Na linguagem corrente, “loucura” é um ato praticado por quem, embora não se integrando num quadro patológico específico, age – por vezes voluntariamente – de forma a parecer que sim.
A “loucura” (vamos manter as aspas), que tantos bons frutos deu nas artes plásticas e na literatura, torna-se sobretudo notória e frequentemente censurável quando define o comportamento de um político, de um governante, de um estadista.
Mas é nessas manifestações que ela nos surge em todo o seu fulgor, como caso digno de estudo, objeto de espetáculo ou motivo de cruel diversão. Toda a gente conhece Nero, o pouco simpático imperador romano que, sem deixar de ser louco, é acusado de dois crimes que não cometeu: ter incendiado Roma e batido o recorde de perseguição de cristãos. Calígula, outro doido varrido, incluiu o nome do seu cavalo favorito na lista dos senadores e ponderou elevá-lo à categoria de cônsul. Júlio César ficava furioso quando lhe recordavam a sua calvície (o que era reagir da pior maneira a uma evidência).
Mas há tantas loucuras de soberanos como soberanos loucos. Cada um tem – ou teve – a sua. Henrique VIII ordenou o primeiro brexit da Inglaterra (o corte com a cristandade romana) só para poder divorciar-se sem ser incomodado pelo Papa.
E em Portugal? Cada rei teve o seu grão de loucura. Matéria não falta, porque onde há gente há disparates, e onde há gente com responsabilidade há grandes disparates.
O pretexto para esta evocação maluca são os 300 anos do início da construção, por D. João V, do Convento de Mafra. Essa loucura normal de que hoje tanto gostamos.
Uma obra louca
Faz 300 anos que começou a ser construído o Convento de Mafra. Pode não ter grande utilidade, mas sem ele Portugal não seria bem o que é
Quem, nos finais de novembro e inícios de dezembro de 1717, tivesse a louca ideia de se dirigir para Mafra, encontraria as péssimas estradas atafulhadas de magotes de trabalhadores oriundos dos quatro cantos do País. Carros de bois chiavam, vagarosos e melancólicos, transportando enormes blocos de pedra lioz da região para o sítio da “real obra”, e o tilintar das picaretas começava a fazer-se ouvir a centenas de metros da pequena vila – na verdade, um discreto aglomerado de casebres, ainda com ar de aldeia sertaneja. Foi no dia 17 de novembro desse ano que, por ordem do rei D. João V, dito O Magnânimo, e sob a direção do arquiteto alemão Johann Friedrich Ludwig, por cá chamado João Frederico Ludovice, foi colocada a primeira pedra de um edifício destinado à fama duradoura: o Palácio Nacional de Mafra, vulgarmente conhecido por Convento de Mafra. O empreendimento, pela grandiosidade, pelo elevado custo, pelos meios que exigiu, pelos operários que mobilizou e pela dose de loucura que percorre quer a sua grandeza quer a sua conceção, faz pensar nas obras faraónicas.
E, proporções à parte, a comparação não é de todo descabida. Se as pirâmides do Egito cumpriram ao longo de milénios a função de perpetuar universalmente a memória dos reis deuses, o gigantesco edifício barroco de Mafra tem mantido viva à escala nacional, nestes três séculos, a memória do Rei-Sol português. Este D. João V – que, entre muitas outras medidas que tomou como governante, também mandou construir o Aqueduto das Águas Livres – “é”, sobretudo, Mafra. Porém, se os Arcos das Amoreiras e suas ramificações tinham uma função de utilidade pública (o abastecimento de água à cidade de Lisboa), o colossal palácio da zona saloia foi erguido, diz-se, para dar cumprimento a um voto. Que voto, não se sabe ao certo. Dizem uns que o rei teria padecido de uma doença e, ao implorar a cura, terá prometido mandar construir um convento. Afirmam outros que a promessa era a de agradecer a sucessão do trono. E o certo é que as obras começaram por altura do nascimento de Maria Bárbara de Bragança, filha do rei e da rainha Maria Ana de Áustria. “Loucura”, de qualquer das formas, pelos nossos padrões dos dias de hoje.
E a loucura prolonga-se pelas dimensões do edifício, que, albergando um palácio real, um convento e uma basílica, ocupa uma área de quase 38 mil metros quadrados onde cabem 1 200 divisões, 4 700 portas e janelas, 156 escadarias e 29 pátios e saguões. Claro que a obra, onde trabalharam 52 mil operários, só foi possível de concretizar devido ao recentemente descoberto ouro do Brasil, que nesse tempo arredondava a bolsa dos pesquisadores particulares que acorriam em catadupa a Minas Gerais e fazia estalar as dobradiças dos cofres do erário, em Lisboa, onde entrava anualmente uma tonelada e meia de metal amarelo, além de grandes quantidades de diamantes e outras pedras preciosas. Apesar da loucura pateta de grande parte destas riquezas seguir direitinha para Inglaterra (já que a “velha aliada” fornecia capitais e ferramentas para a sua extração), o Magnânimo pôde, mesmo assim, não olhar a gastos nas obras de Mafra, permitindo-se utilizar mármores preciosos e madeiras exóticas e encomendar em Itália peças de escultura e na Flandres os dois maiores carrilhões do século XVIII existentes no mundo, com um total de 92 sinos.
Mas o que de mais valioso existe no babilónico edifício é a biblioteca, com os seus 36 mil valiosos livros arrumados em estantes de estilo rococó e protegidos dos parasitas por brigadas de morcegos que por ali voam em formações cerradas durante a noite, agitando as suas aveludadas asas. Mais uma loucura, esta simpática e curiosa.
D. Afonso Henriques e a condessa
Uma faceta pouco conhecida da nossa figura histórica mais conhecida
Um dia, D. Afonso Henriques foi ao Douro visitar o bom amigo conde D. Gonçalo de Sousa. Depois dos cumprimentos, o anfitrião deixou o rei na sala a conversar com a sua mulher enquanto foi à cozinha dar instruções aos criados. Quando voltou, deparou com o rei a fazer amor com a condessa sobre um tapete de pele de urso. O jantar decorreu, se não como previsto, pelo menos como pôde ser. Mas, como a violência doméstica já existia no século XII, mal D. Afonso Henriques se foi embora, a ira do conde abateu-se sobre a mulher: rapou-lhe o cabelo e devolveu-a a casa dos pais montada numa mula e voltada para a garupa. Mesmo assim, em comparação com exemplos de ontem e de hoje, convenhamos que foi liberal… O que nos interessa aqui não é, porém, a eventual magnanimidade de D. Gonçalo, nem a “fraqueza” da seduzida. A incontinência sexual de Afonso Henriques é que é de realçar, mesmo sabendo que tinha do seu lado a lei do mais forte.
Os amores impetuosos do ‘Magnânimo’
Entre a adolescência e a impotência, D. João V foi um coleccionador de aventuras amorosas
D. João V, o “dono da obra” de Mafra, é o rei de Portugal de que se conhecem em pormenor mais aventuras galantes. A seta de Cupido foi disparada, pela primeira vez, tinha ele 15 anos, por Filipa de Noronha, de 22, dama da rainha Maria Sofia de Neuburgo, mãe do fogoso príncipe. Para a conquistar, D. João(zinho) serviu-se de meios loucamente insensatos, incluindo uma promessa de casamento. Galanteios e oferta de joias fortaleceram o amor da dama, que acalentou a desculpável ilusão de vir a ser rainha de Portugal. Compreende-se a sua frustração ao saber das negociações com vista à união do galanteador com a princesa Maria Ana de Áustria. Ao saber do arranjo, Filipa escreveu ao Don Juan D. João uma carta pedindo-lhe que a desterrasse no convento mais pobre e afastado da corte. Paixão, loucura ou simples desilusão?
O casamento de João e Maria Ana, por procuração, realizar-se-ia em Viena em 1708, quando o noivo ainda não completara 18 anos. Como seria de esperar em tempos tão faustosos (o ouro do Brasil corria a jorros), os festejos do consórcio revestiram-se de enorme pompa e Lisboa foi furiosamente desencardida e loucamente ornamentada para a entrada da futura rainha.
Mas não tardou que a austríaca descobrisse a volubilidade do marido.
No hábito de Madre Paula
Paula Teresa da Silva e Almeida, mais conhecida por Madre Paula, é a mais famosa das muitas amantes do Magnânimo. D. João V conheceu-a durante uma das suas frequentes deslocações a Odivelas, onde ela professara e vivia principescamente, recebendo galanteadores de cabeleiras empoadas. Logo se deixou seduzir pelos seus encantos, a ponto de se esquecer de uma tal Madalena de Miranda, por quem andara embeiçado. Como era seu costume, o rei não faz segredo desta paixão, que se tornou conhecida de todos, incluindo da rainha. E, também como era sua prática, recompensou generosamente a amante, distribuindo benesses pela sua família.
Mas não se julgue que o rei frequentava Paula as vezes que lhe apetecia. Não que ela o impedisse de a mimar, ou que a rainha o atasse com uma corda (embora decerto gostasse): o médico é que não se cansava de lhe recomendar moderação, chegando a vetar-lhe as saídas noturnas.
No canteiro da ‘Flor da Murta’
Quando se cansou das visitas a Paula, D. João V passou a frequentar um palacete do século XVII que ainda existe em Lisboa, na esquina das ruas do Poço dos Negros e de São Bento. Morava ali D. Jorge de Menezes, senhor de propriedades no Algarve, mas o rei escolhia para lá ir os dias (ou as noites) em que sabia que ele não estava. Com quem ia avistar-se – furtivamente – era com D. Luísa Clara de Portugal, a mulher de D. Jorge. Ficou-lhe o epíteto de Flor da Murta, extensivo ao palacete. Tinha já dois filhos do seu casamento, mas estes acompanhavam muito o pai nas viagens ao Algarve. Luísa preferia ficar em Lisboa, pretextando decerto indisposições, para poder receber e retribuir as atenções do rei.
Mas, enquanto visitava Luísa Clara, D. João V galanteava também uma criada dela. E chegou até a nomear diplomata junto da Santa Sé, em Roma, um irmão da rapariga, sapateiro de ofício, o que foi uma grande loucura. Mas este efeito colateral em nada perturbou o curso dos amores do Magnânimo e da Flor da Murta, que era frequentadora das festas no Paço da Ribeira.
E o previsível aconteceu: Luísa Clara engravidou durante uma das ausências do marido. Abatido, D. Jorge retirou-se para uma quinta de Sintra, onde viria a morrer. Quanto à rainha, ficou a ferver e tentou impedir – em vão – a entrada da rival nas festas do Paço. O fruto destes amores foi uma menina, mandada, mais as fraldas, para o Convento de Santos.
Livre dos filhos e do marido, Luísa Clara ficou com tempo para tudo, inclusive para ser amante de um meio-irmão do rei, filho bastardo de Pedro II. Furioso, D. João V pensou em mandar castrar o atrevido parente, e só o confessor conseguiu aplacar-lhe a ira, evocando-lhe as penas do inferno.
No camarim da Basilli
A última amante de D. João V, quando este dobrara o cabo dos 50, seria a cantora de ópera italiana Petronilla Basilli. Para se manter à altura do desempenho lírico requerido, o rei começou a tomar afrodisíacos. E quando, dois anos depois, virou costas à Basilli, começou a murmurar-se que estava acabado. A verdade é que, na década final da vida, o Magnânimo se dedicou sobretudo aos gestos de beneficente que lhe justificaram o epíteto.
Desdobrando-se por tantos amores, não admira que tivesse tido muitos filhos. Os mais famosos bastardos foram os “meninos de Palhavã”, que viveram no edifício da atual Embaixada de Espanha em Lisboa: D. António, D. Gaspar e D. José. O primeiro, filho de uma francesa, doutorar-se-ia em Teologia e seria cavaleiro de Cristo; o segundo, cuja mãe era D. Madalena de Miranda, chegou a arcebispo de Braga; o terceiro, filho de Madre Paula, trepou até inquisidor-mor do Santo Ofício.
Os 19 filhos do ‘Povoador’
Assegurar a posteridade era a obsessão de D. Sancho I
Segundo rei de Portugal, filho de D. Afonso Henriques, D. Sancho I, o Povoador, povoou não só o País mas também a sua casa e anexos, já que foi pai de 19 filhos, contando com os legítimos (de Dulce de Aragão) e com os ilegítimos, partilhados sobretudo com duas amantes conhecidas: uma fidalga de cabelos cor de sol conhecida por “Ribeirinha”, e Maria Aires de Fornelos.
A “Ribeirinha” devia ser mulher capaz de fazer enlouquecer qualquer homem, pois, logo a seguir à morte de Sancho, foi raptada e levada para o reino de Leão por um admirador. A pronta intervenção de Afonso II, filho de Sancho I e novo soberano, conduziria porém à sua libertação.
O rei que morreu de desgosto
Loucura e paixão confundem-se, quando se tornam doença mortal
O infeliz D. Sancho II, que em 1274 foi afastado do trono pelo irmão, D. Afonso III, viveu sempre fascinado pela basca Mécia Lopes de Haro, uma viúva de 26 anos com quem se casou, fazendo dela rainha. Constava que Mécia recorria a feitiços para manter cativo o espírito de Sancho.
Uma noite, um homem de confiança de Afonso, entrou no paço com alguns companheiros, penetrou na câmara da rainha e levou-a para Ourém, uma vila que lhe obedecia. A simplicidade e o silêncio com que o raide foi consumado leva a pensar que Mécia não ofereceu resistência.
Sancho acabou os seus dias deposto do trono e desterrado em Toledo, onde morreu de desgosto com 38 anos. O pequeno grupo de fiéis que o seguiu no curto exílio de alguns meses testemunhou a sua grande tristeza. Passava os dias de olhar vago e alucinado, a pensar obsessivamente em tudo o que perdera. Sobretudo na infiel “feiticeira” Mécia Lopes de Haro.
(Artigo publicado na VISÃO 1291 de 30 de novembro)