Na noite da catástrofe, Alda estava em casa com o marido e os filhos. A mais nova de mês e meio. Diz que de repente começou a sentir-se muito nervosa. “Parecia que o coração pulava, saltava…” Não conseguia ficar parada. “Vai aconteceu alguma coisa”, disse para si, Alda Moreira, hoje com 53 anos. “Foi então que a bebé chorou”, segue a funcionária do lar da terceira idade.
“Corri para ela, pu-la ao peito e voltei a deitá-la no berço ao lado da cama. O meu marido sentou-se para ligar o despertador. Foi quando ouvimos a notícia: Tragédia em Entre-os-Rios. A ponte caiu. E eu só pensei: ai jesus, será que a minha mãe já chegou? Sai de casa a ver se sabia alguma coisa. Fui a correr à outra minha irmã. Que sim, tinha caído um autocarro. ‘Oh Jesus, ó Zé Manel, tu ouviste isto?’. As pessoas começaram a juntar-se e a falar. Chegou um autocarro, mas não era aquele. Voltei para casa. Pouco depois, o noticiário confirmava: caíra um autocarro. Mas eu não queria acreditar. Não podia ser. As coisas não acontecem assim, não é verdade? Liga-me uma irmã de Lisboa: oh Alda, está tudo bem? Diz-me, diz-me se aconteceu alguma coisa. ‘Não sei’, respondi. ‘Diz-me, tu estás a enganar-me’, insistiu ela. ‘Ai Felicidade diz-me tu alguma coisa’. Desligou. Passados uns minutos, voltou a ligar. ‘E o Lino, o Lino também foi?’ ‘O Lino (como chamávamos ao meu irmão Adelino), o Lino também’. A minha irmã desligou e meteu-se no primeiro comboio. A seu lado, uma senhora comentou-lhe: ‘já viu que o aconteceu em Entre-os-Rios? Que tragédia!’ Quando a olhou, reparou nas lágrimas cara abaixo. Já não a largou e veio com ela o resto da viagem.
De manhã, vi-a chegar, era a minha afilhada, a minha irmã mais nova. Agarrou-se a mim aos gritos. Já começávamos a entrar na ideia de que pudessem ter sido eles – mesmo que, durante muitos anos, sempre que parava um autocarro, nos convencíamos que pudessem ser eles. A gente imaginava que eles iam chegar, a toda a hora. Fomos para casa da mãe, dispor as fotografias e as velas e rezar. Rezámos durante muito tempo, sempre a ouvir as notícias. Até ao mês de maio ainda fazíamos as rezas à noite – e no terço. Depois, como era o mês da novena, começámos a ir fazê-las à igreja, todos os dias. Entrei em depressão. Tive de tirar o peito à minha filha, ela não gostava do leite da farmácia, foi sempre um caso muito complicado. Comecei a perder sangue. Um dia acordei e tinha a cama toda ensanguentada. O médico veio aí e mandou-me para a psiquiatra. Era a doutora Margarida. Fui medicada. Passou um ano e mais outro e eu ia tendo recaídas.
Um dia, estávamos na novena e apareceu o presidente da câmara. Tinha surgido o corpo de um senhor. Disse-nos que tinha uma chave no bolso e eu pensei logo: ‘é o meu irmão, ele tinha levado as chaves do carro’. ‘Não sabemos, Alda, não sabemos. Fica calma’, disse-me ele. Mas como ele vinha com a GNR e a Polícia Judiciária, iludi-me mesmo: ‘ai, é o meu irmão’. O meu grupo da novena bem ia insistindo que não era o corpo que interessava, era o espírito, que o espírito estivesse bem, que o corpo não era importante. Mas era. Eu agarrei-me ao meu filho do meio e disse.” ai, meu filho, o teu padrinho apareceu”. O Lino era padrinho dele. E o meu filho só dizia: “o quê, mãe?’ Eu sei que fiz mal ao meu filho, ao dizer-lhe aquilo, mas era a emoção a falar.
Quando me mostraram as chaves, foi como se tudo caísse, tudo desabasse – porque não eram as chaves dele. A vida foi passando, sempre unidos. A minha irmã veio viver para mais perto. Era importante, porque até ali a minha mãe era o meu apoio. Mesmo assim foi difícil, porque tinha a bebé e trabalhava por turnos. Acabei por tirar uma licença de dois anos. Como não queria estar em casa sem fazer nada, fui tomar conta do café que era deste meu irmão. Quando os miúdos vinham da escola, ficavam ali. Era uma vida presa. Não havia tempo para eles. O café nunca fechava, estava aberto todos os dias.
Ao fim de dois anos, tive de retomar o meu emprego. A minha bebé já tinha dois aninhos e o meu marido, que estava desempregado, passou ele a estar no café. E foi-se levando assim. Até que abriu a instituição, e o meu marido é aqui cozinheiro. Foi muito mau. A minha filha fazia anos a 13 de janeiro e a minha mãe a 14. Havia dias em que a vestia para a ir mostrar à minha mãe, nem dando conta que ela não estava. A minha mãe dizia sempre: ‘ai que morro e não tenho uma neta com uns olhos azuis como os meus.’ E a minha filha tem os olhos azuis. Deus deu-me uma coisa e tirou-me outra.
Em outras alturas, mesmo medicada, eu pensava em suicídio. Tinha uma necessidade tão grande, mas tão grande, de saber o que era o outro lado, de saber se eles estavam bem, que pensei em tudo. Parecia que os meus filhos já não eram o suficiente para me manter cá. Eu só pensava. Tenho de saber se eles estão bem. Por ironia do destino, fui operada passado uns meses, mais ou menos um ano. Meteram-me uma máscara e deram-me uma anestesia geral. Lembro-me de a enfermeira dizer assim: ‘Dona Alda, tente adormecer a pensar em coisas boas.’ Comecei a pensar na minha filha pequenina. Mas enquanto estive a dormir estive com a minha mãe e o meu irmão.
Era tudo tão bonito, tão branquinho, uma paz tão grande. A minha mãe estava sentada, a passar a mão pelo cabelo. O meu irmão disse-me: ‘estás a ver o que a vida é? Tem de ser aproveitada’. Foram as palavras que ele usou. ‘Não aproveitada não tem valor, estás a ouvir, Maria? Que era assim que ele me chamava”.
Era a altura em que tinham chegado as indemnizações, e aquilo revoltou muita gente, aquilo revoltava-nos. Não precisávamos daquele dinheiro. Precisávamos deles. Isto não deixou ninguém bem. Continuamos a ter de trabalhar, a ir à luta. E sem eles. A minha mãe só dizia: ‘Não ligueis, não ligueis. Dai ao desprezo’.
De repente, comecei a ouvir alguém a chamar ‘D. Alda, D. Alda, está a ouvir-me?’ Era a enfermeira. Quando me apercebo que estou a voltar esgadanhei as enfermeiras todas, aos gritos, eu estava tão bem e foram-me buscar. ‘Mas que sonho mau foi esse?’, perguntavam. Disse que não, era um sonho bom, tinha estado com a minha mãe e o meu irmão que morreram em Entre-os-Rios. Aí a médica ficou aflita, que nunca podia ter levado aquela anestesia, que era por isso que o meu subconsciente tinha ido para aquele lado, e que podia não ter voltado. Mas a mim até parecia que me tinha feito bem, para mim era real, fiquei mais tranquila. Dizia a toda a gente que tinha estado com a minha mãe e o meu irmão.
O pior veio depois. O meu filho, que tinha então sete anos – agora tem vinte e três – começou a ter comportamentos estranhos. Medos. Comecei a preocupar-me. Numa altura, tinha a varanda cheia de plantas, de orquídeas cheia de flor e ele fugiu de uma mosca. Nunca tinha acontecido, não era normal. Depois, começou a ter nojo de mãe: não lhe podia por a roupa, não podia pôr-lhe a mão, dar-lhe um beijo. Nojo, medo, pedi ajuda. Quando cheguei à psicóloga, ela disse. O seu filho está muito doente, já não está nas minhas mãos. Tem que ir para psiquiatria. ‘Doutora, ajude-me, não sei o que fazer’. Foi enviado para o Maria Pia, o hospital das crianças, onde foi medicado e me perguntaram-me para onde queria que fosse. Que aquilo era um distúrbio emocional não resolvido, provocado pela perda do tio e da avó.
Aos 14 anos, só dizia: não nunca, não nunca – a falar da morte, que os pais nunca haveriam de morrer. Até aos 18 anos, ainda conseguia ter mão nele. O doutor até dizia que parecia um milagre. Eu disse: Eu rezo tanto, se há milagre, deve-se a Deus. Como aquilo que ele mais gostava era informática – ir à escola era uma tortura, ele nunca queria ir – foi para Aveiro estudar. Veio de lá viciado em jogos. Em 15 dias, gastou 1200 euros em jogos. Só tinha na ideia voltar lá. De autocarro ou à boleia. Pedia dinheiro a toda a gente.
Pedimos ajuda, outra vez, para o tratar. Foram quatro anos muito dolorosos, que ele ficava muito violento quando não tinha forma de jogar. Sofri de violência doméstica do meu filho. Ninguém imagina o que passámos. A filha foi retirada pela Proteção de Menores, logo ela que se portava bem. Mas ele ficou em casa.
Depois, a nossa sorte foram os médicos do tribunal, que o mandaram para um centro terapêutico. A alternativa era a prisão. Ele fez muitos crimes. Por onde passava só fazia asneiras. Mas como estava diagnosticado com transtorno obsessivo-compulsivo, o centro terapêutico é onde está hoje. Lá, como não tem jogos, viciou-se em tabaco: no outro dia, trocou um telemóvel que lhe comprei, ao gosto dele, e que me custou 150 euros, por um maço de tabaco. O meu filho não pode estar bem. Agora, não pode vir para casa. Já não vamos poder viver o que não vivemos estes anos todos. Isto tudo consequências disso – da tragédia da ponte de Entre-os-Rios. Não foi só aquele dia.”