Acontece a quase todos os que vão a Almaraz pela primeira vez, havemos de confirmar com Chema González, o ativista antinuclear que fará de nosso guia na região: na tentativa de fotografar a central nuclear de perto, é-se travado pela Guardia Civil e acaba-se a observar aves numas lagoas a poucos metros da cerca encimada pelo arame farpado que a rodeia. O contraste não podia ser maior. Deste lado, no parque periurbano de Arrocampo, nas afueras da vila, há águias-pescadoras e guarda-rios; do lado de lá estão dois reatores nucleares.
A primeira coisa em que pensamos é que o arame farpado não nos protegeria de uma eventual fuga de material radioativo. Logo a seguir lembramo-nos de que a radioatividade não se vê nem cheira, e tentamos esquecer a sms enviada durante a viagem por uma amiga parca em palavras: “Volta depressa.”
De Lisboa a Almaraz, no distrito de Cáceres, são 445 quilómetros que se percorrem de carro em cerca de cinco horas. Mas Segura, a fronteira mais próxima de Portugal, no concelho de Idanha-a-Nova, dista uns 100 quilómetros de Almaraz. É esta última distância que aparece sempre que se fala da central nuclear mais antiga de Espanha. Destes 100 quilómetros e de a central ter sido construída junto ao Tejo e utilizar a água do rio para o seu sistema de refrigeração.
Nos últimos anos também se tem falado muito do facto de a central de Almaraz ainda estar a funcionar apesar de os seus dois reatores, inaugurados em 1981 e 1983, terem sido projetados para produzirem energia durante trinta anos. “Esse é o tempo de vida normal”, nota Francisco Ferreira, presidente da associação ambientalista Zero. “A partir daí, como está obsoleta, correm-se mais riscos.”
A central já devia ter encerrado, portanto, mas nada foi feito debaixo da mesa, note-se. À semelhança do que vem acontecendo no resto do mundo, o consórcio proprietário constituído pela Iberdrola, Endesa e Gas Natural (que também tem a central de Trillo, no distrito de Guadalajara, igualmente junto ao Tejo) obteve uma renovação da licença de exploração, até 2020. Mas agora os ativistas temem que o consórcio esteja interessado em estendê-la novamente por mais dez anos. Percebe-se o interesse: neste momento tem um ganho diário de €1 milhão porque a central já está amortizada.
FECHAR CUSTA 2 500 MILHÕES
As receitas diárias são-nos dadas por Chema González, porta-voz do Foro Extremeño Antinuclear (FEAN) e professor na Escola de Formação Agrária próxima de Navalmoral de la Mata, a 20 quilómetros da central. O valor do desmantelamento 2 500 milhões de euros também sairá da sua boca. E os dois números frente a frente tornam plausível o receio que os ativistas têm de que a construção de um “cemitério nuclear” nas imediações da central (em termos técnicos, um Armazém Temporário Individual, ou ATI), para guardar os resíduos nucleares, que foi aprovada em setembro, pelo Conselho de Segurança Nuclear (CSN) espanhol, seja uma forma encapotada de viabilizar o funcionamento da central até pelo menos 2030.
“Fazendo as contas aos dados oficiais, as duas piscinas onde são armazenadas inicialmente as barras de urânio irradiadas têm capacidade até 2021. Se a licença é até 2020, para que precisam de um armazém?”, gostaria de saber Chema González, com quem marcámos encontro num restaurante à entrada de Navalmoral. “E se insistem que, até 2018, uma das piscinas ficará cheia, então andaram a mentir.”
As contas não serão difíceis de fazer. Sabe-se que as barras têm 2 cm de diâmetro por vários metros de altura e estão soldadas às 40 e 50 de cada vez. Sempre que são retiradas dos núcleos dos reatores por estarem a produzir menos energia, metem-se, ainda muito quentes, numa das piscinas. A água, além de as arrefecer, é uma boa blindagem contra a radioatividade; o nível vai caindo pouco a pouco mas só desaparecerá ao fim de 250 mil anos.
Quando as piscinas estão cheias, as barras têm de ir para outro local. E é aí que entra a questão do armazenamento. Em Espanha há cinco centrais ou sete, se contabilizarmos que Almaraz e Ascó (Tarragona, Catalunha) têm dois reatores cada. Ou ainda oito, se juntarmos a de Santa Maria de Garoña (Burgos, Castela e Leão), que deixou de funcionar em 2012 mas não encerrou. Para resolver o problema dos resíduos nucleares tinha sido aprovada a construção de um Armazém Temporário Central, em Villar de Cañas (Cuenca, Castela Mancha), mas a população opôs-se e, cinco anos depois, o projeto continua no papel.
A questão de Almaraz estar em fim de vida é crucial tanto para as autoridades portuguesas como para os ativistas antinuclear. Além do desgaste dos materiais, uma central construída hoje seria muito diferente, garante Paco Castejón, físico nuclear no Centro de Investigação Energética, do Meio Ambiente e Tecnologia, porta-voz do Movimento Ibérico Antinuclear e coordenador-geral do FEAN, que nos últimos tempos tem feito vezes sem conta o caminho Madrid–Navalmoral de la Mata-Madrid para reunir com Chema González.
A lista daquilo que Almaraz devia ter é extensa, mas basta deixar um exemplo: os sistemas auxiliares são convencionais (não especializados para o nuclear), quando, segundo os modelos atuais de reatores europeus, aplica-se um controlo de qualidade de nuclear a todos os componentes turbinas, gerador, edifícios elétricos e transformadores, entre outros.
Mas acima de tudo está a falta de cultura de segurança dos responsáveis da central, acusa Castejón, para quem ela explica muitos dos problemas de Almaraz. Desde que o seu primeiro reator começou a funcionar registaram-se 2 800 incidentes; e só nos primeiros seis meses de 2016 contaram-se 40 notificações.
‘INCUMPRIMENTO VOLUNTÁRIO’
Mais grave ainda foi o CSN ter detetado, em maio do ano passado, “um incumprimento consciente, voluntário, repetitivo e programado” das instruções de segurança contra incêndios, lê-se no relatório semestral. Entre outras coisas, os inspetores encontraram peças deformadas, material combustível numa bandeja de cabos de segurança, e a ausência de uma avaliação de segurança para a fuga de óleo na bomba de refrigeração do reator número 1. Durante a inspeção, recolheram umas trinta beatas, concluindo que se fuma no interior da central, o que é proibido.
Esta foi a primeira vez que o CSN publicou um relatório que faz um retrato preocupante daquilo que acontece em Almaraz – e não foi por acaso, nota Chema González: “Todos sabemos que o CSN não é um organismo independente e que os seus responsáveis vêm de empresas de energia nuclear. Mas os inspetores passaram a ter um sindicato e, pelos vistos, decidiram defender o seu trabalho, destapando as irregularidades na central.”
Por estes dias, Chema González e Paco Castejón andam atarefados com o recurso que têm de apresentar até ao final do mês se querem tentar travar a construção do ATI. “Uma das coisas que falta ao estudo é a questão da Alternativa Zero o que acontece se o projeto não for executado.”
Mesmo que isso implique o fecho da central, que sozinha fornece 16 mil milhões de kWh anuais a toda a Espanha (a título de exemplo, em 2015 Portugal consumiu quase 47 mil milhões de kWh), os dois ativistas sublinham que o fim de Almaraz não seria um descalabro para o mercado energético nacional. Segundo o diário espanhol Público, num domingo de maio de 2011, quando os reatores nucleares de três centrais pararam para encher os depósitos de urânio, um incidente numa válvula obrigou a Endesa e a Iberdrola a deter um quarto reator e não houve nenhum apagão nem se abusou dos combustíveis fósseis para substituir a energia atómica. Nesse dia, a energia eólica cobriu 42,9% da procura e vendeu-se para França e Portugal entre 3% e 5% da eletricidade gerada.
De caminho, no Movimento Ibérico Antinuclear aproveita-se para defender um calendário de fecho das centrais nucleares espanholas. Se fossem eles a mandar, encerrariam todas no dia em que terminassem as suas atuais licenças de exploração. A última a fechar seria Trillo, em novembro de 2024 mesmo assim, dois anos depois de a Alemanha ter previsivelmente acabado com o nuclear. A tendência europeia aponta para energias renováveis porque “é uma falácia dizer que o nuclear fica barato”, lembra Samuel Infante, da Quercus de Castelo Branco. “A verdade é que não sabemos quais são os custos de manter os resíduos controlados durante 250 mil anos.”
A central de Almaraz, pela proximidade geográfica, é a que tem preocupado Portugal quase desde que foi construída (ler caixa Espanha tem “um padrão de secretismo”). É adquirido que, se houver um acidente grave num dos dois reatores de Almaraz, a 100 quilómetros da fronteira, os distritos de Castelo Branco e de Portalegre podem ser afetados pela contaminação do ar e, sobretudo, das águas do Tejo, usadas na central espanhola. A situação mais preocupante será precisamente uma eventual fuga de material radioativo para o maior rio da Península Ibérica, uma vez que os ventos predominantes, em Portugal, são de oeste.
‘SE TEMOS MEDO NÃO VIVEMOS’
O meteorologista e ativista antinuclear Costa Alves lembra que Portugal “não possui conhecimento técnico-científico estruturado nem capacidade operacional de resposta de emergência de proteção civil face à eventualidade de um acidente nuclear em Almaraz”. Por isso, diz ser necessário que o País “se dote de um plano de emergência especial para este risco”. Tal plano implica o “concurso de várias especialidades técnico-científicas”, mas em documentos públicos, atualizados em 2016 pela Autoridade Nacional de Proteção Civil, Costa Alves apenas encontra um convite à “reflexão e ponderação”.
Impacientes com a demora na “tradução prática” da “reflexão e ponderação”, o meteorologista e outros ativistas constituíram a plataforma cívica Tejo Seguro, a qual, através de crowdfunding, conseguiu adquirir e instalar um sensor de monitorização do nível de radiação na atmosfera, a partir da zona fronteiriça de Segura.
Quem mora perto de Almaraz já se habituou a conviver com a ideia do risco. “Sabemos que há fugas [de radioatividade] e que os ventos podem trazer tudo para aqui, mas o que fazer?”, encolhe de ombros Isabel Antón, 43 anos, à frente da tabacaria da Plaza de España, no centro de Losar de la Vera, situada a 50 quilómetros da central. “Se estamos sempre com medo não vivemos.”
Aos 89 anos, Manuel Hernández também tem resposta pronta: “É de lá que vem a eletricidade para nos aquecer nestes dias frios.” Mas logo a seguir confessa a principal razão por que defende a central. “Tenho um neto engenheiro que trabalha lá. Almaraz dá emprego a muita gente.”
Sim, a central emprega diretamente 350 pessoas, mais mil de 18 em 18 meses, quando tem de parar para revisões, manutenção e mudança de combustível. São números relevantes numa região rural em que o trabalho no campo é sazonal, ouviremos a Gema Luengo, a agente de emprego e desenvolvimento de Losar de la Vera, a pequena localidade conhecida pelos buxos cortados em formas cómicas: “Tabaco, azeitona, espargos… De resto, só há serviços e administração local.”
Na vizinha Jaraíz de la Vera, onde o Museu do Pimento é a grande atração, Jose António García interrompe a explicação da origem das latinhas de pimentão em pó, que está a dar a uns turistas, para torcer o nariz a Almaraz. Tem 30 anos e cresceu a ouvir falar nos perigos da central. “Vemos pessoas e animais afetados e fica a dúvida: ‘E se está mesmo a acontecer alguma coisa de grave?'”
Em novembro, os presidentes dos doze municípios situados num raio de quinze quilómetros da central foram até Zorita, Guadalajara, para ver o ATI da antiga central José Cabrera, semelhante ao projetado para Almaraz. Durante a visita apoiaram a construção do armazém, o que não surpreendeu Chema González. “Recebem milhões para compensar estarem próximos da central. E quando sabes que o porta-voz de Almaraz é presidente da Câmara de Miajadas…”
Percebe-se, por isso, que fazer perguntas nas imediações devolva quase sempre a mesma resposta “Dá emprego” com Chema González a lamentar que ninguém se lembre de que o desmantelamento da central pode demorar mais de duas décadas e empregar centenas de pessoas. E parar o carro deixa-nos debaixo de olho da Guardia Civil, que tem um destacamento a patrulhar a zona porque a central é considerada um objetivo terrorista. Fotografar as torres de Almaraz só ao longe, desde a barragem de Arrocampo, onde a voz que sai de um altifalante arrepia. Entre rolos de arame farpado e focos de luz é inevitável imaginarmo-nos num campo de concentração. Nem a lindíssima serra de Gredos, por estes dias meio coberta de neve, alivia a sensação desagradável.
Reportagem publicada na VISÃO 1246 de 19 de janeiro