Foram 40 anos de amor platónico, no microcosmo de Elvas. Mas quando Maria de Lourdes se divorciou, Manuel Cruz, separado há muito, não perdeu mais tempo: fez-lhe a corte e conquistou-a. E havia uma “aventura de namorados” para oferecer à professora reformada do 1º Ciclo e hoje empresária agrícola. Com a bolsa de Erasmus que obtivera para terminar o curso desde sempre sonhado, Engenharia Agronómica, Manuel Cruz, quadro do Ministério da Agricultura, tinha de voltar à faculdade da Universidade de Iasi, no Norte da Roménia, para prestar as provas finais das três cadeiras que lhe faltavam – Pastagem, Física e Estatística. Mas ele, então com 62 anos, e ela, com 63, aliaram o trabalho académico a uma lua de mel antecipada (reúnem três filhos e quatro netos, e casar-se-iam a 12 de março de 2016).
Após passar num exame de Inglês, Manuel Cruz foi parar a Iasi, cidade com cerca de um milhão de habitantes. E gostou. “É uma espécie de Coimbra”, define. Encontrou uma faculdade “com muito boas instalações”, professores de “alto nível” e, para relaxar, o London Bar, frequentado por médicos, advogados e gente afim. “A Roménia não é nada do que imaginamos – está em franco progresso”, diz. Mas se observou “um bom parque automóvel”, também viu “muito tráfico de droga” e percecionou um sentimento de insegurança: “As pessoas parecem ter receio de sair à noite.” E na frequência do primeiro semestre em Iasi, calhou-lhe como colega de quarto, na residência universitária, “um miúdo italiano misantropo, calado e hostil”. Com um frio de rachar lá fora, o rapaz insistia, por exemplo, em abrir as janelas. “Queria a toda a força que me fosse embora”, recorda o agora engenheiro agrónomo. Superior à mesquinhez, Manuel Cruz fez-lhe a vontade: mudou de quarto.
O que interessa, porém, é dizer que o nosso homem teve 20 em cada uma das três cadeiras que lhe faltavam para se licenciar. Foi com essa alegria que partiu com a noiva, Maria de Lourdes, para a tal lua de mel antecipada. Alugaram um carro e viajaram cerca de 2 200 km de ida até à costa romena do mar Negro e volta a Bucareste, para apanhar o avião de regresso a Portugal. “Aquilo é como se fosse a lezíria do Tejo”, descreve Manuel Cruz, encantado. “Tudo direitinho e cultivado – milhares e milhares de hectares.” Hoje tem amigos de 15 nacionalidades no Facebook.
“Porque não?”
A Agência Nacional de Erasmus regista, de 2014 a 2017, sete concessões de bolsas a candidatos que, “à data da mobilidade”, tinham idades entre 58 anos (um) e mais de 60 (seis). Todos com uma vontade imensa de não serem “cotas”, mas estudantes como os outros. Manuel Cruz até aceitou submeter-se a uma praxe ligeira num politécnico português, no qual completou 17 cadeiras em ano e meio, vivendo num “quartinho” alugado: “Fizeram-me umas perguntas em privado”, diz com um sorriso malandro. Já Vasco Silva (adiante falaremos mais dele) levou o assunto a sério: “Esbracejei na lama, atiraram-me ovos à cabeça e, como sou gordinho, tinha um cartaz a chamar-me ‘Santana’, a lembrar o Vasco Santana”, conta, divertido. Bancário reformado e hoje mestre em Arqueologia, Álvaro Pereira não foi “praxado” (a prática não é bem-vista na FLUL – Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa), mas, como Manuel Cruz, fez questão de participar na Queima das Fitas do seu curso, “fardado” a rigor.
Filho único, o lisboeta Álvaro Pereira começou a trabalhar aos 14 anos, para ajudar os pais. Iniciou-se numa casa de câmbios, enquanto tirava o curso comercial à noite, entrou para os quadros de um banco e, ao cabo de 35 anos de serviço, reformou-se como diretor de 2ª linha. Embarcou depois numa viagem de seis meses pela Oceânia e pelo Oriente. No avião de regresso a Lisboa, este avô de quatro netos já se indagava sobre o que iria fazer a seguir. Na verdade, não havia muito para pensar. Desde pequeno que tinha a paixão das histórias que as pedras podem contar. Ainda no ativo como bancário, frequentava cursos de Arqueologia para amadores aos fins de semana. E eram livros sobre esse seu fascínio que os colegas de trabalho lhe ofereciam quando fazia anos.
Mas o impulso decisivo para se inscrever no curso de Arqueologia da FLUL foi-lhe dado pela mulher, Ana Mafalda, professora de Matemática no Secundário: “Porque não?”, limitou-se a perguntar-lhe. Seguiu-se um vendaval para Álvaro Pereira. Ao contrário dos seus receios iniciais, ninguém o tratou como um “velho”. No entanto, havia uma coisa que espantava os colegas de curso: “Sofres tanto como nós nos testes, e já fizeste a tua vida.” Álvaro Pereira não podia levar os estudos mais a sério. E logo na primeira escavação, no Monte Molião, em Lagos, sob um agosto escaldante, ganhou uma “medalha de batalha”, como lhe chama – uma lesão num joelho.
“Se tivesse 22 anos…”
Álvaro Pereira acabaria por ser um dos dez licenciados no conjunto de 50 colegas de curso. Avançou depois, estimulado pela “equipa que tinha passado e que não me deixou dizer adeus”, para a tese de mestrado, com base no “primeiro amor”: o Monte Molião. Tirou a limpo porque existiam ali tantos objetos de cerâmica de cozinha africana, do período romano imperial, quando o nosso litoral estava cheio de oleiros. “Cheguei à conclusão de que aquela cerâmica era mais barata, resistia melhor ao fogo e arrumava-se com maior facilidade, tipo ‘tupperware’”, revela.
De seguida, outra pergunta começou a bailar-lhe na cabeça: os arqueólogos portugueses são mesmo os melhores da Europa a escavar, como se consideram? Uma conferência de um professor da Universidade de Varsóvia, Piotr Dyczek, a que assistiu na FLUL, deixou-o com dúvidas. Adorava ir ver como lá se trabalhava. E, uma vez mais, a sua mulher incitou-o: “Se é o que queres, vai.” Depois, o professor Dyczek abriu-lhe as portas: “Vem quando quiseres.”
Obtida a bolsa de Erasmus para o estágio, Álvaro Pereira ficou esmagado com o que observou na Universidade de Varsóvia. Há ali vários centros de investigação arqueológica, que abarcam, por divisão de departamentos, todas as regiões do planeta, estando equipados com a mais alta tecnologia. “Ao contrário de nós, usam métodos não invasivos, detetando antes da escavação, com o equipamento tecnológico que têm, se existem ou não estruturas e metais no subsolo”, explica Álvaro Pereira. Ele viveu essa experiência integrando uma equipa de sete arqueólogos (com quatro polacos e dois albaneses) e dois geofísicos (um romeno e outro húngaro) que, num jipe, percorreu 1 850 km para escavações nos Balcãs. “Procuram grandes estruturas, grandes peças; a nós, interessa-nos o pequeno artefacto.” Esta foi uma das substanciais diferenças que Álvaro Pereira encontrou – além do trepidante bar da Universidade de Varsóvia, que está aberto de segunda a domingo, com música ao vivo. “Se tivesse 22 anos, se calhar vivia a experiência de outra forma…”, admite ele, à beira de completar 61 primaveras, e agora empenhado em organizar passeios que expliquem achados arqueológicos em linguagem acessível a leigos.
Também na Polónia, mas na WSUS (Wyższa Szkoła Umiejętności Społecznych), universidade de Poznan, cidade a meia distância entre Varsóvia e Berlim, esteve Vasco Silva. Natural de Oliveira de Azeméis, tirou o curso comercial e trabalhou arduamente desde os 22 anos (vendedor de produtos de moda, de relaxamento e descanso, de utensílios de cozinha, teve cargos de direção na indústria do calçado e numa imobiliária…). Aos 60, deu consigo em completa exaustão. “Quase perdi a sanidade mental”, confessa. Foi então que anunciou à família ter um “projeto” – sem mais especificações.
A prova do “pub crawl”
Vasco Silva demorou quase oito meses a maturar o tal “projeto”, que não era mais do que o regresso aos estudos. Quis assegurar-se de que ainda teria “aptidão” e de que isso restabeleceria o seu “equilíbrio emocional”. Concluiu pela positiva. Escolheu a Escola Superior de Gestão de Idanha-a-Nova, ligada ao Instituto Politécnico de Castelo Branco. “A escola está numa vila única, que alia o ambiente bucólico e rural à agitação estudantil”, justifica. E matriculou-se no curso de Solicitadoria. Explica: “Quando trabalhei no imobiliário, deu-me gozo deslindar imbróglios de propriedades mal registadas.”
Aceitou logo integrar a comissão coordenadora da residência universitária e iniciou a “vivência académica como qualquer estudante”. E obteve depois a bolsa de Erasmus para começar o 2.º ano do curso na polaca WSUS. Vasco Silva ainda aguarda que uma das suas três filhas lhe dê o primeiro neto, mas “adotou” um na viagem para a Polónia. Convenceu o colega Átila Medeiros, 20 anos, a candidatar-se, igualmente, à bolsa e à WSUS, no que foi bem-sucedido, transformando-se no “tutor” do jovem.
Em Poznan, com excelentes notas nas cinco cadeiras que fazia, Vasco Silva era um dos mais animados participantes no “Pub Crawl”. Também há em Idanha – chama-se “Rally Tascas”. É “uma moda espalhada por todo o mundo estudantil”, diz. E, já prestes a terminar o ano, obteve do seu coordenador polaco autorização para concretizar outro “projeto”. Sozinho e apenas com uma mochila às costas, percorreu uma mão-cheia de cidades do Leste europeu. 15 dias “inesquecíveis”.
O seu Erasmus prosseguiria na Universidade de Léon, cidade no Noroeste de Espanha. Não gostou. “Cada professor tem um método próprio de avaliação e classificação, num regime académico e de estudos muito violento – até os alunos espanhóis se queixavam disso”, conta. Mas agora, aos 63 anos, Vasco Silva prepara uma festança para 4 de agosto, de comemoração simultânea das quatro décadas de casamento com Maria da Glória, educadora de infância reformada, e da obtenção da licenciatura – apesar de ainda ter nove cadeiras por concluir. “Vou terminar o curso este ano”, assevera a quem duvide. E segue-se o quê? “De braços cruzados é que não ficarei.”
Bolsas democráticas
No Erasmus, são todos diferentes, todos iguais. Veja porquê
1 – Não há quaisquer limites etários para a participação no programa
2 – Para poder fazer mobilidade,
o estudante terá de estar vinculado
a uma instituição de ensino superior, em Portugal
3 – Por cada ciclo de estudos (licenciatura, mestrado, doutoramento), um estudante ou recém-graduado pode realizar até 12 meses de mobilidade
4 – Um estudante pode realizar várias mobilidades (estudos, estágio ou estudos + estágio), desde que respeite
o período mínimo e não ultrapasse
os 12 meses por cada ciclo de estudos
5 – O valor da bolsa é variável, dependendo do país de destino, do tipo de mobilidade e da duração da mesma