“Se a criação de superinteligência não for a pior coisa que aconteceu à Humanidade, então é bem possível que seja a melhor.” Esta frase do génio da Física Stephen Hawking, falecido em 2018, exprime bem a divisão de águas que acontece em torno deste novo mundo – já não tão novo assim! – da Inteligência Artificial (designada como IA). De um lado, os pessimistas que anteveem desemprego em massa, perda de direitos dos trabalhadores e até humanos subjugados às máquinas. Mesmo Elon Musk, o homem da Tesla e da SpaceX, mostrou, a dada altura, preocupação relativamente ao advento da IA. Do outro lado, estão os entusiastas que acreditam que só assim conseguiremos curar as doenças mais complicadas, chegar a Marte ou libertar as pessoas de tarefas perigosas.
No Reino Unido, os sindicatos juntaram-se com o objetivo de alertar para o “lado negro da força”. No caso, a utilização de um algoritmo que monitoriza a atividade dos trabalhadores: quem envia um email a quem, e quando; quem acede aos ficheiros, quem se encontra com quem e quando… De acordo com as organizações sindicais, as ações de 130 mil trabalhadores ingleses estão a ser monitorizadas, em tempo real, por um sistema de Inteligência Artificial que classifica os funcionários.
O algoritmo, de nome Isaak, desenvolvido pela empresa Status Today, relata às chefias quem são os colaboradores mais cooperantes, classificando-os ainda como “influenciadores” ou “impulsionadores de mudança”. Ao adotar este sistema, a empresa diminui a injustiça e o viés na progressão da carreira, tornando-se a Inteligência Artificial uma poderosa aliada do combate ao “efeito cunha”, alega-se. A Status Today também afiança que este método possibilita uma melhor gestão de recursos humanos, ao permitir ajustar as tarefas ao ciclo de produtividade dos colaboradores, o que acabará por resultar em maior eficiência e em aumento da produtividade. Do outro lado da barricada, fala-se de limite ao pensamento criativo, de violação de privacidade e, ainda, de um obstáculo aos tempos de descanso.
Em Portugal, esta discussão ainda está por fazer. Mas não há como fugir dela. “A questão não é se este tipo de sistemas chegará cá. É quando”, defende o country business leader Pedro Brito, da consultora de recursos humanos Mercer Jason. “Neste momento, há manifestações muito claras de que as empresas portuguesas ainda estão a preparar-se para a introdução de sistemas de Inteligência Artificial”, continua. Mesmo assim, já se encontram alguns exemplos de utilizações desta natureza. “Assumindo que a contabilização de volume de trabalho está relacionada com a medição da produtividade dos colaboradores nas empresas de forma direta, desconheço que a IA esteja direcionada única e exclusivamente para o efeito. No entanto, existem softwares implementados em empresas a atuar no País que utilizam a IA para outros fins, tais como eliminação de viés em contextos de contratação ou desenvolvimento de talento e percursos de carreira”, avança Marco Gomes, especialista em recursos humanos, também da Mercer.
Prever o futuro
É o que faz, por exemplo, o gigante da tecnologia IBM, que emprega cerca de 380 mil pessoas por todo o mundo. Para avaliar o rendimento dos seus funcionários, a empresa passou a recorrer ao seu supercomputador Watson (mais conhecido pela aplicação no tratamento de dados da área da Medicina), que atribui pontuações, tidas em conta na altura da definição de promoções e bónus. A máquina também é capaz de prever o desempenho futuro – individual e por equipa –, com 96% de precisão, avançou um responsável da empresa à agência de notícias Bloomberg, e ainda informa quanto ao tipo de competências a ser desenvolvido, tendo em vista a progressão na carreira. É bem possível que muitas outras companhias venham a adotar o mesmo sistema, já que a IBM demonstrou intenção de comercializar o serviço.
Para o jornalista e cronista especializado em tecnologia, Tim Wostrall, a reação dos sindicatos britânicos perante a utilização do sistema Isaak (que está a ser usado essencialmente em gabinetes de advogados e em agências imobiliárias) é totalmente despropositada, segundo defendeu na publicação Continental Telegraph. “A IA representa apenas uma pequena mudança relativamente ao que as firmas de advogados já praticam”, com a contabilização das horas para faturação ao cliente, as semanas de trabalho de 50 horas e o despedimento sem apelo nem agravo sempre que não são cumpridos os mínimos.
“Em organizações de grande dimensão, com milhares de colaboradores, é muito difícil responder em tempo útil a todas as solicitações ao nível dos recursos humanos”, justifica Pedro Brito, avançando que já existem sistemas automatizados que respondem em segundos, e com rigor, a questões relacionadas com o seguro de saúde, as férias ou o trabalho extraordinário, por exemplo.
Admitindo ainda não ser grande conhecedor da matéria, Arménio Carlos, líder da CGTP, não tem dúvidas: deve ser sempre o Homem a controlar a máquina e não a máquina a controlar o Homem. “É preciso definir de forma clara quem comanda os robôs e de que forma. Deve ser uma atividade sujeita a um controlo rigoroso”, defende.
O direito a ser informado
Filósofos, especialistas em ética, economistas, psicólogos, todos devem ser chamados a esta conversa, que tem ficado praticamente por conta dos especialistas em Inteligência Artificial. Mesmo sem grande debate ao nível da sociedade, a legislação já prevê este tipo de tecnologia, nomeadamente o afamado Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD), aprovado no ano passado e no qual se proíbem decisões relativas a indivíduos que se baseiem, exclusivamente, no tratamento automatizado de informação.
“É obrigatório haver sempre intervenção humana”, sublinha a professora do ISCTE Maria Eduarda Gonçalves. “Reconhece-se ainda que os indivíduos se possam opor a decisões baseadas em processos automáticos”, especifica a especialista em questões relacionadas com a proteção de dados. Estamos a falar, por exemplo, de recrutamento, de concessão de créditos bancários, de promoções, etc. Tudo áreas em que a IA já começa a ser um braço-direito. “Se devidamente utilizados, como auxiliar no processo de decisão, e admitindo boa-fé, estes sistemas podem, de facto, ser úteis. Na gestão do clima, do trânsito…”, exemplifica Maria Eduarda Gonçalves.
A grande questão é que, dado o manancial de dados gerados, e utilizados a cada segundo, bem como o ritmo a que a tecnologia evolui, o regulador “perde a capacidade de controlo e passa a depender de denúncias e de informação que vem de fora”, alerta a professora e estudiosa do tema, que defende a denúncia e uma atitude vigilante por parte dos cidadãos. “Está consagrado o direito de sermos informados, pela empresa, de que estamos a ser avaliados ou controlados”, reforça.
Para os especialistas em recrutamento, consultados pela VISÃO, a utilização destes sistemas pode ser positiva sempre que o objetivo for o de beneficiar os trabalhadores e de tornar os processos mais eficientes. Nunca numa ótica de controlo. “Como vamos medir tempo e qualidade do pensamento? Será que vamos oprimir ou limitar a criatividade dos colaboradores? Vamos oprimir intervalos para descontração, podendo os trabalhadores ficar menos produtivos, apesar de surgirem ativos no sistema operativo?”, questiona Victor Pessanha, da Hays Portugal. E isto sem falar na sensação de falta de confiança, que pode minar por completo o empenho e o bem-estar.
Se tivesse de escolher, Pedro Brito não teria dúvidas: optaria por um mundo em que a Inteligência Artificial existe para tornar a nossa vida mais fácil. “No dia a dia estamos sempre a ser confrontados com a necessidade de fazer escolhas, de tomar decisões. No trabalho, na família, no lazer. Se a IA nos ajudar neste processo e se nos permitir ser mais felizes, tanto melhor”, opina. “Agora, é preciso que, em troca deste serviço, estejamos dispostos a partilhar dados, nomeadamente de natureza emocional”, sublinha.
Em Portugal, ainda estamos longe do exemplo britânico, acredita Pedro Brito. “O que já acontece [no País] é a recolha de dados com vista a uma melhor gestão global e não individual.” Um exemplo disso é o sistema desenvolvido pela empresa Axians, utilizado no campus de Carcavelos da Universidade Nova de Lisboa, que permite identificar o local, nas organizações, em que os colaboradores passam mais tempo, permitindo uma melhor gestão e otimização do espaço, incluindo os consumos energéticos e a distribuição do mobiliário.
“Bullying” corporativo
Maior equilíbrio entre a vida pessoal e a profissional é uma tendência clara do mundo do trabalho, muito por “culpa” da geração millennial que tem feito pressão nesse sentido. “Nota-se que há a preocupação na criação de políticas de Recursos Humanos mais centradas em conceitos como o equilíbrio trabalho/vida pessoal, em que se promove, por exemplo, uma maior flexibilidade de horário ou o trabalho remoto”, sublinha Victor Pessanha. Além disso, acrescenta: “As empresas baseiam-se cada vez mais em diretrizes de gestão de Recursos Humanos com base em objetivos e prazos, não tanto por horas trabalhadas ou outros indicadores deste género.”
Por esta razão, Victor Pessanha não acredita que os algoritmos venham a ser usados para o mal, já que daria a impressão de que a empresa estaria a dar um passo atrás. “Apesar de ser uma geração com mais aptidão para a tecnologia, os millennials podem ver estas tendências [para a dependência de sistemas de IA] como algo menos positivo.” Aliás, como os candidatos a emprego são cada vez mais bombardeados com informações e publicidade, no âmbito do recrutamento e do mercado laboral, sentem-se mais “desorientados” e com necessidade de aconselhamento de carreira. “Ou seja: a interação humana tem sido ainda mais valorizada do que no passado, no âmbito do recrutamento”, defende o responsável da Hays Portugal. “Se estes sistemas não tiverem como objetivo evitar situações menos positivas, ou proteger os colaboradores, serão vistos simplesmente como uma ferramenta que controla cada passo. Este tipo de estratégias vai contra o que se constrói atualmente, em termos de atração e de retenção de talento, dentro das empresas”, acrescenta Victor Pessanha.
Uma perspetiva partilhada por Marco Gomes. “É óbvio que não podemos deixar de fora da equação as pessoas, pois ainda são elas que estão a desempenhar maioritariamente as funções existentes nas organizações”, sublinha o especialista da Mercer. “Na minha opinião, a tecnologia de IA tem como grande objetivo ajudar as empresas e os gestores a melhorarem os seus níveis de eficiência, monitorizando melhor a sua atividade e, consequentemente, a atividade das pessoas. No entanto, tudo isto deverá ser realizado sem uma fixação obsessiva do indivíduo. Devem, pelo contrário, utilizar a tecnologia para conseguir ter uma visão descontaminada da sua organização e, depois, mergulhar nos tópicos que são críticos para se aumentar a performance de uma ou mais áreas”, especifica.
“Qualquer sistema pode ter um lado negro, dependente da utilização que nós, humanos, fazemos do mesmo. A tecnologia de IA, tal como a conheço presentemente, consegue aprender de acordo com padrões de informação que o humano lhe dá, pelo que os resultados que obtemos podem ser de elevada utilidade, na perspetiva de auxiliar o processo de tomada de decisão nas empresas. No entanto, e se quisermos, podemos levar a dimensão analítica para um campo menos positivo, conduzindo os gestores a uma monitorização quase obsessiva de indicadores de performance e de correlações com o negócio. No limite deste dark side, podemos assistir a bullying corporativo”, continua Marco Gomes.
Ou seja: o sistema será aquilo que o bicho Homem dele quiser fazer.