O Instagram de qualquer turista que um destes dias passe pelo bairro Haight-Ashbury, em São Francisco, enche-se com as letras distorcidas dos posters psicadélicos, as túnicas cor de laranja dos Hare Krishna e as roupas tie-dye montra sim, montra não. Também hão de lá estar os músicos Jimi Hendrix e Janis Joplin, agigantados num mural, e a colorida loja Love on Haight, onde só se ouvem canções dos The Grateful Dead. E talvez estejam igualmente os gelados Ben & Jerry’s que, no cruzamento das ruas Haight e Ashbury, vão acompanhados pela frase Peace & Love Ice Cream.
Cinquenta anos depois, o epicentro do verão que ficou para a História como Summer of Love continua a ser um íman.
Do mítico cruzamento até ao Panhandle, escreva-se que mal dá tempo para engolir um gelado. Essa faixa estreita do Golden Gate Park (que lembra o cabo de uma frigideira) é um dos locais de peregrinação de quem hoje visita a cidade. Foi lá, no campo de polo, que a 14 de janeiro de 1967 – seis meses antes do “verão do amor” – se realizou o Human Be-In. Um “encontro das tribos” imaginado pelo artista Michael Bowen, com Allen Ginsberg, poeta da geração Beat, e Timothy Leary, psicólogo e grande defensor dos efeitos terapêuticos do LSD (sigla da palavra em alemão para dietilamida do ácido lisérgico), como cabeças de cartaz.
A ideia era promover uma reunião de jovens “imbuídos de uma nova consciência”, que desejavam “um novo tipo de sociedade”, diria mais tarde Ginsberg, “envolvendo oração, música e vida espiritual em conjunto, em vez de concorrência, posse e guerra”.
Prometiam-se “todas as bandas de São Francisco” e pedia-se aos participantes que levassem “flores, incenso, penas, velas, bandeiras, famílias, animais, címbalos, tambores, sinos e flautas”. À chamada responderam mais de vinte mil pessoas, muitas já com as flores no cabelo que seriam cantadas por Scott McKenzie na música San Francisco (Be Sure to Wear Flowers in Your Hair), lançada em maio. “Havia tanto fumo de marijuana”, recorda Rock Scully, manager dos The Grateful Dead, “que pensei ter entrado num dome geodésico.”
Talvez por ter sido ao ar livre e ter juntado tanta gente, o Human Be-In – “o último evento hippie puramente idealista” nas palavras de Ginsberg – é apontado como o prelúdio do Summer of Love. Se é verdade que há um “antes e depois” do verão de 1967, três meses em que São Francisco viu chegar uma revoada de cem mil jovens atraídos pelo movimento de contracultura que ali surgira, não é menos verdade que ele não nasceu de geração espontânea. Mas a “era Haight-Ashbury” (como lhe chamaria o escritor Tom Wolfe) começara ainda um ano antes do Human Be-In, com o Trips Festival, que ocupou o Longshoremen’s Hall entre 21 e 23 de janeiro de 1966.
Gelado com ácido
No cartaz do Trips anunciavam-se as performances dos The Grateful Dead e dos Big Brother & the Holding Company, mas aqueles três dias não ficariam para a história se Ken Kesey não tivesse promovido mais um dos seus “testes de ácido”. O escritor andava desde novembro de 1965 a organizar festas onde testava os efeitos alucinogénios do LSD, descobertos acidentalmente mais de vinte anos antes pelo químico suíço Albert Hofmann. Ele próprio tomara pela primeira vez LSD em 1959, no âmbito de um programa financiado pela CIA num hospital para veteranos, em que os voluntários recebiam 20 dólares por sessão. Trabalhava no turno da noite e plasmaria muito do que ali viu no romance Voando sobre um Ninho de Cucos (mais tarde adaptado para o cinema por Milos Forman e protagonizado por Jack Nicholson).
Naquele fim de semana de janeiro, grande parte dos 10 mil participantes do festival tiveram a sua primeira trip ao comerem gelado com ácido. Não era um ácido qualquer – era o puríssimo White Lightning fabricado por Augustus Owsley Stanley III, que aprendera Química de forma autodidata depois de desistir do curso de Engenharia e de passar 18 meses na Força Aérea e cinco anos na dança clássica.
Owsley experimentara LSD em abril de 1964, no seu único semestre na Universidade de Berkeley, na Baía de São Francisco. “A primeira vez que tomei ácido fui para a rua e os carros estavam a beijar os parquímetros”, contaria anos depois. O seu primeiro laboratório (montado na casa de banho de uma casa perto do campus) foi alvo de uma busca em fevereiro de 1965, mas os polícias procuravam metanfetaminas e só encontraram LSD, que ainda era legal na Califórnia.
“Para quem tomava ácido, o Trips Festival era como a primeira convenção nacional de um movimento silencioso”, escreveu Wolfe, no livro The Electric Kool-Aid Acid Test, em que conta a viagem pelo país de Kesey e dos Pranksters, seus seguidores, feita a bordo do Further, um velho autocarro pintado de alto a baixo. “Ficaram espantados com o crescimento das próprias fileiras – e eufóricos com o facto de poderem mostrar-se, drogados como babuínos, sem que o céu e a lei caíssem sobre eles. […] A era Haight-Ashbury começou nesse fim de semana.”
Para o resto do País e do mundo talvez. Mas para os artistas, músicos e estudantes universitários que se tinham mudado para Haight-Ashbury, atraídos pelas rendas baratas das suas velhas casas vitorianas, ela começara logo no início dos anos 60.
‘De onde saíram estes freaks?’
Rezam as crónicas da época que por essa altura os Beatniks, encabeçados pelo escritor Jack Kerouac, paravam em North Beach, onde ouviam jazz e gastavam horas na livraria do poeta e ativista Lawrence Ferlinghetti. Na outra ponta da cidade o ar romântico e antiquado de Haight-Ashbury contagiara a maneira de vestir dos seus jovens habitantes – nas ruas do bairro viam-se casacos compridos de veludo e chapéus altos.
Muitos deles viviam em comunidade, dividindo as despesas e comungando dos mesmos ideais. Diziam-se de esquerda e esotéricos, eram contra a guerra no Vietname e as normas vigentes, defendiam a libertação sexual e a liberdade em geral. E mesmo aqueles que nunca tinham pegado num instrumento arriscavam a certa altura dedilhar alguma coisa e formar uma banda. Foi assim que nasceram os Charlatans e por arrasto os Family Dog, um grupo de amigos que começou a promover festas e concertos de rock (e todos tinham cães, sim).
O LSD só se tornaria ilegal a 6 de outubro de 1966, e Ken Kesey começou os seus “testes” em festas, com a ajuda dos Pranksters, na Baía de São Francisco. Diluía-se o ácido em Kool-Aid ou, na falta desse refrigerante, em água; e quem passasse o teste recebia o diploma das mãos de um Kesey enfiado num fato espacial de lamé prateado. Era como um ritual de passagem.
“Com o LSD, experimentávamos aquilo que os monges tibetanos levavam vinte anos a obter; nós chegávamos lá em vinte minutos”, contaria à revista Vanity Fair Luria Castell Dickson, então estudante universitária, ativista e amiga do artista Alton Kelley, que ficou conhecido pelos seus cartazes psicadélicos.
Foi nessas festas que a dança a pares, sempre previsível, deu lugar à dança psicadélica, livre e em grupo. E que o movimento hippie foi crescendo. A primeira festa organizada pelos Family Dog, em outubro de 1965, no Longshoremen’s Hall, seria uma revelação para Kelley. “Apareceram cerca de 400 ou 500 pessoas e estava tudo de boca aberta, a pensar: ‘De onde saíram estes freaks? Pensava que só os meus amigos eram assim!’”, recordaria em 2008, pouco tempo antes de morrer.
Cada vez mais jovens chegavam a Haight-Ashbury, atraídos pela nova boémia e por lojas como a Mnasidika (nome de uma amiga da poetisa Safo). “Sentíamos que tínhamos atingido o Nirvana, uma sociedade utópica. Se uma pessoa estendesse a mão viriam outras dez”, contaria a proprietária, Peggy Caserta, que foi amante de Janis Joplin.
Eram a “nova geração de beatniks” que Michael Fallon, jornalista do San Francisco Examiner, chamou de “hippies”, cunhando o termo num artigo publicado em setembro desse ano. E eram cada vez mais, mas aqueles que usavam cabelo comprido ainda se cumprimentavam ao cruzarem-se nas ruas de Haigh-Ashbury, parando juntos a ver os cartazes que promoviam mais uma festa, cartazes diferentes de tudo o que se vira até então, lindos e quase ilegíveis.
Outras revoluções
Wes Wilson, hoje considerado o pai do design psicadélico, inspirara-se nas letras arredondadas criadas por Alfred Roller, um pintor austríaco do tempo da Art Deco. As frases eram propositadamente difíceis de decifrar, havia de confessar Victor Moscoso, artista americano de origem espanhola, nascido numa pequena aldeia galega. “O Wes libertou-nos! Um cartaz deve transmitir a sua mensagem de forma rápida e simples? Não! Os nossos demoravam muito a ser lidos, deixavam o espectador pendurado.”
Janis Joplin tinha um nome que se prestava às curvas do design psicadélico. A cantora era uma miúda quando chegara pela primeira vez a São Francisco em 1963, à boleia com um amigo, Chet Helms, que a vira tocar na faculdade, em Austin, no Texas. Influenciado na adolescência por Kerouac e Ginsberg, Helms atravessara o país no ano anterior e fizera de Haight-Ashbury a sua base. Pertencia aos Family Dog e num instante estava com eles a organizar concertos, primeiro no Longshoremen’s Hall e mais tarde no Avalon Ballroom, que fechara há muito tempo. Era tão carismático que muitos o apontam como o pai do Summer of Love.
Chet Helms apostara que a amiga ia explodir na cena musical, mas enganou-se e ela regressou pouco depois a casa. Janis Joplin haveria de voltar a São Francisco em 1966, e aí, sim, começaria a sua carreira efémera, com o grupo Big Brother and the Holding Company (morreria de overdose em 1970). Em meados de junho do ano seguinte, quando cantou Ball ‘n’ Chain no Monterey Pop Festival, foi a loucura – só suplantada pelo momento em que Jimi Hendrix, que já era uma sensação no Reino Unido mas pouco conhecido nos EUA, incendiou a sua guitarra.
Entre os muitos músicos que passaram pelo palco do festival de Monterey (The Who, Jefferson Airplane, The Grateful Dead, Ravi Shankar, Otis Redding, The Mamas & the Papas…) estavam os Country Joe and the Fish. A sua música mais conhecida é I Feel Like I’m Fixin’ to Die Rag, cujo refrão “One, two, three, what are we fighting for?” seria cantado em todas as ações contra guerra no Vietname. A música era também uma forma de protesto contra a sociedade e as normas vigentes. Uma forma de luta e de contracultura.
Não se estranha por isso que tantos anos depois Joe McDonald (ou “Country Joe”), o vocalista, defenda que o Summer of Love foi o modelo de outras revoluções populares que se seguiram, como as recentes Ocuppy Wall Street e a Primavera Árabe, e o novo statu quo. “A Era do Aquário! Todos querem sexo. Todos querem divertir-se. Todos querem esperança. Nós abrimos a porta, toda a gente entrou e tudo mudou depois disso”, disse à revista Vanity Fair, em 2012.
O festival de Monterey foi um dos chamarizes do verão de 1967, mas muitos dos que lá estiveram tinham chegado a São Francisco em resposta ao apelo feito numa espécie de conferência de imprensa organizada na primavera, em Haight-Ashbury. A juventude americana que fosse até lá mal acabassem as aulas, para “experimentar a magia”.
Passar palavra
Haight-Ashbury era como uma outra cidade dentro de São Francisco, uma comunidade idealista que até tinha uma clínica médica gratuita com voluntários da vizinha Universidade da Califórnia. A iniciativa fora dos Diggers, um grupo de ativistas radicais que decidiram usar o nome de uns anarquistas ingleses do século XVII e avançar com a criação de uma sociedade livre de capitalismo, materialismo e dinheiro.
Muitos dos seus membros pertenciam ao grupo de teatro San Francisco Mime Troupe e andavam com máscaras de animais nas ruas do bairro. Tinham várias lojas onde nada se pagava e todos os dias cozinhavam grandes panelões de comida que distribuíam às 4 da tarde, no Panhandle, a tal faixa estreita do Golden Gate Park. Diz-se que foram eles que cunharam a frase “hoje é o primeiro dia do resto da tua vida”.
Por esta altura, as atenções dos media estavam todas concentradas em Haight-Ashbury. Ronald Reagan, então governador do Estado da Califórnia, bem podia fazer piadas sobre os hippies (dizia que se vestiam como o Tarzan, andavam como a Jane e cheiravam como a Chita) que miúdos como William Schnabel, nesse verão com 17 anos, queriam “fazer parte da revolução”.
Era “uma revolução cultural, artística e política”, diz Schnabel, hoje historiador aposentado de uma universidade francesa, em entrevista ao jornal Los Angeles Times. “A contracultura psicadélica sentia que o sonho americano, a corrida às armas e a Guerra Fria eram o caos. Isso explica por que tanta gente nova rejeitava as ideias dos seus pais.”
Em outubro, os Diggers fizeram uma marcha da “Morte do Hippie”, com caixão e tudo. Haight-Ashbury tornara-se demasiado pequeno para tanta gente, já não era possível manter o mesmo espírito de partilha. Mas a palavra passara e o mundo não voltaria a ser como dantes.