No gabinete do pediatra Mário Cordeiro, os livros infantis partilham as estantes com os peluches familiares. Nas paredes, há pinturas abstratas feitas pelo médico que presidiu à Associação para a Promoção da Segurança Infantil, publicou dezenas de livros e manuais sobre bebés, crianças e adolescentes, e tem uma cadela adotada, estando também ligado à Provedoria dos Animais de Lisboa. Aos 63 anos, o mais novo de oito irmãos e pai de cinco filhos optou por reformar-se da Função Pública e dedicar-se apenas à clínica privada. O ponto central da conversa não foi o romance ou a poesia, paixões que lhe dão atualmente muito gozo, mas antes o seu novo livro, que pretende desafiar-nos, a todos. Pais Apressados Filhos Stressados é sobre o tempo que não temos mas podemos ter, se conseguirmos fazer escolhas conscientes e desfrutar da vida, enquanto dura, com quem amamos – sem despachar tudo e todos nem andar a reboque, lamentando: “Prefiro a adrenalina dos dias de semana ao stresse dos fins de semana.”
Comecemos pelo fim: a família vista pelos olhos do cão…
Quis mostrar um casal e três filhos, numa sexta-feira à noite, exaustos, cada um com o seu programa a colidir com o dos outros e a discutir quem tem razão. O cão observava, sem ter a noção do tempo dos humanos. Tem aquilo que advogo no livro: ouvir, parar, pensar e refletir antes de fazer e de ser dono do tempo.
O mal-estar infantil e juvenil, aliviado com fármacos, por vezes em excesso, pode ser evitado?
As chamadas drogas sempre existiram. Podemos drogar-nos até com trabalho e desporto. Fugimos à realidade quando ela se torna pouco suportável. Temos de aceitar que somos finitos e que o tempo é escasso. As fugas para a frente criam a disrupção dos ritmos biológicos do animal que somos. Mudar o quotidiano implica parar e pensar.
O que pensarão as mulheres portuguesas que, à luz de um estudo, só têm 54 minutos do dia para elas?
Embora aquém da igualdade de direitos de género, estamos melhor do que há 40 anos. Se nós e as instituições políticas e laborais assumirmos isso, chegaremos à meta em menos de cinco gerações.
Como arranja tempo para fazer tudo o que gosta?
Faço o que me dá prazer. Tenho este grau de liberdade, porque lutei por isso. Quando os meus filhos eram pequenos, não havia sábado sem festa de aniversário. Se era possível iam; quando não era, não iam. Eu sempre lhes disse: não são menos pessoas por não irem a todas. Ir a todas e correr à procura nem se sabe do quê cria um stresse enorme e impede o desfrutar das coisas. Ser humano não é ser perfeito; é aperfeiçoar-se e ter gozo nisso.
Ter sofrido um enfarte contribuiu para ter uma vida mais tranquila?
Acho que não. Penso neste tema há algum tempo e tenho um estilo de vida tranquilo. O problema de saúde teve que ver com uma herança genética.
No livro, retrata os adultos como seres que vivem uma angústia existencial e que a transferem para a prole. O que se passa?
Fui buscar o livro O Macaco Nu (Desmond Morris, 1967) para ilustrar isso mesmo. Construímos sociedades bem diferentes das dos nossos antepassados, mas continuamos a ser mamíferos com crias dependentes, incapazes de fazer escolhas.
Refere-se ao paradigma do sucesso de que tanto se fala?
O ter e o fazer estão a dominar a sociedade. O desejável é que pais e filhos cheguem a casa e que desliguem durante um bocado, envolvendo-se em atividades calmas. É preciso perceber o que queremos da vida e deixar as comparações. “Quero um carro igual ao do vizinho.” Costumo usar o nonsense. “Sabe uma coisa? Vou arranjar uma betoneira”, disse uma vez a uns pais. Eles ficaram a olhar para mim, perplexos. “O meu vizinho também tem uma.” A frugalidade é preferível à ganância do ter por ter: quando se tem algo, isso perde o interesse.
Há quem diga que as obras sobre a parentalidade geram sentimentos de culpa e de inadequação nos pais. Confirma?
Nos meus livros, procuro tranquilizá-los, mas uma pessoa que leu este título disse-me que ficou inquieta. A ideia é mesmo essa: dar mais poder aos pais, sem que eles tenham receio de reconhecer os seus erros. Quando se queixam do comportamento dos filhos, sugiro que pensem como uma empresa, que reúnam o conselho de administração num sítio agradável e conversem, usando até o método de análise SWOT (Forças, Fraquezas, Oportunidades, Ameaças), e que descubram, por exemplo, “uma maneira de fazer com que o Zé se torne mais persistente sem ser casmurro”.
Sobre a hiperatividade: doença, sintoma de mal-estar ou, como se queixam alguns adultos, falta de educação?
De facto, há uma ideia de que tudo o que se mexe é hiperativo e de que todos os que sonham têm défice de atenção. Retirando os casos de dispersão e a falta de concentração, com hiperatividade sem aspas, posso dizer que as crianças vivem numa contenção enorme e com excesso de vigilância. Em vez de apanharem ar puro e de brincarem na rua, passam o tempo em espaços fechados, e até os prisioneiros têm mais liberdade do que elas, como se disse num estudo recente.
Pertence a uma família numerosa e foi por várias vezes pai. Como lidava com as birras e com os maus comportamentos?
Tentamos sempre definir regras e explicar por que razão elas existem. Dizer só “Manel, não faças isso” resulta em ameaças e em castigos – “ficas sem ver televisão durante uma semana” – que não se cumprem. Mesmo que a criança obedeça, fica à espera de que o regime caia para fazer o que quer. Freud explicava isto bem. No território da fantasia, há total liberdade, posso pensar que sou serial killer, mas o polícia interno refreia-nos e permite desenvolver a empatia: “Extirpar pessoas não é bom. E mesmo que o seja, já pensaste no que a pessoa sentirá?” O bom polícia vem dos pais. A atitude deles permite que a criança ultrapasse a fase narcisista e interiorize que há coisas que não pode fazer.
O que os pais precisam de saber para estar de bem com a vida e facilitarem a dos filhos?
Parar para pensar, sem medo. Ser frugal e pôr fim à ânsia, quase ganância, do ter. Contemplar, deleitar-se, descobrir a vida. Nas relações com o próximo, não criar um colete de forças sentimental à volta dos outros por terem opiniões divergentes. Apreciar as microexpressões, o silêncio, as pausas, como numa composição musical que não é possível sem elas.
Qual a fatura de crescer a despachar, em modo acelerado?
Um filho stressado é menos autónomo, independente e responsável. Não somos donos deles nem eles são réplicas nossas, mas podemos influenciá-los através de valores que lhes damos. Se inventámos as máquinas foi para nos permitirem dedicar-nos à criatividade, à fantasia e à arte. A ligação do corpo com a Natureza, por exemplo, está completamente esquecida na escola. É quase um crime.
É também um alerta que faz aos professores.
Durante quase 40 anos fui professor, sei que eles nem sempre são bem tratados face à importância que têm. Porém, ao entrarem numa aula, desliguem dos problemas e descubram coisas novas com os alunos. Lembro Agostinho da Silva, a quem perguntaram sobre o que iria falar numa apresentação, que respondeu: “O que quereis saber?”