Será possível saber se uma mancha de sangue foi recolhida ante ou post mortem? Esta é uma das respostas que faltam no Processo 504/16.3GABNV, a que a VISÃO acedeu, o qual investiga a possibilidade de o advogado Álvaro Dias ter simulado a sua morte para se “eximir à ação da Justiça”. Num dos vários processos que o visavam, Álvaro Dias foi condenado, a 18 de novembro de 2016, a cinco anos e meio de prisão efetiva, por falsificação de sentenças num tribunal arbitral que criou (e que o Ministério da Justiça licenciou) e por burla agravada.
Pouco mais de um mês depois, à hora do almoço do dia de Natal, o advogado seria dado como morto, vítima de um estranho acidente, em que foi atropelado e esmagado pelo seu próprio carro, na quinta onde se recolhia, na luxuosa Herdade da Mata do Duque, em Benavente (Santarém). Já iremos aos pormenores. Mas, em resumo, o que o processo investiga implica que “alguém” tivesse arranjado um cadáver “substituto” para “plantar” no local do acidente, de forma a que Álvaro Dias “se refugiasse no Brasil” e assim se “furtasse à ação da Justiça”.
O caso é monitorizado ao mais alto nível das autoridades judiciárias, com a máxima discrição. E há um passado que o explica. A Unidade Nacional Contra a Corrupção, da PJ, chegou a criar uma equipa especial após a VISÃO, em 2007, ter denunciado os crimes de Álvaro Dias. O epicentro estava num tribunal arbitral que o advogado fundara em Lisboa e cujo esquema funcionava assim: ao passarem as suas propriedades ou quotas para outra empresa, muitas vezes “fantasma”, empresários em dificuldades financeiras fugiam aos credores que os procuravam com ações de arresto. O património, porém, era vendido a terceiros, e os lucros acabavam divididos entres as partes.
É um desses lesados, presidente de uma comissão de credores, que se constituiu assistente no processo, quem tem apontado falhas nas investigações. A verdade é que duas procuradoras-adjuntas da secção de Benavente do DIAP (Departamento de Investigação e Ação Penal) viram as suas decisões de arquivamento (a 18 de abril de 2017 e a 24 de janeiro de 2018) reprovadas por dois superiores. Ou seja: o processo que investiga a alegada simulação da morte de Álvaro Dias já regista dois encerramentos e duas reaberturas das averiguações.
Identificações falsas
Tudo se iniciou com uma notícia do jornal regional O Mirante, a 26 de dezembro de 2016, a qual dava conta da morte, na véspera, de Álvaro Dias, aos 56 anos. O advogado tinha chegado à casa da Herdade da Mata do Duque para o almoço e, após estacionar o Rolls-Royce de coleção, modelo Silver Shadow II, com matrícula espanhola de 1967, o carro “começou a descair em marcha-atrás”, porque o travão de mão não fora acionado. Ao aperceber-se da situação, relatava a notícia, Álvaro Dias “tentou voltar a entrar no veículo para o travar, mas embateu numa árvore, depois de ter conseguido abrir a porta e acabou por ser atropelado”. Segundo o jornal, “os Bombeiros Voluntários de Benavente foram chamados ao local, por volta das 13 horas, assim como uma Viatura Médica de Emergência e Reanimação” e uma patrulha da GNR. A vítima, porém, “já não apresentava sinais de vida” quando os meios de socorro chegaram à herdade.
Um mês depois, uma denúncia anónima cai na secretária do juiz Carlos Alexandre, no Tribunal Central de Instrução Criminal, em Lisboa. O denunciante identifica o local e todos os intervenientes do que testemunhou, na manhã de 22 de setembro de 2016. Foi com um amigo a um stand de automóveis na capital. Quando falavam com o dono do estabelecimento, o telemóvel deste tocou. “Atende e cumprimenta a pessoa como sendo o dr. Álvaro Dias”, escreve o autor da denúncia. “Disse que a meio da tarde iria ao escritório do advogado”, mas “foi informando o interlocutor que a drª (…), a advogada amiga, tinha tratado de tudo no Hospital de São José”. Também “iria tratar de tudo logo que ocorresse o acidente, em especial a comunicação à companhia de seguros”. E o dono do stand, segundo o denunciante, “sugeriu” à pessoa com quem falava “que no Natal deveria levar o Mercedes antigo, que era mais pesado, e não a máquina que tinha vindo da Alemanha (…)”.
O juiz Carlos Alexandre elabora, então, um despacho de remessa da denúncia anónima à chefe de gabinete da procuradora-geral da República, Joana Marques Vidal. E escreve: “(…) Presidi a buscas nas quais foram encontrados muitos documentos de identificação falsos (em número de dezenas) em gavetas do escritório do sr. Advogado [Álvaro Dias], na Av. Gago Coutinho, em Lisboa.”
No gabinete da PGR, o vice-procurador-geral, Adriano Cunha, ordenou que fossem recolhidas informações sobre o “rol de suspeitas relativas à morte de Álvaro Dias”. Acerca de “informações/rumores anónimos sobre a possibilidade de ter ocorrido simulação de morte”, a procuradora encarregada da tarefa também recolheu elementos que expôs assim: “Interesse em se subtrair à ação da Justiça, aliado a circunstâncias estranhas do descrito acidente mortal, que terá tido como única testemunha a sua mulher (…); alegadamente ter sido a primeira vez que passou o Natal sem a família alargada; não ter sido autorizada pela família a visualização do corpo do falecido, pese embora terem sido efetuados pedidos nesse sentido por pessoas próximas da vítima; alegadamente não ter sido efetuado velório e ter sido escolhida uma agência funerária sita em localidade muito distante dos locais de residência da vítima, do acidente mortal e da cremação; invulgar celeridade no processo de realização de autópsia e de cremação, atentas as datas festivas e tolerância de ponto concedida no dia 26 de dezembro; ligação pessoal entre o médico-legista (outrora aluno do advogado numa pós-graduação) e a vítima.”
A versão da mulher
No depoimento que prestou ao inspetor da Judiciária que fez a investigação, a mulher de Álvaro Dias disse que a Consoada de Natal foi passada no apartamento que o casal tinha no Parque das Nações, em Lisboa. Estavam “à mesa” ela, o marido, a filha de ambos e o seu pai, sogro do advogado. Só no dia seguinte decidiram ir para Santo Estêvão. Estava bom tempo, “e já agora experimentavam um Rolls-Royce clássico”, que o marido tinha comprado – ele era “entusiasta de carros antigos”. Chegaram à Herdade da Mata do Duque num Audi A8, pelas 12h00. Ela foi então tratar dos “assuntos domésticos”, enquanto Álvaro Dias se dirigiu à garagem para mostrar o carro à filha e ao sogro. “Deu uma volta” no automóvel com eles, pela herdade, e no regresso subiu a rampa de acesso à moradia da quinta. Todos saíram do Rolls-Royce, embora o carro se mantivesse a trabalhar, contou. Não assistiu ao veículo a “descair”, por estar na cozinha, “mas escutou a sua filha a gritar de forma aflitiva: ‘Pai não entres no carro, não entres no carro.’” Veio cá fora e viu o automóvel a resvalar, e o marido com o tronco, as mãos, e uma perna dentro do carro. Mantinha a outra perna fora do Rolls-Royce, “certamente para o suster, fazendo força”. A mulher e a filha continuaram a gritar, mas Álvaro Dias nunca saiu do carro, que “foi ganhando mais velocidade até que bateu numa árvore”. O advogado ficou esmagado entre o carro e o pinheiro, e prostrado no chão. No entanto, o automóvel continuou a sua marcha desgovernada até embater num segundo pinheiro. A mulher diz ter ordenado à filha que entrasse em casa e correu com o seu pai ao encontro do marido. Chamou por ele, “mas logo se apercebeu de que havia morrido – tinha a perna e a cabeça com lesões sérias”.
O INEM chegou, confirmou o óbito, e o cadáver foi transportado para o Hospital de Vila Franca de Xira. Nesse mesmo dia à tarde, contactou a agência funerária Servilusa, “por lhe ser um nome familiar”. Comunicou que o corpo seria cremado, um desejo expresso pelo marido. A agência levantou o problema de haver tolerância de ponto – não seria fácil que a autópsia fosse feita, o que comprometia a possibilidade da rápida cremação. Sendo amiga desde os tempos da faculdade de Duarte Nuno Vieira, ex-presidente do Instituto Nacional de Medicina Legal, telefonou-lhe a pedir ajuda, para que a autópsia fosse rapidamente feita, o que aconteceu no dia 26.
Antes da cremação, no dia 27, autorizada pelo Ministério Público, a mulher de Álvaro Dias disse que o velório do marido, que “reuniu entre 25 a 30 pessoas”, decorreu na capela mortuária da igreja da Nossa Senhora dos Navegantes, no Parque das Nações, com a urna aberta e o rosto descoberto. Mas afirmou que, no decurso da vigília, “a face foi sendo tapada, por haver sangramento”. Já o inspetor da PJ fez um álbum de fotos de Álvaro Dias, “colhidas nas mais diversas proveniências”, incluindo imagens do cadáver. Da observação, concluiu que existem “semelhanças irrefutáveis”.
1º arquivamento
No despacho de arquivamento do inquérito, em abril de 2017, a procuradora-adjunta de Benavente escreve que, “face às diligências de investigação, não há indícios que permitam concluir que a morte de Álvaro Dias tenha sido ‘encenada’ e, por isso, que a montante desta hipotética ‘encenação’ estivesse em causa um crime de homicídio ou profanação de cadáver de molde a colocar outro corpo no cenário do acidente”.
Em junho seguinte, a procuradora-coordenadora do DIAP de Santarém chumbou este arquivamento, através de uma “intervenção hierárquica oficiosa”. Fundamento: “Não foram esgotadas todas as diligências úteis ao cabal esclarecimento dos factos.” Por isso, a magistrada determinou a reabertura do inquérito, para que se procedesse às seguintes diligências: “Inquirição pormenorizada” da filha e do sogro de Álvaro Dias (…); “reinquirição” da mulher do advogado “sobre a forma como percecionou o esmagamento e arrastamento do corpo do marido, a posição em que este se encontrava nesse momento e que partes do seu corpo terão sido atingidas e de que forma”; inquirição ao “perito médico” que fez a autópsia, para “esclarecer os procedimentos realizados” na identificação do cadáver, e “as razões pelas quais foi a metade direita do corpo a mais atingida”; inquirição do militar da GNR que elaborou o auto de notícia “sobre os vestígios que viu no local e no veículo”; e “identificação por ADN do sangue recolhido ao cadáver”.
Recomeçar do zero
Em janeiro deste ano, saiu mais um despacho de arquivamento, proferido por uma segunda procuradora-adjunta de Benavente. “(…) Tendo em conta as suspeitas levantadas nos autos, continuam a inexistir elementos objetivos que nos permitam afirmar que Álvaro Dias simulou a própria morte com o objetivo de se furtar à ação da Justiça e gozar o pecúlio que amealhou por força dos crimes de que terá sido autor.”
A magistrada sustenta que “a perícia realizada à mancha hemática recolhida, bem como a comparação das impressões digitais recolhidas ao falecido, apontam no sentido de se tratar de Álvaro Dias; as testemunhas presenciais inquiridas não tiveram dúvidas em afirmar que o falecido seria o advogado (…) e o perito médico-legal esclareceu que foram recolhidas fotografias ao falecido antes da autópsia, as quais também se assemelham a Álvaro Dias”. Defende ainda que “as lesões que apresentava são compatíveis com a dinâmica do acidente”.
Mas eis que este despacho foi igualmente chumbado, já em março passado, pelo atual procurador-coordenador do DIAP de Santarém. Continuam a não estar esgotadas “todas as diligências úteis ao cabal esclarecimento dos factos”. Só o assistente alega e pormenoriza 23 falhas na investigação. Ainda assim, a procuradora-adjunta responsável pelo segundo arquivamento quis saber, antes de proferir o despacho, se seria possível apurar se uma mancha de sangue foi recolhida ante ou post mortem. O Laboratório de Polícia Científica, da PJ, disse à magistrada que essa perícia não existe. “Não conseguimos responder ao quesito nem temos condições para indicar quem o poderá fazer.”
Ao seu estilo, o juiz Carlos Alexandre, quando remeteu à PGR a denúncia anónima que recebeu, deixou escrito no despacho que, a comprovar-se a veracidade das suspeitas, isso “transporta as instituições portuguesas para o nível do absurdo”. E a verdade é que essa trasladação continua em curso. Até ver.
A investigação passo a passo
Breve cronologia de um processo que ora é arquivado ora é reaberto
26 de dezembro de 2016 – Cerca de um mês após ter sido condenado a cinco anos e meio de prisão efetiva, é noticiada a morte do advogado Álvaro Dias, na véspera, à hora do almoço do Dia de Natal.
25 de janeiro de 2017 – O juiz de instrução Carlos Alexandre recebe uma denúncia anónima com informações de que Álvaro Dias “simulou” a sua morte, para fugir à Justiça e do País.
1 de março de 2017 – Após uma averiguação preliminar feita por uma procuradora, o vice-PGR, Adriano Cunha, conclui que o “rol de suspeitas” relativas à morte do advogado justificam a intervenção da PJ.
18 de abril de 2017 – Uma procuradora-adjunta da secção de Benavente do DIAP de Santarém arquiva o inquérito, escrevendo que “não há indícios que permitam concluir que a morte de Álvaro Dias tenha sido ‘encenada’”.
6 de junho de 2017 – A procuradora-coordenadora do DIAP de Santarém chumba o arquivamento. “Não foram esgotadas todas as diligências úteis ao cabal esclarecimento dos factos”, justifica.
24 de janeiro de 2018 – Uma segunda procuradora- -adjunta do DIAP de Benavente volta a arquivar o processo.
Março de 2018 – O procurador-coordenador do DIAP de Santarém dá provimento a uma “Reclamação Hierárquica” de um assistente do processo, que contesta o arquivamento, e ordena a reabertura do inquérito.