Sabemos agora o que Rui Pinto fez no fim do verão de 2015, em setembro. Licenciado em História e génio informático, decidiu abandonar a vida pacata em Vila Nova de Gaia, onde nasceu, e infiltrar-se nos bastidores opacos do mundo do futebol. Lançou o site Football Leaks, que se tornou um “tsunami” de denúncias de contratos ilegais, comissões dissimuladas, negócios proibidos e esquemas de evasão fiscal, com um oceano de milhões à mistura. Para demonstrar a sua “imparcialidade”, nem o FC Porto, de que é adepto, poupou. Ou Cristiano Ronaldo, o seu ídolo – mas apenas dentro das quatro linhas.
Do Benfica foram expostas milhares de mensagens de email trocadas entre 2008 e 2017 por responsáveis da Luz, e, no estrangeiro, o Paris Saint-Germain, o Manchester City, o Real Madrid, o Barcelona e o presidente da FIFA, Gianni Infantino, viram o Football Leaks desviar documentação reservada e comprometedora. José Mourinho, Neymar e o “superagente” Jorge Mendes foram outros dos visados do “pirata” Rui Pinto, que se apresenta enquanto “denunciante”, à imagem de whistleblowers como Edward Snowden e Julian Assange.
Em abril de 2016, o Football Leaks anunciou uma pausa, mas Rui Pinto passou a um consórcio europeu de investigação jornalística cerca de 70 milhões de documentos e 3,4 terabytes de informações, incluindo emails pessoais de algumas das figuras mais influentes do futebol mundial. E as notícias bombásticas sucederam-se.
“COMO SE FOSSE O BIN LADEN”
Por cá, as primeiras queixas-crime à PJ contra o Football Leaks surgiram mal o site disparou as “balas” iniciais. Logo no final de setembro de 2015, o Sporting e a Doyen Sports (um fundo privado de especulação financeira, com sede em Malta, que gere carreiras de futebolistas e treinadores) denunciaram a violação dos seus sistemas informáticos. Mas a Judiciária demoraria até janeiro passado, vigiando e perseguindo o pai e a madrasta do hacker, para descobrir o paradeiro de Rui Pinto – na capital húngara, Budapeste, cidade que conhece bem (estudou ali História, em Erasmus).
Foi então emitido um mandado de detenção europeu (MDE) contra o “pirata”, com vista à sua extradição para Portugal, assinado pela procuradora Fernanda Barão, do DCIAP (Departamento Central de Investigação e Ação Penal), que as autoridades húngaras cumpriram a 16 de janeiro, prendendo Rui Pinto. No MDE, a procuradora atribui-lhe indícios da prática dos crimes de extorsão qualificada na forma tentada, acesso ilegítimo, ofensa a pessoa coletiva e violação de segredo, suspeitas que respeitam apenas aos processos iniciados pela Doyen Sports e pelo Sporting.
No dia 5 de março, uma juíza de 1ª instância do Tribunal Metropolitano de Budapeste validou a extradição de Rui Pinto, 30 anos. Os advogados do hacker (com honorários pagos pela Signal Foundation, entidade dos EUA que se dedica à defesa de whistleblowers) recorreram da sentença para o Tribunal Superior da capital húngara. O seu constituinte não queria ser extraditado, alegando que não vê no nosso país motivação para “lutar contra a corrupção no futebol” e que por cá existe a “cultura do clubismo”, mesmo nas magistraturas. Sente-se tratado “como se fosse o Bin Laden” e, sendo extraditado, diz recear pela sua vida. Mas não explicou com que meios de subsistência vive na capital húngara.
Apesar dos ataques que desferiu às autoridades portuguesas, Rui Pinto, entretanto extraditado e em prisão preventiva, deverá ter atenuantes (e a integração no programa de proteção de testemunhas), de modo a obter a sua colaboração em investigações sensíveis. Sabe-se, aliás, que a PJ está desejosa de deitar a mão aos computadores e discos rígidos apreendidos pela polícia húngara ao hacker. No mesmo cenário, é também certo que a Parquet National Financier (unidade do Ministério Público francês de combate aos crimes económicos) há de ser rápida a pedir à Procuradoria-Geral da República a continuação da parceria que tem, desde 2016, com Rui Pinto, num processo que investiga “associação criminosa, evasão fiscal agravada e branqueamento de capitais”. Parece que, aos registos que aqui se deixam, hão de suceder-se acrescentos sonantes.
Ronaldo 1
As provas usadas pelo Fisco espanhol, com base em fugas promovidas pelo Football Leaks, obrigaram o internacional português a pagar 18,8 milhões de euros de impostos em falta, para evitar a prisão efetiva.
Ronaldo 2
Emails fornecidos por Rui Pinto à revista alemã Der Spiegel, que serviram de ponto de partida para uma aprofundada investigação jornalística, levaram o futebolista a ser publicamente confrontado com acusações de violação, alegadamente ocorrida há anos em Las Vegas, EUA. Nasceu assim o “caso Kathryn Mayorga”.
José Mourinho
O mesmo acervo de documentos que o Fisco espanhol usou contra Ronaldo também atingiu José Mourinho – igualmente acusado de utilizar empresas offshore para dissimular rendimentos. Há pouco tempo, o treinador aceitou uma condenação a um ano de prisão, com pena suspensa, e o pagamento de uma multa de dois milhões de euros, por fraude fiscal.
Jorge Mendes
O designado “superagente” Jorge Mendes vê neste momento os seus negócios escrutinados pelas autoridades de Portugal, Espanha, Reino Unido, Irlanda e Holanda. As suspeitas são de fraude fiscal, com base em informações divulgadas pelo Football Leaks.
Os emails da “águia”
Rui Pinto é ambíguo quanto à divulgação dos milhares de mensagens de email trocadas entre 2008 e 2017 por responsáveis do Benfica, e que deram origem a uma investigação por suspeitas de corrupção. Não confirma nem desmente ter sido ele o autor das fugas.
Exposição “leonina”
O Sporting foi a primeira entidade a apresentar uma queixa-crime na PJ contra o Football Leaks. Participou uma violação do seu sistema informático, através da qual se ficou a saber, por exemplo, que o então treinador, Jorge Jesus, tinha um salário anual de cinco milhões de euros. Caso conquistasse o campeonato nacional, somaria mais dois milhões.
“Triste” com o “dragão”
Adepto portista confesso, Rui Pinto diz ter ficado “entristecido” com uma descoberta que o leva a suspeitar de um suposto “desvio de verbas” no FC Porto, ligando o caso a Alexandre Pinto da Costa, filho do presidente, e a um fundo com sede na Áustria.
O fundo especulativo
A Doyen Sports, um fundo privado de especulação financeira, com sede em Malta, que gere carreiras de futebolistas e treinadores, e que tem como investidores empresários cazaques e turcos, acusa Rui Pinto de tentar extorquir um milhão de euros à instituição. O hacker contra-ataca, chamando ao fundo “uma máfia”.
Clubes europeus
Rui Pinto está a colaborar com a Justiça francesa na investigação de supostos ilícitos cometidos pelos donos do Paris Saint-Germain, originários do Qatar, e do Manchester City, estes do emirado de Abu Dhabi. Segundo o Football Leaks, os referidos investidores terão injetado 4,5 mil milhões de dólares (3,9 mil milhões de euros) ilegalmente naqueles clubes, para aumentar o orçamento e cumprir as regras de fair-play financeiro da UEFA. Estas regras estipulam que os clubes não podem gastar mais do que ganham num ano, com uma tolerância de limite de prejuízo até 30 milhões de dólares (€26,5 milhões) em três épocas.