Imagine viajar até ao outro lado do mundo sem precisar de visto, nem passaporte, nem qualquer documento de identificação. Entrar em casa ou ligar o carro sem chave. Andar de transportes públicos sem abrir a carteira. Ir ao multibanco e levantar dinheiro sem cartão, nem sequer telemóvel – fazermos tudo em todo o lado sem precisarmos de nada que prove que somos efetivamente nós.
É essa a promessa teórica da tecnologia de reconhecimento facial (conhecida pela sigla inglesa FRT): abrir-nos todas as portas, figurativa e literalmente. A profusão de câmaras associada à evolução tecnológica, com software cada vez mais avançado, começa a permitir o que até há meia dúzia de anos era, mais do que ficção científica, fantasia científica – sermos reconhecidos por máquinas, em qualquer lado.
Esse caminho já começou. Em muitos aeroportos, incluindo portugueses, já é possível passar pelo controlo de fronteiras sem um funcionário a cruzar a informação (e a foto) do passaporte com a nossa cara, tornando simples e rápido um processo penosamente longo. E uma das primeiras empresas do mundo a desenvolverem o controlo automatizado é portuguesa: a Vision-Box, que começou no aeroporto de Faro e hoje está presente em quase 80 aeroportos internacionais, servindo cerca de 100 milhões de passageiros por ano. “Os aeroportos não conseguem crescer à velocidade necessária. Autonomizar o controlo de fronteiras é a melhor forma de acompanhar o aumento do número de passageiros”, garante Miguel Leitmann, CEO da empresa.
Em 2007, quando a Vision-Box começou, “todo o mercado estava a apostar nas impressões digitais e no reconhecimento da íris”, recorda. “Mas nós sabíamos que a tecnologia ia melhorar. É mais conveniente capturar a face do que o dedo ou a íris.” O passo seguinte é alargar ao check-in dos hotéis, “para que toda a viagem seja automática, com as pessoas a irem diretas ao elevador”, diz.
As potencialidades da FRT (que hoje já vale perto de €3 mil milhões, valor que deve duplicar nos próximos dois anos) ultrapassam as pequenas grandes facilidades do dia a dia. Se, ou quando, se massificar, o mundo nunca mais será o mesmo. Um aluno malcomportado receberá um aviso personalizado no telemóvel ou num ecrã da sala de aula, porque uma câmara na sala se apercebe do seu mau comportamento. Alguém que tenha sido apanhado a roubar uma t-shirt de uma loja de roupa nunca mais conseguirá lá entrar, porque um dispositivo à entrada o reconhece e lhe barra o acesso. No limite, uma criança perdida será sempre encontrada. Um criminoso procurado pela Justiça será rapidamente capturado. Como se o planeta inteiro se tornasse uma gigantesca aldeia, em que toda a gente se conhece: quem é de confiança, é; quem não é, nunca terá fiado na mercearia.
“Cidadãos indesejados”
O fim absoluto do anonimato traz coisas boas, diz Pedro Veiga, professor universitário na área das novas tecnologias e ex-coordenador do Centro Nacional de Cibersegurança. “Pode ser muito útil para a identificação de hooligans, impedindo-os de entrar nos estádios.” O problema é que pode haver a tentação de aplicar a FRT a objetivos menos nobres. “E se for usada no mau sentido? Funcionários da NSA [National Security Agency, uma agência de espionagem dos EUA] usaram os meios ao seu dispor para espiarem as suas mulheres…”
Outra questão é saber que tipo de regime político vai aproveitar a tecnologia. “É muito perigosa nas mãos de países como a China”, aponta Pedro Veiga. O especialista recorda que já há polícias chineses que usam óculos escuros equipados com reconhecimento facial, para encontrarem “cidadãos indesejados”. Em circunstâncias ótimas de visibilidade, o sistema, ligado à base de dados do Estado, consegue reconhecer uma pessoa em três segundos, com cerca de 90% de precisão. Mas o que é um cidadão indesejado, num país não democrático e que se encontra na 176ª posição (em 180 países) no Índice de Liberdade de Imprensa? Será a FRT aproveitada para prender dissidentes políticos? No ano passado, foi efetivamente posta em prática durante o encontro anual do Parlamento, impedindo o acesso a jornalistas e ativistas que constavam de uma lista negra do Governo.
Mesmo numa democracia, a tecnologia pode ser utilizada abusivamente – até porque não há uma fronteira definida entre ilegalidades. Como se decide se se justifica? Por exemplo, será consensual na sociedade que um hooligan seja proibido de entrar num estádio. E alguém que tem uma dívida à Segurança Social ou uma multa de trânsito por pagar pode ser parado na rua por um polícia com uma câmara de FRT? Num Estado de Direito, que segue o princípio da reabilitação, é legítimo e moral um estabelecimento comercial impedir o acesso, ad aeternum, a uma pessoa que tenha sido apanhada a surripiar um par de meias? A pergunta não é retórica: duas das maiores cadeias de retalho americanas, a Target e a Walmart, têm feito testes com a FRT para impedir roubos, identificando clientes com cadastro.
Menos problemática, mas também valiosa, é a aplicação da chamada tecnologia de deteção facial na publicidade: da mesma forma que, online, os anúncios são personalizados de acordo com as nossas buscas, a deteção facial permite identificar características (sexo, idade e até estado de espírito) e adaptar a publicidade. “Um jovem que entre num banco pode ter à sua frente um ecrã que passa anúncios de empréstimos à habitação, porque a tecnologia detetou que se tratava de uma pessoa com características que se enquadram nesse produto”, explica Pedro Veiga. Estes casos (que já existem em centros comerciais) levantam poucas interrogações de invasão de privacidade: a informação recolhida é anónima e o sistema não está ligado a servidores com informação de FRT.
Nada impede, no entanto, que se junte uma coisa à outra, como no filme Relatório Minoritário, quando Tom Cruise está a fugir da polícia e entra num centro comercial que começa a disparar-lhe anúncios personalizados, tratando-o pelo nome. Claro que um cidadão sem nada a esconder não tem de ser preocupar. E nenhum de nós terá nada a esconder. Pois não?
Aplicações práticas
1
No multibanco
Em Barcelona, bancários do Caixabank já conseguem levantar dinheiro sem usar cartão
2
No emprego
As empresas podem vir a controlar entradas e saídas através da FRT
3
No aeroporto
Por todo o mundo, já há máquinas a fazer a segurança de fronteiras