José Rodrigues dos Santos chega de livro numa mão e guarda-chuva na outra ao Instituto de Medicina Molecular da Faculdade de Medicina de Lisboa. O local para a entrevista foi escolhido pelo autor, que nas últimas obras tem dado protagonismo à Ciência. No seu mais recente livro, Imortal, que chega às lojas esta semana, o autor nacional que mais vende em Portugal põe o leitor a pensar no mundo que aí vem, de humanos biónicos e de seres imortais. Uma viagem a um futuro que está mais próximo do que aquilo que poderíamos imaginar.
Este livro trata, essencialmente, de dois temas: edição de genes e Inteligência Artificial. Qual deles foi o ponto de partida?
A Inteligência Artificial. Quando estava a fazer pesquisa, cruzei-me com a história do cientista chinês He Jiankui, que manipulou os embriões de duas meninas gémeas para as tornar resistentes ao VIH. Como eu sabia que a China está a ter uma grande evolução na área da Inteligência Artificial, que aliás é desconhecida na Europa, resolvi incluir esse tema.
Desconhecida até que ponto?
Não temos consciência de que a China tem o objetivo de ultrapassar os EUA, o que em certas áreas já foi atingido. Os planos são secretos, mas há pequenas coisas que se sabem, como as experiências que fazem com macacos usando células do cérebro humano. Isto permite-nos perceber que as experiências estão relacionadas com o aumento da capacidade craniana, da inteligência, e que se está a seguir o sonho nazi de criar um super-homem.
Embora seja uma área ainda muito controversa.
Claro! Num laboratório, posso criar um ser humano duas vezes mais inteligente e, ao lado, outro dez vezes mais. Isto resulta em múltiplas humanidades.
Uma estratificação de humanos.
Exatamente. Sendo que sabemos que a inteligência é o fator de maior desigualdade que existe, para tudo.
Está a referir-se a salários?
Para tudo. Até ao nível civilizacional. As pessoas mais inteligentes dominam as outras. A questão é: como é que vamos lidar com uma raça de pessoas superinteligentes que nos dominam facilmente? Isto vai criar grandes problemas.
Há aqui um outro elemento na equação, que é precisamente a Inteligência Artificial.
Há dois planos nesta questão. O primeiro é o aumento da inteligência biologicamente, o outro plano está associado à Inteligência Artificial. O que nos leva a outra pergunta: irá a Inteligência Artificial adquirir consciência? O livro dá uma resposta. Estou plenamente convencido de que é isso que irá acontecer.
O que expressa no livro corresponde ao que pensa sobre estas questões?
Sim. Mas apresento, sobretudo, o estado da arte. Procuro apresentar os vários ângulos da questão. Por exemplo, o telemóvel liberta-nos, mas também nos aprisiona. Por um lado, possibilita a organização de uma manifestação em Barcelona, enganando a polícia; por outro, permite que a polícia chinesa controle todos os passos de quem lá vai.
Portanto, a intenção não é apresentar uma posição.
Pois não. Nem sequer são opiniões. Quero que o leitor reflita sobre o que aí vem. Uma das reações comuns é dizerem-me que o livro faz pensar sobre a sociedade que nós já criámos e para onde ela vai.
A utilização da Inteligência Artificial vai permitir amplificar o alcance da Ciência. A que perguntas gostaria que nos ajudasse a responder?
A primeira coisa em que penso é ao nível da saúde, e acho que vai responder a tudo. A segunda é que vai permitir-nos sair da Terra. Vai ser a mudança mais dramática que iremos sentir.
Que é um assunto que já tinha abordado antes nos seus livros.
Sim, na Fórmula de Deus e no Sinal de Vida.
Aliás, há uma ligação entre este livro e o Sinal de Vida, ao nível das personagens. Já estava prevista ou aconteceu?
Não. Quando pego num tema, num romance, acabo por ficar ligado e interessado no assunto. E às vezes aparecem certas inovações que me interessa abordar, é uma espécie de spin-off.
Fez uma viagem à China para se preparar para este livro?
Não. Fui a um evento literário e deparei com uma realidade que é amplamente desconhecida da maior parte das pessoas. Nessa altura, nem estava ainda a pensar na trama deste livro. Mas quando se tornou conhecida a história do cientista que fez a edição de genes das gémeas, imediatamente comecei a relacionar o assunto com o que vi lá. Aliás, o Tomás conta a vigilância de que foi alvo, logo no aeroporto, quando se deslocou à China. Entre os milhares de passageiros que chegam todos os dias, há uma verificação um a um. Quando a China tem 300 milhões de câmaras para vigiar a sua população e um algoritmo permite imediatamente identificar quem é determinada pessoa e qual o seu pensamento político, temos aqui um grande problema.
Sentiu essa vigilância enquanto lá esteve?
Claro! É uma sociedade muito vigiada, orwelliana. Um totalitarismo digital.
Quão preocupado está com a privacidade digital?
Preocupa-me porque sou jornalista e escritor e acho que há alguma inconsciência relativamente ao que está a acontecer. Portanto, a minha intenção é levar as pessoas a pensarem nestas transformações, que já estão a acontecer. Como não conseguimos travá-las, devemos pelo menos tentar compreendê-las.
E o que faz o cidadão José Rodrigues dos Santos para se precaver?
Não posso fazer muita coisa…
Bem, não usa redes sociais.
Não é por isso. É porque não me interessam. Mas uso emails e é bom termos noção de que os emails são todos vigiados, sem exceção, pelo menos por algoritmos… O importante aqui para mim é que as pessoas, além de refletirem, tomem consciência do impacto que estas mudanças podem ter nas suas vidas. Por um lado, na questão da vigilância, por outro, nas questões relacionadas com a saúde, nomeadamente na utilização de novas tecnologias para curar um conjunto de males, do cancro à diabetes. No livro fala-se, por exemplo, de medicina personalizada. Em vez de um medicamento desenvolvido para toda a gente, começam a aparecer medicamentos que levam em conta o ADN de cada um, ajustados a cada pessoa. Este é um dos problemas que vão ser resolvidos com a Inteligência Artificial. Graças a isso, a imortalidade do ser humano passa a ser algo possível e plausível.
Acredita na imortalidade? O romance explica como é que isso acontece. Mas é um romance…
Sim, mas baseia-se em Ciência, no que foi descoberto até agora e nas previsões dos cientistas. Aliás, depois de ter feito a revisão ao livro, o professor Arlindo Oliveira [presidente do Instituto Superior Técnico] referiu que só há um evento lá descrito que ainda não é possível. Tudo o resto existe ou está iminente.
Gostaria de ser imortal?
Só quando estamos bem de saúde é que podemos dar-nos ao luxo de não querermos ser imortais. Próximos da morte, todos querem ser imortais. Sou realista ao ponto de perceber que mesmo que esta questão não me preocupe por agora, quando chegar a hora vai preocupar-me.
E então vai desejar a imortalidade?
Como qualquer ser humano. Quando a medicina desenvolver a imortalidade e as pessoas se aperceberem de que há um ou dois ricos a terem acesso a isso, vão exigir o mesmo. Haverá muita pressão em direção à democratização.
A qualquer preço? É comum ouvir–se pessoas que chegam a idades muito avançadas, com muitas morbilidades, dizerem que estão cansadas de viver…
Estão cansadas mas não se matam, vão continuando a viver. Se conseguirmos resolver os problemas do envelhecimento, as pessoas vão recusar esta hipótese? Não me parece. Podem dizê-lo, porque fica bem, até numa entrevista, mas na hora da verdade isso não vai acontecer.
Os seus livros têm cada vez mais de jornalismo, estão próximos dos acontecimentos mediáticos. Neste livro são referidos acontecimentos deste verão. É uma preocupação acompanhar a atualidade?
Essa preocupação tem mais que ver com a forma como desenvolvi a minha literatura. Escrevo policiais que incluem um tema da atualidade. Neste caso, o tema é a Inteligência Artificial, um campo em mudança permanente, e portanto fiz um esforço para ter o livro o mais atualizado possível. Por exemplo, quis incluir o aparelho anunciado pelo Elon Musk, o Neuralink, que permitirá uma comunicação entre o cérebro e um aparelho como um smartphone apenas pelo pensamento. Procuro que os meus livros, em vez de passatempos, sejam ganhatempos. Quem ler o Imortal fica a perceber de que forma é que a Inteligência Artificial está a influenciar e vai continuar a influenciar a nossa vida, para o bem e para o mal.
Já mudou de perspetiva relativamente a um assunto enquanto fazia pesquisa para um livro?
Ah, certamente! Muitas vezes.
Neste livro, como foi?
Aqui o que me surpreendeu foi a proximidade a que estamos de criar humanos imortais e as implicações que isso vai acarretar. O processo de mudança já começou e está a acelerar. Haverá um momento, chamado transcendência, em que a Humanidade tal como a conhecemos deixa de existir. Aliás, a epígrafe apresenta uma frase de Nietzsche: “O homem é uma corda esticada entre o animal e o super-homem, uma corda sobre um abismo.” Ou seja, a ideia de que somos animais mas estamos a transformar-nos noutra coisa.
E isso angustia-o?
Não, de maneira nenhuma! Mas há pessoas que me revelaram ter ficado angustiadas depois de lerem o livro.
Mas não partilha dessa angústia…
Ficar preocupado não ajuda nada. Para mim, o importante é perceber o que aí vem. A natureza humana está em mutação. E esta mutação é absolutamente necessária à nossa sobrevivência. O planeta Terra tem os dias contados, estamos a aproximar-nos do limite de habitabilidade e, portanto, a vida tal como a conhecemos tem de se transformar noutra coisa. Isto é angustiante, por um lado, mas a vida é mudança. No livro Alice no País das Maravilhas há uma personagem, acho que é mesmo a Alice, que está a correr num tapete que está a rolar, e por isso fica sempre no mesmo sítio. Quando lhe perguntam porque corre, ela responde: “Estou a correr para poder ficar no mesmo sítio.” É esta a nossa situação. Se pararmos, vamos ficar para trás.
Nem se preocupa pelas suas filhas?
Elas vão fazer parte desta transformação. Aliás, eu já faço parte desta transformação: há duas semanas, fiz um implante dentário, tornei-me um cyborg. É assim que as coisas começam. Um implante coclear, umas pernas artificiais… E por aí vamos. A ideia de que o natural é que é bom não é certa. Porque os pássaros são naturais e os aviões artificiais, mas os aviões voam mais depressa. Os peixes são naturais e os submarinos são artificiais mas chegam mais longe e vão mais depressa. Este enhancement vai acontecer ao nível da inteligência, da força. Aliás, já acontece. A dada altura, no livro, o Tomás usa um exoesqueleto militar. Isto não é ficção. Os militares norte-americanos já usam exoesqueletos e também óculos que lhes permitem ver à noite. A transformação começou por ser exterior – óculos, dispositivos externos, para vermos melhor. Mas já existem aparelhos usados dentro do corpo, como as lentes intraoculares. É importante as pessoas terem noção de que isto está a acontecer e de que pode melhorar as suas próprias vidas.
A edição de genes tem levantado muita preocupação…
No Ocidente. Os chineses não levantam a mínima questão.
Bem, a nível mundial houve uma reação muito forte, e negativa, à experiência feita pelo cientista chinês.
Pois, no Ocidente. Mas o que é que vamos fazer quando depararmos com uma geração de chineses superfortes e superinteligentes? Vamos ser submetidos, como os chimpanzés foram? Há uma atitude natural, conservadora, de resistência à mudança e acabamos por entrar em contradições. Queremos ser modernos, mas depois somos antiquados. Queremos os carros elétricos, mas não queremos o lítio. Queremos o turismo, mas não gostamos dos turistas. É uma visão simplista. Os problemas têm grande complexidade e tudo tem um custo. Não fazer nada tem um custo. Fazer tem outro custo.
Encara a China como uma ameaça?
Não a vejo como uma ameaça. Tem um quadro de valores diferentes. Certas coisas que nos deixam perturbados, certas diferenças, na cultura chinesa não são um problema.
Como a vigilância?
Sim, por exemplo. A manipulação genética não é um problema. Temos de ter em mente que os valores da nossa cultura não são universais. Por exemplo, os chineses ficam muito chocados quando veem os ocidentais a colocarem os idosos em lares da terceira idade. Isto é totalmente contra a moral de Confúcio, do respeito pelo mais velho.
Lida bem com a mudança?
Todas as pessoas oferecem resistência à mudança. Aliás, acabei de escrever este livro sobre novas tecnologias, mas eu mal sei lidar com elas… Se o computador me avariar em casa, fico a olhar para aquilo, sem saber como resolver. Portanto, neste sentido até nem me adaptei bem. Mas compreendo que a mudança é necessária.
A Europa está a ficar para trás?
O livro tem uma frase que é: “A América inventa, a China copia, a Europa regula.” Nenhuma grande empresa tecnológica é europeia. Apple, Google, Microsoft… nada é europeu. Ficamo-nos pela retórica. Inovar não se consegue por decreto. Na Europa há pessoas inteligentes, obviamente, mas é preciso criar condições. No entanto, o que temos é retórica, de políticos que não compreendem o problema e, portanto, falam mas não fazem. A Europa está a definhar, a desaparecer. Chegamos ao ponto de estigmatizar os transgénicos. Recusamos milho que consiga crescer no deserto, com o argumento de que não é natural. Então e os cães, são naturais? Nada é natural! As couves que comemos resultaram de cruzamentos. Estamos a ser completamente ultrapassados pela China e pela América. E isto vai agudizar-se. A mudança vai acontecer, connosco ou sem nós.