Estima-se que haja 800 mil cuidadores no nosso país. Têm a seu cargo idosos, pessoas com demência, crianças com doenças graves. O seu trabalho, não reconhecido, vale €333 milhões por mês. Ficaram de fora na nova Lei de Bases da Saúde, aprovada na semana passada. Apesar disso, o Governo garante que irá dar atenção ao assunto ainda nesta legislatura.
A história de José e Maria é apenas uma entre milhares.
José Monteiro, oficial da Marinha, e Maria Odete, professora de Ciências da Natureza, conheceram-se num bailarico da noite de Santo António, já lá vão 61 anos. Estavam ambos a acabar o liceu. O namoro começou logo ali, entre uma marcha e uma sardinha assada e fez-se de visitas ao fim de semana, enquanto ele andava no Alfeite, e depois de cartas da guerra. Casaram-se com 24 anos, já José regressara de Angola. A vida correu, normal, feliz. Quatro filhos, sete netos, amigos, viagens de carro pela Europa.
Quando se preparavam para gozar a reforma e os netos, começaram as zangas, as implicações, as faltas de paciência. Andaram assim quatro anos.
“Não percebia bem o que se estava a passar. Achei que éramos simplesmente dois velhos a embirrar um com o outro.”
O ambiente tornou-se tão hostil que o filho mais novo saiu de casa para não os ouvir. Da suspeita da médica até ao diagnóstico tardou um ano: Alzheimer.
“Nunca tinha ouvido falar disso. Pus-me a pesquisar na net, vi filmes, fiz-me sócio da Alzheimer Portugal e frequentei todos os workshops que me pudessem ajudar a lidar com a doença dela. Nestas formações senti empatia, ouvi histórias parecidas com a nossa. Percebi que afinal eu não era uma ilha.
A parte inicial da doença é muito complicada para os doentes. Começam a aperceber-se das suas limitações, o que dá origem a muita irritação, a uma grande frustração. A pessoa tenta fazer uma coisa e não consegue e acaba por descarregar em quem está mais próximo, normalmente o cuidador.”
Primeiro foi o computador. Maria Odete, antes ágil e expedita, deixou de conseguir operar a máquina, mesmo com a ajuda das cábulas que o marido lhe montara. Depois foi o telemóvel. Por mais modelos que testasse, nenhum lhe obedecia. “Não imagina a quantidade de telemóveis que lhe comprei…” Ia ao supermercado e comprava, comprava, em duplicado, triplicado.
Aos 70 anos, veio a crise maior. Quando a médica de família se negou a passar-lhe um atestado para renovação da carta de condução, Maria Odete virou-se do avesso. Exigiu uma avaliação pela Junta Médica, tentou tirar nova carta, comprou um carro daqueles que não necessitam de carta. Teve tantos acidentes que o marido passou a esconder-lhe o carrito. E ela, sempre que conseguia, escondia-lhe as chaves.
Nesta fase, até a própria casa se tornara numa ameaça. Mudou-se o fogão, as escadas de acesso ao piso superior foram vedadas, deixou de poder estar sozinha. De dia, ficava uma empregada a tomar conta. De noite e ao fim de semana era José quem zelava por ela, seguindo-a por todo o lado. Quem não os conhecia julgava que José era um marido controlador e de mau feitio. Mal sabiam que era de amor que se tratava.
A situação acabou por se tornar insustentável. José ficou emocionalmente afetado, ganhou uma úlcera duodenal, acentuada pelo stresse.
“O momento mais difícil para mim foi quando estive internado no IPO. Fui operado e estive vários dias nos cuidados intensivos. Quando finalmente pude receber visitas, os meus filhos levaram-na. Ela chegou lá, olhou para mim e não me ligou absolutamente nada. Eu sabia que era por causa da doença. Mas, mesmo assim, aquilo custou-me tanto! Aquele desinteresse…”
Este episódio representou um ponto de viragem, Não tanto pela tristeza, ainda hoje visível quando se recorda do sucedido, mas pela noção de finitude da sua própria vida.
“E se me acontecesse alguma coisa, quem cuidaria dela?”
A família tratou de encontrar uma casa de saúde e Maria Odete mudou-se para lá. “Não era esta a minha vontade. Eu gostava que ela ficasse sempre comigo.”
Desde então, José ruma à Casa do Alecrim, na Alapraia, Cascais, todos as tardes, para passar tempo com a mulher.
“Nos primeiros minutos ela olha para mim e deve pensar: quem é este gordo de bigode?” Mas “o gordo” vai-lhe fazendo uma massagem, dá-lhe o jantar à boca, oferece-lhe um doce de sobremesa. “Roubo na comida para lhe poder dar um mimo. Ela sempre foi muito gulosa.”
Quando descobriu, lá por casa, as cassetes que ouviam durante as viagens de carro pela Europa, José passou também a levá-las para a hora da visita. E Maria Odete, que deixou de conseguir falar, vai fazendo um murmúrio, às vezes um sorriso. “Dizem que é apenas um esgar”, lamenta-se José. Mas nós sabemos que na sua cabeça, ou lá onde for que mora o amor, ele sabe o que realmente é: gratidão.