O foco de Vanda é simples: fazer educação para a cidadania, num modelo de proximidade – uma paixão que lhe corre nas veias desde que, muito nova, teve oportunidade de fazer parte de grupos comunitários. Depois da catequese, levada pela mãe, e das primeiras experiências de voluntariado, que a atraíram ainda adolescente, haviam de seguir-se ações de formação sobre a utilização do euro para populações em contexto rural e intercâmbios com jovens de outros países.
A dada altura, interessar-se-ia-muito por ecologia, depois por psicologia até que a mãe lhe apareceu com um folheto sobre o curso de serviço social. E não hesitou. Além da preparação teórica, o curso incluía estágios diversos – mas o mais interessante haveria de ser na unidade de saúde mental do Hospital São Francisco Xavier, em Lisboa, que lhe deu uma boa base para o trabalho que se seguiu, com a população sem abrigo e a associação Cais.
Era uma instituição quase com dez anos que nunca tinha tido o apoio de uma assistente social – e esse era o grande desafio. A partir de então, passaram a oferecer ateliês criativos e cursos de tecnologia e comunicação àquela população, querendo ir para lá do método assistencialista das sopas e cobertores, que se revela muito pouco transformador.
“O mais extraordinário foi termos conseguido levar uma equipa de pessoas sem abrigo a um campeonato do mundo de futebol”, adianta, a propósito da participação no Homeless World Cup, uma competição fundada por uma rede internacional de revistas e jornais de rua, como a Cais. “Só tivemos de por pessoas a jogar à bola, mas tanto que se aprendeu só com isso.”
O projeto durou quatro anos e foram esses campeonatos que mudaram a vida de Vanda e de tanta daquela gente – que, pelo menos durante aquele tempo, teve direito a um treinador e a ser acompanhado por uma equipa médica, viajando um pouco por todo o mundo, desde Edimburgo, na Escócia, a Gotemburgo, na Suécia, da Cidade do Cabo, na África do Sul, a Copenhaga, na Dinamarca. Homens e mulheres, de várias idades, tudo gente que vivia na rua ou em albergues, e ainda jovens institucionalizados, fizeram todos parte desse grupo de trabalho. O pacote incluía estágio intensivo no mês anterior ao campeonato e ainda aprender a tratar das papeladas, para poderem sair do país.
“Só estarem de camisola das quinas ao peito já era uma vitória. Mas essas participações tiveram muitas outras mais valias. Foram ao teatro, ao cinema, jantaram num restaurante pela primeira vez. Tiveram tratamentos de estética, cabeleireiro, fizeram até micros ao pulmão. No fim ganharam um brio e uma autoestima que estava perdida há muito. É que, de repente, eram cidadãos como os outros e muita dessa experiência valeu-lhes para o resto da vida”, assegura ainda Vanda, a recordar quantas vezes não lhe ligaram, depois, a contar que já tinham ido renovar o cartão de cidadão ou inscrito nos cursos do Instituto do Emprego, como jardineiros e afins. “Entre 50 a 60 pessoas acabaram por sair da rua. Mutos confessavam que, antes daquilo, se sentiam pior do que um animal abandonado.”
E foi por isso tudo que, quando esse projeto acabou, Vanda trouxe consigo o bichinho do futebol de rua e das suas potencialidades. Daí a ter desafiado algumas das pessoas com quem trabalhava a formarem uma associação de futebol de rua foi um ápice.
Recuemos então a novembro de 2007. Estava então a fazer mestrado quando, ao ouvir o presidente da junta de freguesia de Carnide falar dessa experiência inovadora que era o orçamento participativo, se fez um clique na sua cabeça: “O meu sonho era dar vida a uma organização horizontal, baseada na filosofia ubuntu, que deriva das políticas de Nelson Mandela na sua luta contra o apartheid, sem superiores hierárquicos e baseada no desporto”, confessa.
E foi assim que Vanda Ramalho, aos 39 anos, lançou a Associação Nacional de Futebol de Rua e o seu projeto Bola prá Frente, no bairro Padre Cruz, freguesia de Carnide.
“É que faz todo sentido neste bairro de grande tradição desportiva e associativa, desde os tempos em que Carnide ainda era uma aldeia onde os boémios lisboetas iam à procura do lazer fora da cidade. Além disso, foi a primeira freguesia a aprovar um orçamento participativo”, recorda esta assistente social, a assumir que quanto mais sabia sobre aquela zona da cidade mais lhe soava que tinha encontrado o lugar ideal para tornar o seu sonho uma realidade.
Imagine-se um bairro criado no momento em que avançava uma remodelação da capital, nos anos 1950, no seguimento das ideias definidas por Duarte Pacheco, um dos mais importantes ministros do Estado Novo e que liderou o desenvolvimento de um conjunto de obras que mudaram a face do país. Como havia muitas barracas, oriundas do êxodo rural, toda aquela gente viu-se primeiro enfiada em casinhas de lusalite e depois de alvenaria. Seria, assinala Vanda, um bairro sempre à margem, mas que, entretanto, se tornou o maior do género da Península Ibérica. Por ali vivem dez mil pessoas, um número revisto e aumentado nos anos 1990 quando recebeu mais pessoas, despejadas de suas casas com a construção do Eixo Norte-Sul – via que atravessa a cidade de Lisboa – e outras mais ainda, depois de se decretar o fim das barracas no bairro dos Olivais, antes do lançamento do projeto da Expo’98. Da cultura ao desporto, ali sempre houve formas várias de resistência ao regime – sobretudo, a que passava na sala da biblioteca, no centro comunitário, tentando fintar o fiscal que desligava as luzes do bairro às dez da noite.
“Foi tudo isto que me inspirou. Vim visitar o bairro e, no início, como não havia nenhum espaço para a associação, comecei com uma bola de futebol e um apito na praça da palmeira – porque me disseram que os miúdos jogavam lá à bola”, recorda.
No início, olhavam-na de lado, mas depois apareceram cada vez mais e mais vezes. Quando lhes perguntou o que os tinha levado a essa mudança, foram claros: “foste a única que não desististe de nós”.
A ela juntaram-se depois um treinador e uma educadora social. Apresentaram o projeto na escola e a partir daí foi sempre a crescer.
“O melhor de tudo é que sempre adorei desporto”, confessa ainda Vanda, arevelando um pouco da história da família e daquela avó que saiu da Madeira com um filho menor, que queria ser futebolista e até chegou a jogar no Benfica – embora essa justificação embrulhe a verdadeira razão, que seria a fuga a um marido bêbado que lhe batia, o que fez dela a primeira mulher daquela ilha a divorciar-se do marido por violência doméstica.
Começou, em conjunto com os jovens do bairro, a desenvolver uma primeira ideia desse projeto que se chama Bola prá frente, e está em andamento desde 2009. Ao fim de seis meses já tinha “agarrado” perto de cem jovens. Fazem dois treinos por semana e estão rendidos a uma série de regras da disciplina desportiva que lhe são muito úteis fora de campo.
Além disso, a tal praça onde jogam à bola ganhou um piso especial, o que lhes permite usá-lo para a capoeira e o hip hop – mas não só. O local tornou-se ainda o epicentro de todos os acontecimentos e festividades do bairro: desde o Ano Novo ao Dia do Vizinho, quando fazem uma feijoada comunitária. “E isto é fazer cidade, é dar voz à população. Para mim, isto é que é serviço social”.
A porta está aberta semanalmente – agora, para apoio ao estudo e formação em computadores, e ali não se fala nem em tráfico, nem em droga nem a qualquer outra questão à margem da lei. “Pelo contrário, até dizem a brincar que este bairro devia ganhar a taça BPC – de Bairro Padre Cruz – mas para Brancos, Pretos e Ciganos em união, que em lado nenhum lado há uma vida conjunta de todas estas etnias como aqui…”
Com o apoio da Federação Portuguesa de Futebol, avançou ainda o projeto da Bola Colorida, que empoderou um jovem do bairro, Carlos, vice-presidente da Associação, tornando-o treinador no bairro Horta Nova, que fica ali ao lado. “É uma forma de preparar a futura geração gestora do bairro”, segue Vanda, assumindo que muitos daqueles adolescentes e jovens adultos nunca tinham saído dali. “Não conheciam a baixa. No máximo, iam ao Colombo ou à Pontinha, num triângulo que lhes fechava os horizontes.
No entretanto, já ali houve um festival de arte urbana – bem visível nas pinturas cheias de cor nas laterais dos prédios – e os resultados na escola estão melhor do que nunca. Além disso, todo esta união tornou possível evitar que fechassem a esquadra do bairro e lhes construíssem um muro à volta, para os separar do espaço da futura Feira Popular – resguardando assim as hortas. “Um dia”, remata Vanda, a provar que não baixa os braços, “ainda vai haver metro aqui, no bairro Padre Cruz.”