma reportagem. Esta, por exemplo.
Por isso, volto lá, desta vez na pele de repórter da VISÃO. Perdemos o rasto do homem do lixo, mas encontrámos o de Abel Guerra, dono das Construções La Posa, fundador e CEO do Grupo Falcia, patrão de 1 700 trabalhadores, em oito países diferentes. Ou o de Joaquim Pereira, que, aos 17 anos, ali chegou, de autocarro, com uma mochila às costas, e, aos 35, é presidente do CEPA (Clube de Empresários Portugueses de Andorra). Ou o de Nadir Lopes Cassama, empregado de mesa de um dos melhores restaurantes da capital e com três internacionalizações em namoradas. Ou o de Patrícia Bragança, advogada, formada em Toulouse (França) e o “ai Jesus” dos empresários com negócios em Andorra e Portugal. Ou o de Vítor Freitas, o homem que garante o abastecimento da boa imperial lusitana (obrigado, Vítor!) a todo o pequeno país pirenaico. Ou o de Nuno Ribeiro de Passos, que “transporta tudo” nos seus camiões e até das mudanças para o novo edifício dos serviços de segurança de Andorra se encarregou. Ou o de Teresa de Jesus, comissária da polícia local, filha de um dos pioneiros portugueses em Andorra. Ou o de Elisa Andrade, chefe de recepção do Hotel Prisma, que, natural da Mealhada, continua, ao fim de três anos, sem conseguir habituar-se ao calão nortenho que se ouve troar pelas sedes das associações portuguesas. Ou o de Zé Manuel da Silva (“Zé Manuel”, assim mesmo, no cartão-de-visita), conselheiro das comunidades portuguesas em Andorra, empresário de restauração e madrugador pasteleiro. Ou o de José Chaves, sócio da gráfica Impremta Envalira, que imprimiu, por exemplo, a reedição, recentemente lançada pelo Instituto Camões, com a presença das autoridades portuguesas e andorranas, de um livro de viagens de Ferreira de Castro sobre a nação pirenaica. Ou o de António Cerqueira, presidente do Futebol Clube Os Lusitanos, uma das equipas grandes da Liga de Andorra, com aspirações à Taça UEFA. E até nas pistas encontramos uma protagonista lusitana, postal ilustrado vivo dos portugueses de Andorra, pouco dados aos desportos de neve: Carmina Rodrigues Pereira, 40 anos, a única portuguesa instrutora de esqui, nas montanhas do Grandvalira…
A incrível história do Quim Pereira
Estão feitas as apresentações. Reunimos os amigos portugueses à volta da mesa, no restaurante galego Don Denis, um dos melhores de Escaldes, paróquia (como são chamados os concelhos) geminada com a capital, Andorra-a-Velha. O ambiente é bem português, como em quase todos os restaurantes da cidade. Entre dois copos de tinto alentejano, Joaquim Pereira, 35 anos, presidente do CEPA, prolonga a ceia com duas horas retiradas do seu repertório de anedotas. Foi ele quem deu a táctica a Fernando Rocha, numa recente passagem do humorista por Andorra. Ainda troca, regularmente, mails de piadas com o seu conterrâneo nortenho. Mas a melhor história que tem para contar é a da aventura da sua vida. E essa faz o retrato fiel da terra de oportunidades que Andorra significa para milhares de portugueses. Quando tinha 17 anos, o actual empresário de turismo, dono da agência Paisages Unió, comprou um bilhete de ida na Terra Nova, enfiou-se num autocarro, no Porto, e só se apeou na última paragem de Andorra-a-Velha. Chegou às 7 e 30 de um domingo e às 11 e 30 já tinha um emprego, num hotel. Não gostou do almoço. Procurou trabalho noutro hotel e conseguiu. Eram 16 e 30. Ficou.
Natural de Loivos, Régua, Joaquim Pereira, trabalhava, desde os 13 anos, no Porto, primeiro no restaurante Lima 5, do antigo presidente do Salgueiros, Fernando Barros, e, depois, no Águia Branca. E o que leva um jovem de 17 anos a partir à aventura, de autocarro, para procurar trabalho numa terra desconhecida? Primeiro, a hipótese de ajuda de um vago amigo de um amigo, que já se encontrava em Andorra. Depois, o objectivo de estar três anos, e poupar o suficiente para abrir um barzinho, no Porto. Agora, 18 anos depois, casado em Andorra, pai de gémeos, tem uma história fora do guião inicial. Foi maitre de hotel, aos 21 anos, e director, pouco depois. Foi dono de um restaurante de tapas. Mas fartou-se e mudou de ramo, dedicando-se à importação de produtos alimentares de Portugal, cuja saída, em Andorra, era garantida por 485 clientes fixos, na área da hotelaria. Mesmo esta, contudo, não era vida para ele. Vestiu um bom fato, passou a usar gravata e investiu tudo como profissional de turismo. Presidente da Casa do Benfica, é como líder do CEPA que se torna interlocutor das autoridades portuguesas e andorranas. O Clube de Empresários (que presta apoio aos homens de negócios portugueses, incluindo através de assessoria jurídica, e tem, na web, uma bolsa de trabalho) lançará, este ano, os prémios CEPA, que distinguem uma personalidade portuguesa e outra andorrana. “É a primeira vez que a comunidade portuguesa premeia Andorra”, diz, orgulhoso. Com clientes em Portugal, Espanha, França e Bélgica, prepara-se para abrir, no nosso país, um escritório e, com um sócio espanhol, manobrar uma frota de 35 autocarros. Explicação? “Em todas as crises há oportunidades.” E o barzinho no Porto? Um sorriso enigmático responde por ele.
O magnata da construção
Segundo a ministra dos Negócios estrangeiros de Andorra, Meritxell Mateu, que entrevistámos no informal edifício do Governo, “não há tensões com a comunidade portuguesa, que não é problemática”. Os portugueses estão integrados e, no programa gratuito do ensino do catalão às comunidades estrangeiras, 82% dos alunos inscritos são lusos. Apesar disso, a comunidade funciona em circuito bastante fechado. Os pequenos e médios empresários, por regra, empregam apenas trabalhadores portugueses, angariados nas suas terras, em Portugal. Não sendo um destino de emigração badalado e presente na Comunicação Social, como o Luxemburgo ou a Suíça, Andorra explica-se pelo passa-palavra, boca-a-boca, e pela chamada de familiares do torrão natal. É essa proximidade que explica a forte concentração de imigrantes chegados do Minho, por exemplo. Como nos diz o embaixador de Andorra em Lisboa, Jaume Gaytan, “há mais vianenses em Andorra do que em Viana do Castelo”.
Outros empresários, maiores, como Abel Guerra, dão trabalho a funcionários de várias nacionalidades. O seu encarregado de obras, espanhol, é o mestre-de-cerimónias, na visita que fazemos a um dos estaleiros de construção, uma série de 22 vivendas encravadas numa improvável ravina, na paróquia de Encamp. Seguimos as palavras de Ferreira de Castro, no seu texto dedicado a Andorra, onde esteve em 1929: “Qualquer das paróquias, incluindo Andorra-a-Velha, a capital, não ostenta superioridade junto das nossas aldeias beirãs.” E mais adiante: “A função de restaurar é quase ignorada em Andorra. Quando um edifício se lembra de continuar a desfazer-se, enche-se a brecha com pedras soltas, como se se enchesse uma cova. E se a ferida é grande, que o todo se desmorone à vontade; o andorrano amigo ficará ali até ao último momento, até ao instante em que as pedras, depois de lhe terem caído aos pés, ameacem cair-lhe sobre a cabeça.” Lê-se, olha-se e compreende-se: como é possível construir aqui, em cima destas pedras periclitantes, em nesgas de terreno debruçadas sobre precipícios de goela voraz, no meio da lama ou da neve? Com muito dinheiro, que o enriquecimento posterior de Andorra permitiu. Abel Guerra explica que há obras onde, por falta de espaço para as manobras de estaleiro, o reforço estrutural de betão é feito por helicópteros, alugados a peso de ouro, à hora, e por dias consecutivos. Mas só mesmo um grande empresário como este, oriundo de Macedo de Cavaleiros, tem estaleca para isso. Dono das construções La Posa, Abel Guerra prepara-se, aos 41 anos, para ser avô pela segunda vez. O transmontano nunca perdeu tempo – e até na constituição da prole foi rápido: pai de gémeas, ficou despachado. Os negócios seguiram como uma bola de neve, ou não estivéssemos nos Pirenéus. Patrocinador da equipa de futebol Os Lusitanos (ver caixa), CEO do Grupo Falcia, que fundou, detém 31 sociedades em Andorra (onde se encontra a sede da empresa, a segunda maior do país), em Portugal, Espanha, Eslováquia, Angola, Panamá, Cabo Verde e, até, na Tanzânia, onde explora uma concessão diamantífera. No próprio dia em que o entrevistámos, na sede da La Posa, em Encamp, preparava-se para receber, nos escritórios da Diamantes Valira S. L., compradores suíços de um lote dos seus diamantes tanzanianos. Foi ele quem fez o funicular que transporta os esquiadores para as pistas de Encamp, e está, por exemplo, a construir 420 vivendas em Bratislava. Emprega 187 pessoas no Panamá, 730 em Angola, 200 em Cabo Verde e passa a vida a viajar entre os oito países onde o grupo tem negócios. A sede, essa, permanece onde tudo começou, em 1989: em Andorra, de onde tem de sair de autocarro ou de automóvel, despender três horas até ao aeroporto mais próximo (Barcelona), metade do percurso por uma estrada sinuosa. Metáfora física de um império quase tão inexpugnável como a própria inacessibilidade andorrana: por causa da crise, a sua construtora facturou, em 2008, metade do que ganhara ano anterior – mas, mesmo assim, 23 milhões de euros. Muitos trabalhadores, sobretudo portugueses, ficaram sem trabalho e tiveram de regressar, mas a empresa manteve-se auto-suficiente em projectismo e maquinaria, com capacidade de autofinanciamento e sem dependência da banca.
Paraíso fiscal?
Abel Guerra é um dos empresários portugueses que aplaude o recente Tratado Bilateral entre Andorra e Portugal, aqui explicado pelo embaixador português Mário Damas Nunes, em funções desde início do ano (ver caixa com entrevista). Podendo, agora, ter uma firma apenas em seu nome, o que, antes do acordo, estava vedado aos estrangeiros, nos primeiros 20 anos de permanência no país, Abel Guerra foi um dos que se livrou – pagando bem… – de um testa-de-ferro andorrano, que desempenhava o papel de sócio com 50% do capital. A diplomacia andorrana está apostada em livrar-se do anátema de “paraíso fiscal”, que provoca o seu progressivo isolamento, no quadro da União Europeia, de que, formalmente, não faz parte, mas em cujo ambiente económico tem de sobreviver. Andorra está a sair directamente de um período medieval, do ponto de vista jurídico, em que as tradições orais e a palavra vigoravam sobre os documentos. Não havia, até há pouco tempo, um verdadeiro tribunal, advogados, notários ou contratos escritos – e é deste ponto de partida que passa a ter de lidar com a burocracia infernal da UE. Aliás, data de Março de 1993 a Constituição de Andorra, o primeiro documento escrito a substituir a palavra, os usos e os costumes. E foi este país, com mais de 5 mil estabelecimentos comerciais e 500 hotéis, sem indústria nem agricultura digna desse nome, quase sem leis nem impostos, que construiu, ano após ano, um dos PIB per capita mais elevados do mundo, batendo, algumas vezes, o próprio Japão.
Recentemente, uma delegação andorrana esteve em Portugal para estudar e importar o Simplex. E já implantaram a Fenestra Unic, decalcada do nosso Balcão Único. Portugal é o “terceiro vizinho” e o estatuto dos cidadãos andorranos, no nosso país, similar ao de qualquer cidadão da União, é mais favorável do que na própria Espanha ou em França. Mais: Portugal foi o padrinho da entrada de Andorra na última cimeira Ibero-Americana. Sendo um micropaís, é, todavia, o porta-bandeira da língua catalã, que, pela primeira vez, se tornou oficial, num aerópago internacional, quando Andorra aderiu à ONU, em 1993.
O poderio económico de Andorra começa, pela primeira vez, a provocar incómodos. Agastado com a recusa andorrana de levantar o sigilo bancário, o Presidente francês, Nicolas Sarkozy, deu, a semana passada, um murro na mesa, ameaçando acabar com o protectorado francês, que vigora desde o século XIII. Os andorranos admitem levantar o sigilo, mas apenas em caso comprovado de crime fiscal.
Na verdade, Andorra, sendo um país soberano, mantém a sua segurança externa entregue ao bispo de Urgel – na prática, a Espanha – e ao Presidente de França. O bispo de Urgel e Sarkozy são, assim, co-príncipes formais do Principado. E é assim que Sarkozy, figura máxima do país do republicanismo, é, ironicamente, o único presidente do mundo que também é “monarca”, embora sem quaisquer poderes efectivos e, muito menos, executivos. No mais, Andorra governa-se por um sistema parlamentar e tem um executivo chefiado pelo cap de govern saído de um parlamento minúsculo de 28 deputados, eleitos pelas sete paróquias do território e representantes do Conselho dos Vales, uma estrutura secular e, originariamente, semitribal.
Mulheres de armas… e leis
Os primeiros passos do edifício jurídico e fiscal que está a ser construído em Andorra, segue-os a advogada, portuguesa de segunda geração, Patrícia Bragança, 31 anos. O seu marido, Juli Barrero, 33 anos, catalão, é o director de um órgão da imprensa… portuguesa! Trata-se da Voz Lusa, uma revista mensal. Do seu escritório de Massana, Patrícia resolve os imbróglios que os negócios entre Portugal e Andorra solicitam: os problemas da dupla tributação, registos, pagamentos de impostos, casamentos e divórcios de portugueses – tudo passa por ela, incluindo a vice-presidência do CEPA. Não é a única mulher a destacar-se entre a comunidade, nem a única licenciada em Direito pela Universidade de Toulouse. Teresa Ferreira de Jesus, 37 anos, mãe de duas filhas de 6 e 8 anos, comissária da polícia andorrana, tem um percurso académico idêntico. Nascida em Andorra – e de nacionalidade andorrana, porque a lei local não permite dupla nacionalidade -, Teresa é filha de um dos pioneiros portugueses de Andorra, aqui chegado nos anos 50 e fundador da principal empresa de transportes urbanos. Especialista nas questões de imigração, acidentes de trânsito, departamento jurídico, informática e análise criminal, vem todos os anos a Portugal, de férias, onde mantém vínculos e raízes. Na polícia há 14 anos, ela é testemunha privilegiada da capacidade de integração dos seus compatriotas lusos, num país onde quase não há criminalidade. “As comunidades de Leste são mais problemáticas”, confidencia.
Andorra, aliás, é um microcosmos de 110 nacionalidades diferentes. Entre os estrangeiros ilustres, porém, destaca-se o motociclista Cyril Despres, vencedor do Dakar 2007 e 2.° classificado em 2008. O francês vive em Arinsal, lugarejo próximo de Massana, domina o catalão e é a única glória desportiva (embora por adopção) de Andorra…
Vai um pastel de nata?
O mobiliário do moderno edifício onde Teresa trabalha foi todo transportado pela empresa de mudanças de Nuno Ribeiro de Passos, que não se cansa de proclamar o certificado de qualidade ostentado pela Transports Tot (“transportes de tudo”, numa tradução livre). Há 20 anos em Andorra, surpreendemo-lo com o uniforme da empresa, a carregar móveis, ao lado dos seus trabalhadores, todos portugueses, numa residência (também portuguesa) em Encamp. Dono da revista Voz Lusa, uma menina dos olhos que, volta e meia, lhe sai bastante cara, confraterniza com o amigo José Chaves, 52 anos, há 30 em Andorra e natural de Tondela: é na gráfica de que o amigo Chaves é sócio que se imprime a revista. A Impremta é a grande tipografia de Andorra e ali foram impressas as linhas do já citado volume especial dos Pequenos Mundos, Velhas Civilizações, de Ferreira de Castro, uma edição bilingue, com prólogo, entre outros, da ministra Meritxell Mateu.
Muito perto da Impremta, encontraremos, às 6 e 30 da manhã, de barrete de padeiro na cabeça, o conselheiro das comunidades, José Manuel da Silva, 39 anos. Pastéis de nata, croissants e pão fresco saem para os supermercados, pouco depois. Mas estes produtos podem ser saboreados ali mesmo, na sua pastelaria, El Tortel, local que qualquer taxista andorrano conhece, só pelo nome e sem necessidade de indicação de morada. No El Tortel 2, o seu restaurante em Escaldes, Zé Manel almoçará com o filho de 9 anos, vindo da aula de esqui, disciplina obrigatória no sistema de ensino básico de Andorra… De pé desde as 4 da manhã, dedica o pouco tempo livre a tratar dos assuntos da comunidade, de que é interlocutor junto do Governo português. Em preparação, estava o colóquio sobre a comunidade portuguesa, com a presença do secretário de Estado das Comunidades, António Braga, e dois ministros andorranos (decorreu a 21 de Março). José Manuel da Silva, há 23 anos em Andorra, está em contacto com o Ministério da Educação, em Lisboa, de forma a dar um incremento maior ao ensino do Português no país pirenaico, onde há já cinco professores da língua de Camões.
As namoradas de Nadir
Revisitamos Ferreira de Castro, que cantou os mistérios de Andorra. Porque é que este povo, interrogava-se o escritor português, que cabia em dois navios (e hoje, já com as comunidades imigrantes, se ajusta perfeitamente num estádio de futebol), consegue manter-se independente, desde 1278, um país “casa-de-bonecas” fundado, diz-se, pelo próprio Carlos Magno? Seguimos os passos do escritor, pela “rua das lojas” abaixo, entre Escaldes e Andorra-a-Velha. Tudo mudou, desde que os olhos do viajante registaram a aldeola dos anos 20, onde havia uma padaria e uma barbearia. Detemo-nos nos armazéns Options +, na loja de malas Safari, onde os olhos curiosos da lisboeta Paula Veríssimo, 50 anos, há 20 em Andorra, pedem uma expressiva fotografia. As lojas de malas são paragem obrigatória de turistas de toda a Europa, tal como o é o centro termal e spa da Caldea, verdadeiro ex-líbris de Escaldes, berço do turismo andorrano, agora transformado num moderno megacentro de saúde, lazer e bem-estar. Joaquim Pereira, que traz turistas de vários pontos da Europa, conta que 80% dos visitantes passam por La Caldea. As águas termais do rio Valira foram o primeiro cluster da fortuna de Andorra, muito antes dos desportos de Inverno, ou do montanhismo estival. Descemos mais um pouco, à baixa da capital, e almoçamos no El Refugí Alpí, onde o cozinheiro francês é secundado pela chefe de segunda portuguesa, hoje de folga. Ali, os jovens Nadir Lopes Cassama, 22 anos, com origens em Moçambique e Portugal, e Paulo Costa, 19 anos, ajudante de cozinha e homem dos grelhados, falam das suas experiências e da boa vida em que ainda não notam sinais de crise. Depois de uma namorada argentina e outra espanhola, Nadir assentou, finalmente, com uma rapariga portuguesa, nascida em… Bordéus. Teias que a diáspora tece e que levaram o seu amigo Paulo Costa, 19 anos, de Ponte de Lima, ao posto de ajudante de cozinha do prestigiado restaurante. Um dia, quer ser um grande chefe.
A nossa esquiadora
Mesmo ao lado, dispersam-se vários cafés portugueses e a sede do clube Os Lusitanos. Máquinas de imperial Sagres são às dezenas por toda a Andorra, mas o Licor Beirão, o bacalhau, vinhos, azeites e outros produtos portugueses também podem ser encontrados. A bica vem de Campo Maior, com o triângulo da Delta omnipresente nos cafés, bares e snacks do país. Um dos principais responsáveis por esta sensação de “lar, doce lar” é o armazenista e importador Vítor Freitas, 39 anos, desde os 20 em Andorra, que nos recebe no seu armazém fora da cidade. Está, agora, a construir um novo barracão de 600 metros quadrados, por já não ter espaço nem mãos a medir. Ele é um dos vários portugueses ligados ao ramo alimentar. Portugueses que estão em vários outros ramos de actividade (ver infografia). Até há pouco tempo, contudo, foi na construção civil que a principal força de trabalho lusitana se concentrou. A crise internacional fez abrandar este boom e muitos voltaram. Mas a maioria tenta reciclar-se na hotelaria e turismo, onde Andorra continua pujante. Cruciais na economia do país, os portugueses contribuem para a riqueza de Andorra – os de lá de dentro e os de cá de fora. Os que trabalham produzem riqueza e os que invadem o país nas semanas do Ano Novo, Carnaval e Páscoa são especialmente apreciados por gastarem sem olhar a despesas e pagarem sem discutir preços – no que são diferentes dos franceses, por exemplo. Não há mesmo crise: uma manhã nas pistas de montanha, em Soldeu, na semana antes do Carnaval, é esclarecedora. Cerca de 90% dos esquiadores de ocasião são turistas portugueses.
E é nesta pista que encontramos a mais improvável das nossas compatriotas emigrantes: uma instrutora de esqui! Carmina Pereira é a única portuguesa nesta actividade, bastante estranha, tendo em conta que se trata de uma cidadã lusa. A sua história é tão incomum, nestas paragens, quanto a sua profissão. Nascida em Zermat, na Suíça, numa família de emigrantes, acabou por transferir-se para Andorra, onde esteve empregada no sector hoteleiro. Mas a dura experiência de infância e juventude, nas colinas dos Alpes, levou-a, por influência de uma amiga, a tentar a sorte como instrutora, nas neves andorranas. Em Andorra há 17 anos, tem, no boletim clínico, operações a rupturas de ligamentos nos joelhos e outras lesões menos graves. Mas insiste, de sorriso aberto, bronzeada pelo sol da montanha. Com a família em Castro d’Aire, mas também parentes em Viana do Castelo e em Sesimbra, vem a Portugal, sempre que pode. E não surpreende o seu domínio do português com um acento beirão: afinal, ela fala sete línguas, correctamente, e escreve em cinco desses idiomas. Ei-la, que desliza, montanha abaixo, para fazer, hoje, mais sete das 700 horas de instrução anuais, na época alta. O primeiro elemento em que pensamos quando identificamos Andorra é a neve. E a silhueta de Carmina, no seu uniforme azul de professora, recortado no branco da paisagem, é a imagem de que precisávamos para cingir Portugal com este país montanhês. Afinal, como diria o meu amigo do lixo, “trata-se de uma portuguesa, c…!”