Afonso, que já viajou pelos cinco continentes, estuda em casa. Henrique aproveita a única tarde livre para realizar um treino extra no ginásio. Luís e Francisca deixaram as famílias em Guimarães e mudaram-se para Lisboa. Guilherme tem aulas de substituição sempre que se ausenta do País para competir. Rodrigo sai às dez da noite do campo e às 8h15 está na escola. Com idades dos 14 aos 18 anos, estes adolescentes movem-se por caminhos distintos em nome de uma causa comum: fazer carreira nos seus desportos preferidos.
Como eles, milhares sonham com um futuro profissional no surf, no ténis e sobretudo no futebol, inspirados em casos de sucesso como Frederico Morais, João Sousa e Cristiano Ronaldo. Mas se uns vão à luta com uma vontade interior aparentemente inabalável, outros desistem ainda antes de o tentarem de verdade. E os pais – alguns pais e algumas mães – terão grande dose de culpa nesse abandono precoce. Que jovem gostará de sentir uma extrema pressão parental para não falhar ou de constatar que, afinal, não é o melhor do mundo, como lhe juravam em casa? Ou de ver os familiares em quezílias na bancada, a insultar colegas de equipa e adversários, e a minar a autoridade do treinador com decibéis no máximo? E quem diz na bancada diz na praia ou atrás da vedação, porque o surf e o ténis estão hoje contagiados por pais a gritarem na areia que “os juízes estão comprados” ou a ameaçarem-se uns aos outros do lado de fora do court, perante atletas em miniatura.
“São como uma peça fora do lugar”, diz António Rui Gomes, professor e investigador na área da psicologia do desporto na Universidade do Minho. “O problema destes pais é que fazem uma valorização excessiva do rendimento e dos resultados, criando nos jovens uma tensão diária excessiva e sem sentido.”
Volta ao mundo
Aos 14 anos, Afonso Antunes já surfou em Marrocos, França, EUA (Havai e Califórnia), Austrália, Japão. No próximo ano, haverá estreia na Indonésia e novas viagens a Marrocos, Havai e Austrália. No mínimo, quatro meses fora de casa. Este ano foram seis. “É uma espécie de Erasmus adaptado ao surf”, brinca João Antunes, pai e treinador do jovem campeão europeu de sub-14. “As pessoas dizem que é de loucos, mas é assim que tem de ser”, garante quem fez do surf um modo de vida – além de tricampeão nacional, andou mais de uma década no circuito profissional europeu e chegou a vice-campeão. O périplo pelas capitais das ondas faz parte do arrojado plano para levar Afonso ao circuito mundial, o topo da modalidade, lá mais para os ‘vintes’. “Muitos atletas chegam ao auge entre os 16 e os 18 anos, mas é demasiado cedo. Nestas idades não se pode puxar a sério, é preciso dar-lhes liberdade para criar. O Afonso ainda não compete por resultados, o foco é formar e evoluir. As viagens proporcionam diversão e conhecimento, sem pressão”, explica João, enquanto tomam o pequeno-almoço na quinta de família.
Quando estão por cá, todos os dias pesquisam as melhores ondas, da Figueira da Foz a Setúbal, e arrancam da zona da Ericeira. Afonso não demora a saltar da cama para fazer o que mais gosta. “De manhã, à tarde, às vezes é o dia todo”, ri-se. Faça sol ou chuva, seja verão ou inverno. “O frio não existe, os fatos são quentinhos, isto é uma coisa que nasceu comigo.” A marca desportiva QuikSilver, que o patrocina desde os nove anos, disponibiliza o alojamento no estrangeiro. Já as pranchas, feitas à medida, são fornecidas pela Pyzel, que trabalha com o campeão mundial John John Florence. Mesmo assim, mais de metade do orçamento deste ano, a rondar os €40 mil, foi assegurado através de “paitrocínio”, graceja João Antunes.
Afonso ganhou entretanto o estatuto de atleta de alta competição, que lhe permite frequentar a escola pública sem chumbar por faltas, mas nos últimos dois anos (7º e 8º) a família colocou-o no sistema de ensino doméstico, por causa das constantes viagens. A matéria tem sido ensinada pela mãe e uma professora amiga. No final deste ano letivo, fará os exames nacionais do 9º ano.
O meu filho tem mais autocolantes do que o teu
O exemplo de Afonso, uma rara exceção no surf jovem em Portugal, tem levado outros pais a equacionar a hipótese de desviarem os filhos da escola. “São os miúdos que lhes metem esta ideia na cabeça”, atira Pedro Simão, treinador da Costa da Caparica que integra, desde 2015, a equipa técnica nacional. E às vezes nem sequer têm potencial. “Está tudo maluco. Um miúdo para deixar a escola pelo surf deve receber um ordenado de €2 mil por mês aos 15 anos. E aí pode estudar em casa. Mas tem de ganhar isso do patrocinador, não do pai.”
Para reforçar o argumento, o treinador contrapõe com o caso de Guilherme Ribeiro, companheiro de seleção de Afonso Antunes e um dos melhores alunos do Colégio Guadalupe, na Verdizela, Seixal. No regresso do mundial de juniores, que terminou a 1 de outubro, Guilherme teve aulas suplementares para recuperar a matéria perdida nos 15 dias em que esteve a representar Portugal no Japão. Antes da partida, o colégio também facilitou na troca do horário, de modo a permitir que o surfista de 15 anos, a frequentar o 10º ano, pudesse ter duas tardes e uma manhã disponíveis para o surf. Aos sete anos, Guilherme já era “autónomo no mar”; pouco depois pediu para entrar em campeonatos, e agora aponta ao circuito mundial. Mas o pai e treinador, Jorge Ribeiro, não abdica de que o filho mais novo complete o 12º ano, para assegurar “um plano B”, não vá ele um dia “chegar e dizer: estou farto disto”.Não seria o primeiro. Regra geral, em situações de iniciação desportiva precoce, a probabilidade de surgir um esgotamento prematuro é mais acentuada, refere Sidónio Serpa, docente de Psicologia do Desporto na Faculdade de Motricidade Humana, em Lisboa: “Ainda que alguns possam atingir um alto nível de rendimento e ser grandes campeões, também há uma taxa de abandono mais rápido e uma exaustão maior.”
Tal como Afonso, Guilherme atraiu desde cedo o patrocínio de uma marca desportiva (O’Neill), que começa por fornecer equipamento e mais tarde acrescenta compensações financeiras. É normal estes apoios aparecerem por volta dos dez anos nos atletas mais talentosos, mas a ânsia de angariar e mostrar patrocínios transformou-se numa insólita competição entre pais por autocolantes das marcas, símbolo da histeria que tomou as praias de assalto. Para os românticos da velha guarda do surf, é aflitivo ver adolescentes atirarem pranchas pelo ar à saída da água e pais carrancudos a gritarem-lhes “tens de ganhar isto, senão desistimos”, a sobreporem-se às instruções dos treinadores ou a vociferar contra os juízes que atribuem as notas. “Ladrões, estão a roubar o meu filho”, ouve-se hoje com frequência no areal.
“Uma pessoa está a treinar um miúdo de 12 anos para ser forte e superar os obstáculos e ele o que vai pensar é que é um coitadinho e que nunca vai conseguir. Isto é surf, não é futebol”, alerta Pedro Simão, estabelecendo uma ligação direta entre “pais excessivamente presentes e sempre em cima” e o desinteresse dos filhos pela modalidade. “Quando começam a sair à noite em Lisboa, acabou.”
A nova febre dos autocolantes é outro tiro no pé, por ferir a autoestima dos aprendizes quando em competição se percebe que não têm nível para tanto apoio. É fictício e funciona assim: os pais compram grandes quantidades de material nas lojas, pedem autocolantes de marcas para as pranchas e aparecem como se o filho fosse tão bom que todos o quisessem patrocinar. “Depois tentam convencer as marcas a patrociná-los a sério, com o argumento de que já lhes estão a dar retorno. Esquecem é que os filhos acabam por engrenar nessa ansiedade e deixam de se divertir”, lamenta Álvaro Costa, administrador da marca portuguesa de pranchas Polen. E acrescenta: “A partir do momento em que o surfista passou a ter estatuto e a transmitir uma imagem de sustentabilidade para toda a família, alguns pais estão a investir o que têm e o que não têm, na esperança que o investimento dê retorno.”
No fundo, resigna-se, está a acontecer no surf o que já via noutros desportos, como o ténis ou o futebol. “Há miúdos que querem realmente ser campeões e depois há outros com algum jeito, mas os pais é que querem que eles sejam campeões”. No ténis, Álvaro ganhou uma cicatriz que ainda hoje, uma década depois, lhe custa tocar: o filho mais velho abandonou aos 15 anos, a chorar, após o pai de um adversário ter estado um jogo inteiro a “xingá-lo atrás da grades”, perturbando-o até à derrota. “Pais aos gritos com os putos, putos aos gritos com os pais, raquetas partidas, desatinos com treinadores. Não é uma coisa sadia.”
Praia? Só nas fotografias
Ricardo Cochicho, treinador de ténis há mais de duas décadas, viveu este ano uma das situações mais surreais da sua carreira, quando um pai se virou contra a mãe da rival da filha e “começou a crescer para ela em termos físicos”. Na origem do conflito, uma bola que deixara dúvidas se teria batido fora ou dentro. No court, as filhas de ambos, 12 anos, assistiam a tudo.A pressão parental sobre os jovens atletas é muitas vezes camuflada no recato do carro ou em casa, mas Ricardo lembra-se bem do miúdo que evoluiu a olhos vistos “a partir do momento em que o pai foi proibido pelo médico de ver os jogos”, após um susto cardíaco, ou da miúda que, de tão protegida pelo pai (“a culpa era sempre dos treinadores, dos parceiros de treino ou dos árbitros”), “fugiu da competição” mal percebeu que as falhas eram dela, não dos outros. E há ainda os casos flagrantes dos que entram num diálogo permanente durante os jogos. “Estão sempre a justificar os erros aos pais e desconcentram-se. É uma carga emocional fortíssima, que prejudica o desempenho.”
Francisca Jorge, 17 anos, e Luís Faria, 18, duas esperanças do ténis nacional, lidam com outra realidade. Naturais de Guimarães (como João Sousa, o melhor tenista português de sempre no ranking ATP), ela mudou-se em setembro para o Centro de Alto Rendimento (CAR) do Jamor, onde ele já vive desde os 15. Só vão a casa quando não jogam ao fim de semana. Para os pais os deixarem dar este passo rumo ao desejado profissionalismo, comprometeram-se a completar o 12º ano em horário noturno – de dia só há tempo para raquetas e bolas. “Sempre no duro”, garante Luís. “Muitas vezes vejo as fotos dos amigos na praia, e eu aqui atrás da bola.” Ao fim de três anos, garante que ainda mal conhece Lisboa.
“Ou era agora ou nunca”, solta Francisca, multicampeã nacional em todos os escalões jovens, a propósito desta nova etapa. Ao fim de dois meses em ritmo frenético, ganhou uma convicção: “Tenho andado rota, mas estou aqui para lutar. Estas semanas só provaram que eu não era nada.” Há dois anos que universidades dos EUA lhe acenam com bolsas de estudo e a oportunidade de se dedicar ao ténis com tudo pago, mas a jovem vimaranense, apesar de o pai já ter mostrado abertura, coloca um travão nesses voos. “Uma coisa de cada vez. Este ano vou pôr a minha cabeça e o meu corpo à prova. Se tiver bons desempenhos e um bom ranking, quem sabe?”
Ronaldos e Nanis
No meio tenístico nacional, qualquer interveniente parece já ter tropeçado num pai mais convencido das qualidades do filho. Mas nada se compara ao futebol quando se trata de exagerar nas expectativas. Não é à toa que o jogador mais criticado por um pai é sempre o que disputa o lugar com o filho. Para os fazer descer à terra, Tiago Teixeira, treinador dos iniciados do Real Massamá, passou a usar o exemplo dos seus filhos gémeos, que aos 3 anos participaram durante 15 breves segundos na peça de teatro da escola. “Realmente, eles foram os melhores”, ouviu, incrédulo, da boca de familiares seus. “Os nossos são sempre os melhores”, ironiza. “E depois as frustrações são maiores. Os miúdos têm 12, 13, 14 anos, e toda a gente pensa que vão ser futuros Nanis ou Ronaldos. E tem que ser, e tem que ser, e tem que ser.”
De tanto ter que ser, alguns pais complicam. Na época passada, chegou a Massamá um jovem de 14 anos que já tinha passado por cinco clubes. Ao fim de meia dúzia de jogos, rescindiu o contrato: o pai entendia que ele estava a ser mal aproveitado e alegou que convites não lhe faltavam. “O miúdo chorou e pediu por favor ao pai para não voltar a acontecer a mesma coisa”, conta Tiago. Foram lágrimas em vão. “Já não joga à bola. Desistiu.”
Por volta destas idades, os jovens começam a tomar decisões, por muito que desagradem aos pais. Mas a psicóloga infantil Lúcia Paulino já lidou com crianças que apresentavam sintomas de ansiedade relacionada com a prática desportiva e que não tinham maturidade suficiente para verbalizar a vontade de parar – nem que fosse por não quererem desiludir os pais. “Há muita pressão para serem as melhores, mas as crianças não têm ferramentas para lidar com a exigência para lá do normal e podem sofrer ataques de pânico antes da competição.”
Depois de treinar várias equipas dos cinco aos 18 anos na região de Viseu, entre 1999 e 2015, Vítor Santos cansou-se do comportamento “de bradar aos céus” dos pais. Tem dado conferências sobre o tema e está para lançar o livro Educar o sonho: ética e envolvimento parental na prática desportiva. As suas experiências são uma espécie de manual do que não deve acontecer no processo de formação, desde pais eufóricos a festejarem com t-shirts a dizer “campeões” no escalão de sub-10 aos que prometem pagar o lanche à equipa se o filho for convocado, passando pelos que se envolvem em pancadaria na bancada. “Há pais que vibram mais do que os miúdos, e ficam mais frustrados do que eles quando desistem”, acusa o técnico de 50 anos, que há dois anos optou por se reformar do futebol.
Treinar contra os gritos dos pais
Vacinado contra estes maus exemplos nos vários clubes por onde passaram os dois filhos mais velhos – chegou a ver um treinador a fugir da ira de pais da equipa contrária num jogo de iniciados –, Miguel Rebelo só ficou mais incomodado com o caso de um pai que “batia no filho quando as coisas não corriam bem dentro de campo”. O seu terceiro filho a tentar a sorte no futebol, Henrique, tem agora 14 anos e treina no Real Massamá. A equipa de iniciados disputa o campeonato nacional, os observadores dos grandes clubes são presença regular, os empresários começam a sondar. A adrenalina sobe e a pressão também, adianta o psicólogo Daniel Viegas, que integra a equipa técnica. Para ajudar os que se deixam afetar pelo ruído nas bancadas, por exemplo, incentiva-os a fazer exercícios enquanto os outros colegas gritam e tocam buzinas. “Os pais que dão instruções e lançam críticas destrutivas para o relvado não têm noção dos efeitos negativos que provocam nos miúdos”, observa.
Além dos quatro treinos por semana, no dia de folga Henrique reforça a condição física no ginásio, por sua iniciativa. Garante que a exigência parte de si; o que o pai lhe pede é que não chumbe na escola. “Penso em fazer alguma coisa ligada ao desporto, mas do que gosto mesmo é de jogar futebol.”
Os desejos e as rotinas de Rodrigo Teixeira não diferem muito no Sacavenense, outro clube da periferia de Lisboa que todos os anos alimenta os principais clubes com novos talentos. Da mesma geração de Henrique, Rodrigo diz ter noção que poucos chegam ao topo, num universo de milhares, mas confia que “com trabalho tudo é possível”. Já foi chamado a realizar testes no FC Porto e gostou da experiência, o que lhe dá alento extra para continuar a sair dos treinos às dez da noite. Quem sabe se da próxima vez o telefone não toca com uma proposta a sério para dar o salto? “Até aos sub-17, ainda há muita saída”, diz Rui Gomes, de regresso à coordenação das camadas jovens do Sacavenense após duas épocas no Benfica. Lá, a grande diferença ao nível das interferências parentais é que “os pais não podem entrar nos treinos”.
O pai de Rodrigo, Pedro Teixeira, não resiste a fazer um mea culpa e reconhece que já se comportou “como um pateta”, nos tempos em que dava indicações ao filho para dentro de campo, “o que só deixa os miúdos confusos, se o treinador lhes pedir outra coisa”. Com os anos e os erros, diz ter aprendido a lição e orgulha-se de, agora, só pedir ao filho “que dê o melhor”.
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(Artigo publicado na VISÃO 1291 de 30 de novembro)