Há uma dúzia de anos que Catarina Belo dá aulas na prestigiada Universidade Americana do Cairo. Deixou-se fascinar pelo Egito ainda na década de 90, quando o seu interesse pelo mundo árabe era já evidente.
Aos 44 anos, a especialista em Filosofia islâmica medieval confessa que foi com o “coração nas mãos” que viveu a Primavera Árabe, o movimento de protesto que se estendeu a vários países do Médio Oriente, a partir do final de 2010. No Egito, as manifestações culminaram com a demissão do presidente Hosni Mubarak, no poder há 30 anos, em 2011. Afinal, o que mudou no país depois dessa revolução?
Catarina Belo traça o retrato da sociedade egípcia e procura desfazer preconceitos em relação ao Islão – lembrando a importância da paz na cultura islâmica. E explica de que forma os conceitos de democracia e liberdade religiosa são entendidos no mundo árabe. Incontornável é a importância da obra do seu pai, o poeta Ruy Belo (1933-1978), na construção da sua identidade.
Como é viver no Egito sendo mulher?
Como dou aulas numa universidade americana, somos todos tratados da mesma maneira. A diferença de tratamento das mulheres no mundo árabe não é tanto a nível legal, mas mais uma questão cultural. E varia muito de país para país. No Egito, as mulheres podem trabalhar, algumas antigas alunas da universidade onde dou aulas são ministras, mas mais facilmente os pais deixam os filhos irem estudar para fora do que as filhas. Os papéis são mais tradicionais, mas também depende muito das famílias.
As suas alunas exigem mais liberdade?
Julgo que sim. Também há diferenças consoante as classes sociais – nas mais altas talvez seja mais fácil as mulheres terem mais liberdade. Se formos ver filmes do Egito dos anos 70, ou mesmo dos anos 50, são poucas as mulheres que usam véu. No século XX, houve um feminismo próprio do mundo árabe, particularmente no Egito. Creio que ainda há um desenvolvimento desse pensamento feminista.
Sente-se segura no Egito?
Claro que há problemas de segurança mas, de um modo geral, sim. Em termos da pequena criminalidade, por exemplo, sinto-me completamente segura. Nunca tive problemas. Há uma tendência para dizer que havia mais segurança antes da Primavera Árabe, mas eu não sei se corresponderá à realidade. Infelizmente, volta e meia, há um atentado, seja contra a comunidade cristã ou contra alvos turísticos.
Como viveu a Primavera Árabe?
Tinha uma licença sabática de um semestre, mas acabei por ficar cá. Foi um período vivido com o coração nas mãos. Só fui à Praça Tahrir depois da queda do presidente Mubarak. Pareceu-me melhor seguir os acontecimentos de longe. Havia uma grande instabilidade e incerteza.
Ponderou abandonar o país?
Não, achei que a situação ia melhorar e que as coisas se iam resolver.
O entusiasmo da revolução afogou-se na desilusão?
O objetivo imediato foi conseguido. As pessoas continuaram na Praça Tahrir até o presidente Mubarak se demitir. Depois, seguiram-se muitas convulsões. Não estou a ver muitos egípcios a quererem recuar a esse período por causa da instabilidade, sobretudo porque a economia foi muito afetada.
Mudou verdadeiramente alguma coisa?
Mudou o governo. No primeiro ano houve várias eleições, mas era tudo muito incerto. A seguir esteve a Irmandade Muçulmana no poder até ao regime atual do presidente el-Sisi. Durante o período de governo da Irmandade Muçulmana houve muita instabilidade, até porque havia bastante resistência. Eles ganharam por uma margem muito curta e o país estava realmente dividido.
Está em curso uma radicalização islâmica do Egito?
Neste momento, em relação aos regimes anteriores, julgo que não. Parece-me que este governo tenta manter um certo secularismo ou, pelo menos, algum equilíbrio entre as várias religiões. Há uma tentativa, pelo menos da parte do governo, de não haver essa radicalização.
A sociedade egípcia está dividida entre religiosos e progressistas?
A sociedade egípcia é bastante religiosa. Houve um grande apoio aos Islamistas logo a seguir à Primavera Árabe, mas ao fim de um ano ou dois esse apoio começou decrescer. Neste momento, a maioria dos egípcios é moderada.
A convivência entre a maioria muçulmana e as minorias cristãs é difícil?
Oficialmente, existe uma política de coexistência. Poderá haver alguns problemas a nível mais local, em certas partes do Egito, mas há uma tentativa de não fazer distinção em relação à religião. Quando houve um atentado numa Catedral do Cairo, o presidente foi ao funeral das vítimas, um claro gesto de apoio à minoria cristã, que representa uma parte muito importante da identidade do Egito.
Os ocidentais têm muitos preconceitos sobre o Islão?
Não sei… Na comunicação social o que aparece não é o dia-a-dia, mas os acontecimentos mais radicais associados ao Islão. Por isso, talvez alguns tenham…
Qual desses preconceitos é urgente desfazer?
Associa-se sempre o Islão à violência, mas esse é um fenómeno específico. O Islão tem uma história de praticamente 1400 anos, a sua extensão geográfica é enorme, há que ter em conta essa diversidade. O Islão não é uma coisa só.
Persiste a ideia de que o islão radica numa religião intrinsecamente violenta?
A paz é muito importante no Islão. Aliás, a saudação islâmica é um desejo de paz. São os grupos radicais – minoritários – que acabam por chegar às notícias. Também a instabilidade que se seguiu à Primavera Árabe – na Síria, no Iémen, na Líbia… – tem sido, obviamente, muito noticiada. É essa realidade que chega ao grande público, e não a normalidade do quotidiano que é, evidentemente, muito mais pacífica. A violência não faz parte da essência do Islão.
Os muçulmanos têm sabido lidar com os atentados cometidos em nome do Islão?
Há uma autoridade central no Egito, que é válida para todo o mundo sunita, que é a Universidade Al-Aazhar, com o grande imã Ahmad Al-Tayyeb, com quem o Papa Francisco esteve nos Emirados Árabes Unidos, e ele condena sempre os atentados. Só às vezes aparece nas notícias, mas há sempre essa resposta oficial.
É suficiente?
Há um grande esforço de combate ao terrorismo porque as suas primeiras vítimas são os muçulmanos. No Egito, há atentados contra coptas e alvos turísticos mas, no panorama do Médio Oriente, as primeiras vítimas são os muçulmanos. Além disso, é ruinoso para a economia e para tudo o resto.
Diz que no Islão não é clara a diferença entre religião e política. Como é que isso se manifesta?
O Islão está presente na sociedade mesmo a nível do Direito. Por exemplo, os cristãos têm leis diferentes dos muçulmanos em relação ao casamento e ao divórcio. Portanto, a nível social, a religião tem um peso muito forte. Também tem influência a nível político, mas há uma separação entre as autoridades políticas e as autoridades religiosas, pelo menos aqui no Egito. Há um peso mais marcado da religião, mas com alguma separação entre religião e política.
O conceito de democracia é facilmente compaginável com o Islão?
Pode haver várias definições de democracia, e é possível que as coisas estejam a evoluir. A Primavera Árabe alterou algumas coisas, mas a religião continua a ter muito peso e prevê-se que continue a ser assim. No Egito há limites que não existem na Europa. É diferente aquilo que se pode ou não dizer em relação à religião.
Faltou um movimento Iluminista no Islão?
O Iluminismo implicou uma crítica muito forte à religião que não é considerada aceitável pelos muçulmanos. Na Idade Média, o mundo islâmico estava muito mais avançado do que a Europa, em termos de novas ideias, da tecnologia, da ciência… Eu não lhe chamaria Iluminismo, mas diria que surgiu um humanismo islâmico nessa altura.
A História ser ensinada em Portugal de um ponto de vista eurocêntrico é um problema ou é simplesmente natural?
É normal que a narrativa seja feita a partir do olhar do sujeito. O único problema, e isso vê-se na questão colonial, é que os outros povos não vão aceitar isso e terão, necessariamente, uma narrativa diferente. É preciso ter em conta que há outros pontos de vista e pensar no impacto das nossas ações. Eu sei que tem havido um debate em Portugal, claro que alterámos o curso da História mundial, disso não há dúvidas, mas é preciso ter em conta o impacto dessa ação no resto do mundo.
Em Portugal desprezamos a nossa herança árabe ou ela é suficientemente valorizada? Até o fado pode ter influência árabe…
Sim, é possível que o fado tenha origem árabe. Na arquitetura, sobretudo a sul, sente-se essa influência e na língua também. Essa presença não desapareceu, ainda está viva. Há interesse pela herança árabe, mas ainda se pode desenvolver mais. Eu tento contribuir para isso, tenho traduzido algumas obras, sobretudo de filosofia islâmica.
Como olha para os movimentos de devolução de obras de arte aos países de origem? O Egipto teria muito para reclamar?
O Egito e não só. Mesmo nos anos 20 do século passado, já existiam leis no país para impedir a saída de antiguidades, mas havia sempre atividades ilegais que levavam a que certas coisas desaparecessem. Houve alguns problemas durante a Primavera Árabe, desapareceram algumas coisas do Museu Egípcio e outros museus mais a sul também foram saqueados, mas os egípcios podem perfeitamente tomar conta das suas antiguidades. Nesse sentido, faz sentido as obras voltarem. Mas há muitas coisas que ainda estão a ser descobertas. O deserto ainda tem muitos tesouros para nos dar.
Como podem acomodar-se religião e filosofia? É possível haver harmonia entre ambas?
Tanto a religião como a filosofia dão uma perspetiva total da realidade. Há vários filósofos do Islão medieval que dizem que são formas distintas de falar sobre a realidade, mas que a essência da mensagem é a mesma. A única diferença é a forma como essa verdade se exprime, através de uma linguagem e de um discurso diferentes. Claro que esses filósofos tendem a valorizar a filosofia, dizendo que é científica, enquanto a religião usa metáforas e imagens. No fundo, dizendo que a religião é para as pessoas que não podem ser filósofas.
Há liberdade no Egito?
Não posso falar por toda a gente… Em algumas coisas até há mais liberdade do que na Europa – na maneira de conduzir, por exemplo. Na Europa há regras para tudo e mais alguma coisa, aqui é tudo muito mais descontraído. Depende do tipo de liberdade…
Há menos liberdades individuais?
Depende completamente das famílias. O que eu noto em relação aos meus alunos é que os pais são muito importantes no momento de os filhos decidirem o que vão estudar ou de escolherem o seu parceiro ou parceira. São questões culturais, também religiosas, mas sobretudo culturais. Há um peso muito maior da família nas decisões pessoais.
A liberdade religiosa ainda é problemática. Ser ateu é uma opção difícil…
Na Europa, o discurso religioso passou para a esfera privada, e os crentes têm receio de falar em público, no Egito é ao contrário. A dimensão religiosa é muito forte. Isto é válido para cristãos e muçulmanos. Digamos que há uma opinião prevalente e, aqueles que discordam, porventura não estarão à vontade para falar sobre essas questões.
Que relação tem com a obra poética do seu pai?
Continuo a ler a poesia do meu pai, tem que ver com a minha identidade. Ele deixou uma obra, mas também uma biblioteca, que é fundamental para mim. E também há a questão de gerir todo o espólio. Agora de forma um pouco mais ativa porque a minha mãe [Maria Teresa Belo] faleceu no ano passado. Há o projeto de criar uma casa Ruy Belo em Óbidos e alguns dos exemplares da biblioteca já foram para lá. Tenho muito orgulho, claro.