O ator Ângelo Rodrigues, internado com uma infeção grave alegadamente provocada por injeções de testosterona sem acompanhamento médico, é agora o rosto mais visível de uma realidade para a qual os especialistas em medicina desportiva e a Polícia Judiciária (PJ) vêm alertando há uma década – sem que ninguém tenha prestado a devida atenção. Há cada vez mais pessoas que não são atletas profissionais a recorrerem a substâncias para ganharem força e massa muscular em pouco tempo e há cada vez mais gente a produzi-las em Portugal, a vendê-las por cá ou a exportá-las.
Só no final do ano passado, ao que a VISÃO apurou, a PJ desmantelou um grupo que, no espaço de apenas três meses, produzira e se preparava para exportar duas mil caixas de esteroides anabolizantes com milhares de substâncias orais e injetáveis. Em 2016, outra megaoperação já desmantelara seis redes de produção e comercialização de esteroides no Minho, na Margem Sul e na região Oeste.
Agora imagine que alguém morre ou fica com danos graves por injetar testosterona ou outro anabolizante contrafeito. Imagine até que a PJ investiga e desmantela uma rede; descobre quem produziu e manipulou o produto e quem o vendeu. Imagine que estas substâncias eram vendidas como algo que não eram, que foram produzidas em garagens ou em vãos de escada sem condições mínimas de higiene ou até que continham entre os seus ingredientes óleo de fritar batatas (sim, estes exemplos são reais). Pois espante-se: se a vítima não for um atleta profissional; se for “apenas” um praticante de exercício físico; um ator que quer ficar com abdominais de capa de revista; um adolescente que nem se treina mas ouviu que, se consumisse tais produtos, podia deixar de ser um trinca-espinhas, nada acontece ao fabricante ou ao dealer. Não pode ser acusado, muito menos julgado ou condenado.
Para quem, como Luís Horta, aborda há anos nas suas aulas de medicina desportiva os riscos graves associados ao uso indevido destes produtos, defendendo que um bom treinador não deve fornecer testosterona a quem não tem défice dessa hormona, Portugal não tem feito o suficiente para combater um problema cada vez mais generalizado com a explosão do fitness e a emergência dos influencers que mostram nas redes sociais os seus corpos secos, musculados e modelados. Nas suas palestras, o ex-presidente da Autoridade Antidopagem de Portugal (ADoP) cita muitas vezes um estudo internacional feito entre utentes de ginásio que mostra que os homens têm perspetivas muito diferentes das mulheres sobre um corpo masculino perfeito: eles preferiam ter mais 7 quilos de músculo, enquanto elas os preferem com 7 quilos a menos. “Este estudo era suficiente para fazer uma boa campanha preventiva. Quando temos indivíduos que vão ao ginásio e que com a maior facilidade encontram um dealer, é na prevenção que temos de trabalhar.”
Até porque na área da repressão, os investigadores estão de mãos atadas. Um inspetor da Judiciária e o médico Luís Horta coincidem na opinião: “São necessárias alterações urgentes ao Código Penal” se quisermos evitar um problema de saúde pública no futuro. Isto porque a maior parte dos efeitos secundários dos esteroides só é visível a médio prazo. E uma coisa é tomar doses controladas; outra é aquilo que quem está no terreno vê todos os dias: gente a tomar “doses supraterapêuticas”, que chegam a ser cem vezes superiores às receitadas pelos médicos. Quanto maiores as doses, maiores os riscos de lesões hepáticas ou cardíacas.
Apesar de o Presidente da República ter ratificado, em novembro de 2018, um projeto de resolução referente a uma convenção do Conselho da Europa (convenção de MEDICRIME) que visa criminalizar a produção e a venda de medicamentos e dispositivos médicos contrafeitos e de a ministra da Justiça ter até anunciado a intenção de punir criminalmente a venda ilegal de produtos apresentados como “milagres para a saúde”, a intenção não foi ainda transposta para o Código Penal.
Maior do que o tráfico de droga
Médicos e personal trainers não têm dúvidas de que a grande fatia dos consumidores são praticantes de musculação que recorrem ao mercado negro, com a facilidade de uns cliques na internet ou de um contacto no ginásio. Mas, para já, só quem for apanhado a fornecer estas substâncias a atletas federados ou que participem em competições pode ser julgado e punido, no âmbito da Lei Antidopagem no Desporto. Ou seja: há um enorme vazio legal que impede o Ministério Público e a Polícia Judiciária de travarem um negócio que pode causar sérios danos à saúde e que rende milhões – estima-se que o tráfico de esteroides anabolizantes movimente atualmente mais dinheiro do que o tráfico de droga. A PJ sabe quem são muitos destes produtores e vendedores; sabe onde trabalham e onde atuam. Mas, muitas vezes, por falta de um simples diploma legal, nada pode fazer.
O País parece ter acordado para o problema com o exemplo mediático de Ângelo Rodrigues. Poucos tinham ideia de que seria tão fácil chegar a estes produtos ou de que haveria tanta gente a consumi-los. Mas o problema não vem de agora. “Nos mais jovens, sobretudo nestes que ascendem a ser estrelas, músicos ou atores, vemos uma enorme pressão social para se ser maior ou mais bonito. O que vejo é que já não são só os dos concursos de culturismo a consumir. São cada vez mais pessoas normais, jovens menos experientes que procuram soluções que viram na internet, fruto de alguns fitness influencers, sobretudo brasileiros, que têm um acesso ao doping muito facilitado. E também muitas mulheres”, explica um praticante de musculação que, durante anos, usou esteroides anabolizantes.
“No plano preventivo, faltava-nos um exemplo como este”, comenta um inspetor da Polícia Judiciária. Uma figura jovem e conhecida que pudesse provar que os médicos e investigadores não exageravam quando diziam que estávamos perante um problema. E que os riscos para a saúde, para os quais alertavam, eram de facto reais, mesmo que durante anos permaneçam invisíveis aos olhos da maioria.