O professor do ano disse no Prós e Contras da RTP que nunca mandou nenhum aluno para a rua, em trinta anos de aulas. Ora, esse professor sou eu. E esse professor, quer se queira, quer não se queira, nunca mandou nenhum aluno para a rua. O alvoroço provocado em algumas pessoas, e a que esta revista deu espaço, por ter tido o topete de confessar publicamente um dado que para mim é “concreto e definido, como outra coisa qualquer” da minha vida profissional, gerou em mim uma atenção que não esperava. O programa era sobre violência na escola. E foi-o realmente, com dois colegas que haviam sido agredidos a exporem-se publicamente, o que para mim, que os não conhecia, revelou uma amplitude de alma e nobreza de caráter que nem sei como enaltecer devidamente. Misturou-se em vários momentos , entretanto, alhos e bugalhos, indisciplina, faltas de educação, violência, enfim, o normal em situações onde se abordam temas com tanta capilaridade semântica como, de resto, havia sido abertamente expresso no princípio do programa.
Percebendo, com o decorrer das intervenções, que se estava a estabelecer uma espécie de perceção a preto e branco pela qual os professores são meros mártires nas mãos de garotelhos delinquentes e violentos que, todo o professor o sabe, se passeiam, imperturbáveis, por muitas escolas deste país, tornou-se-me poderoso o imperativo de nunca admitir ceder esse poder a esses mesmos fedelhos e contribuir dessa forma clássica para a irrisão da autoridade do professor, da escola, da cultura.
Acredito, como muitos outros professores que, no momento em que baixemos essa guarda, toda a indulgente autoridade da escola e da cultura se desvanecem. Docentes e não docentes não podem deixar-se cair na armadilha da prédica do desgraçado. E protestar a sua “dignidade” não passa por exorbitar realidades nem por esconder o óbvio, pelo simples facto de que a violência acontece. E isto nunca irá significar, arengue-se o que se quiser, uma qualquer reserva na afirmação da náusea que todos sentimos por qualquer acto violento dentro ou fora do espaço escolar e a total e inequívoca solidariedade por todos quantos dela amargam.
Procurei, assim, adicionar uma outra visão do mesmo fenómeno. A visão dos muitos alunos e professores que contribuem positivamente para que a vida nas escolas seja positiva e benigna. A maioria, portanto. Péssima opção. Com esta perspetiva, dizem os detratores, estive a contribuir para negar que existe violência. Dessa forma, estive a dizer que está tudo bem no mundo da educação e pus-me a apontar o dedo acusador a todos os meus colegas que, ao contrário de mim, desgraçadamente sofrem horrores e mandam alunos para a rua. Quanto mais afirmasse as minhas vitórias, mais sublinhava as derrotas de outros. E é isto que não posso tolerar.
É inadmissível pretender que houve qualquer economia ética em declarar a repugnância que sinto pela violência nas escolas e muito mais ainda por aqueles colegas que ali deram a cara por todos quantos conhecem na pele, todos os dias, o flagelo da violência escolar. Mas é justamente aqui que é preciso dar esperança a todos nós que a vivemos quotidianamente. Sim, porque o facto de nunca ter mandado nenhum aluno para a rua não significa que viva numa qualquer bolha de inocência fofa que me impede de ver o que vai de profundamente errado e iníquo por essas escolas fora.
Passei nove anos da minha vida a solucionar problemas numa escola com sérios problemas de indisciplina, coexistindo diariamente com a polícia, CPCJ e tribunais, por causa de centenas de injúrias, ameaças, roubos e agressões. Tinha uma gaveta cheia de facas de ponta e mola que fui colecionando. Criei cursos de integração de jovens com problemáticas clássicas de abandono familiar e para quem a escola absolutamente nada significava. Com tempo e consistência fomos ganhando a batalha. Deixo a quem testemunhou este trabalho que nos julgue pelo que fizemos nesses anos.
Sou um pragmático. Percebi que é sempre possível melhorar todas as coisas. Tenho para mim que onde quer que entre, as coisas têm de ficar melhor do que estavam, quando chegar a altura de sair. Fui premiado porque os meus ex-alunos mo impuseram, e fiquei com um contentamento imenso por se terem lembrado de mim. Não se espere qualquer arrependimento por querer muito corresponder ao que de mim querem os meus alunos.
Lido há muitos anos com as redes sociais, e, tendo feito parte dos iniciadores dos blogues educativos em Portugal, estou mais do que acostumado às exorbitâncias declamatórias das caixas de comentários e demais tonitruâncias aparatosas de pessoas sentadas em casa. Não é, portanto, por causa do dramatismo oratoriano deste ou daquele personagem que me interessei por estas erupções digitais que envolveram o nome de todos os convidados para aquele programa. É por isso que me sinto tão confortável com esta controvérsia. Mas não posso deixar de manifestar a minha inquietação pela leviandade de muitas apreciações que têm sido feitas a propósito de coisa nenhuma.
De nada adiantou ter expressamente frisado que, lá porque a violência nas escolas é estatisticamente “residual”, se ouse aceitar que os professores agredidos sintam que são “resíduos”, palavra que me comoveu e indignou. Gostaria de ter sido mais vocal na minha repulsa pelas agressões. Não consegui sê-lo. Mas que ninguém confunda pouco tempo de antena ou mesmo as minhas muitas insuficiências com desdém pela dor alheia. Ainda por cima sabendo que nada me garante que amanhã não seja eu o agredido. É isso que me impõe este depoimento.