Harrison. Esta é, muito provavelmente, a palavra que mais se ouve sair da boca de um estudante finalista em medicina, nos últimos tempos. É o nome que dão à prova nacional de seriação de acesso à especialidade. Passam dias, semanas, meses a fio a estudar para essa prova. Mesmo assim – e aqui reside uma boa parte do problema – alguns deles vão ficar de fora por falta de vagas.
2015 foi o primeiro ano em que houve médicos a ficar de fora da especialidade. Este ano, abriram 1675 vagas. Dos 2046 candidatos considerados aptos, 213 desistiram e outros 158 ficaram de fora, por falta de vaga. Resultado: 371 médicos não conseguiram entrar em nenhuma especialidade.
Os números mostram que não existem vagas suficientes para todos. Ainda assim, a quantidade de vagas tem subido de ano para ano. De 2015 para 2016, abriram mais 106. Outro valor que também tem vindo a aumentar é o número de colocados em Medicina pelo concurso nacional.
A Associação Nacional de Estudantes de Medicina (ANEM) e a Ordem dos Médicos estão de acordo: o número excessivo de estudantes de medicina é uma das principais causas da situação que se vive hoje. De acordo com a ANEM, entram cerca de 1800 alunos no curso, por ano.
Mas o ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, Manuel Heitor, disse, numa entrevista ao jornal Expresso, para não contarem com ele para baixar o número de vagas nos cursos de medicina, até porque ainda existem locais do país com falta de médicos.
A estas declarações André Fernandes, presidente da ANEM, responde: “o senhor ministro está completamente desadequado em relação à realidade. Não pode estabelecer um raciocínio de que, porque faltam médicos num sítio do país, faltam médicos em todo o lado”. Há, sim, um problema claro que muitas vezes é esquecido: o planeamento. “Precisamos de ver as especialidades que têm falta de médicos, quais as zonas do país em que isso acontece e pensar de que forma podemos fixar médicos aí. Mas isto não se resolve a aumentar vagas. Se não se planear, não se resolve nada”, explica.
O exame
No dia 17 de novembro, António Donato vai estar a realizar as 100 questões de escolha múltipla que compõem este exame. Se há um mês ainda se dava ao luxo de ir correr, hoje nem isso. Estuda desde que acorda até que se deita e só para mesmo para comer. A preparação já começou o ano passado, no início do seu sexto ano de faculdade, mas só depois de terminar o estágio e a tese é que se conseguiu dedicar a tempo inteiro ao estudo.
Os enunciados da prova são feitos por 15 médicos selecionados pela Ordem dos Médicos. Baseia-se na 19ª edição da obra americana Harrison’s Principles of Internal Medicine e foca-se em cinco áreas da medicina: a gastrenterologia, a pneumologia, a cardiologia, a hematologia e a nefrologia. Já é assim desde os anos 70 e já há muito tempo que este modelo é criticado. António conta que o livro é quase uma “bíblia da medicina” mas que problema do exame é destacar situações demasiado específicas desse livro.
Paula Marques fez o exame o ano passado e pensa da mesma forma que António. “Não concordo com a maneira como abordam o livro. Perguntam mais sobre conhecimentos teóricos sobre esse livro – questões matemáticas, percentagens, detalhes – do que sobre casos clínicos. Na prática clínica, esses conhecimentos acabam por não ter aplicabilidade nenhuma”. Paula teve uma boa prestação no exame. Conseguiu entrar na especialidade que queria – Cirurgia Geral –, mas recorda que foi preciso muito esforço para o conseguir.
Para o ano é a vez do presidente da ANEM ser posto à prova pelo Harrison e já começou a estudar. Há algo de que já está consciente: “o principal problema do exame é que avalia a capacidade mnésica de um estudante, isto é, a capacidade que ele tem de decorar o que está no livro”. Para ele esta não é a forma de seriação correta. O exame devia, de preferência, “ abranger mais áreas da medicina e mudar o tipo de questões que são feitas para umas que consigam perceber o raciocínio clínico, a capacidade de estabelecer diagnósticos e de relacionar problemas”.
Efeito bola de neve
A complexidade da prova aliada à possibilidade de não conseguir uma especialidade tem deixado os estudantes naturalmente muito preocupados, pressionados e nervosos. António Donato tem conseguido controlar os nervos, mas admite que a sobrecarga de trabalhos e o contexto atual são impulsionadores do nervosismo.
André Fernandes admite que parte da culpa desse sentimento é dos próprios estudantes. “Somos naturalmente competitivos”, diz. “Não faz sentido as pessoas estarem um ano antes a prepararem-se para este exame. Mas as circunstâncias fazem com que assim seja”, acrescenta.
O stress muitas vezes acaba por ter consequências negativas na própria prestação dos recém-formados: “eu vejo pessoas que, a um mês do exame, estão quase em burnout. Há outras que nem sequer conseguem fazer o exame. Emocionalmente, é muito desgastante”, conta o estudante.
Que alternativas têm os 371 médicos que não conseguiram uma especialidade este ano? Repetir o exame para o ano na tentativa de conseguir uma especialidade; emigar, procurando especializar-se no estrangeiro; abandonar a carreira, desperdiçando sete anos de estudo; exercer como médico indirenciado.
“Um médico indiferenciado funciona como um tarefeiro”, explica o representante máximo da ANEM. “Estes médicos têm autonomia, mas consideramos uma situação má quer para o Sistema Nacional de Saúde, quer para os próprios doentes”.
Este é um problema para o qual a ANEM já vinha a alertar há muito tempo. O efeito bola de neve é inevitável: aos 113 que ficaram de fora o ano passado, outros se juntaram este ano. Em 2017, o número vai aumentar ainda mais. “A formação de um aluno de medicina custa muito dinheiro ao estado e, desta forma, estão a desperdiça-la”, lamentam.
Para rever a situação, André Fernandes explica que tem de haver consensos, vontade política e que o assunto tem de ser considerado prioritário, algo que até agora ainda não aconteceu.
A realização do Harrison é a única forma de um médico se habilitar a uma especialidade, em Portugal. A próxima prova realiza-se já no próximo mês e estão inscritos cerca de 2700 médicos.