Despedem-se da República Democrática do Congo, mas são barrados no controlo fronteiriço do vizinho Ruanda. Impossível entrar sem o visto adequado, de nada vale insistirem. Têm de voltar para trás, que por ali não passam. Dão meia volta e mostram os documentos para regressarem à República Democrática do Congo. Pedem-lhes os vistos. Já não são válidos, informam-nos. Caducaram.
Entalados entre o segundo maior país do continente e um dos mais pequenos, bem no coração de África, os portugueses Manolo e Glória Oliveira estão retidos em zona de ninguém, sem autorização para seguirem para nenhum dos lados. Diz ele para ela, ambos já batidos naquelas paragens: “E se abrissemos aqui uma roulotte de bifanas?”
Ao fim de quase 40 anos de viagens pelo continente africano, este casal de jornalistas sabe como relativizar pequenos contratempos em nome do bem maior que é ir “ao encontro de pessoas de coração aberto”, com uma “riqueza humana única”. E esta segunda-feira, 24, lá vão eles outra vez, à “redescoberta”: da Ericeira, onde moram, a Joanesburgo, com um salto a Moçambique pelo meio. Mais de 20 mil quilómetros a rolar de jipe, através de 21 países e a dormir onde calhar, até ao destino final na África do Sul, lá para 2 de dezembro. “A viagem está toda organizada até ao dia a partida”, brinca Manolo, em conversa com a VISÃO, media partner da iniciativa. “Depois tudo pode acontecer”, desafia.
Partem carregados de “livros, esferográficas, lápis, estojos e mochilas” para entregar em escolas, sobretudo a uma “no meio da selva” em Moçambique onde um dia foram “muito bem recebidos”, mas não querem publicitar a generosidade para além disso. A experiência diz-lhes que vão dar e receber na maior aventura que alguma vez enfrentaram por terras africanas, agora que Manolo já entrou nos 60 e Glória está à porta.
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A cada t-shirt oferecida a um desconhecido, o mais certo é vir convite para comer ou pernoitar. Há quase sempre algo em troca, nem que seja uma maçaroca de milho, como aconteceu na última viagem, em Moçambique, enquanto esperavam que um amigo os desenrascasse de dois pneus furados. “As coisas mais engraçadas que nos têm acontecido é quando não há planeamento”, sublinha Manolo.
Não se lembram de alguma vez terem recusado o convívio com pessoas que nunca tinham visto antes e Glória não esquece “uma tarde deliciosa” passada em Marrocos, a beber chá e a saborear tâmaras com “toda a gente sentada no chão”. Também já comeram em quartéis e campos de refugiados, e na Líbia os militares ofereceram-lhes maçãs e gasóleo, que o carro também precisa de “alimento”.
Quando dão boleia, e é uma espécie de pão-nosso-de-cada-dia, arriscam-se a que lhes retribuam uma semana depois com “um saco de cajus”, como certa vez na Guiné-Bissau. Se forem polícias ou militares a subir a bordo, livram-se de parar nas múltiplas operações stop. “Uma vez, na Mauritânia, foram 26 num dia”, recorda Manolo.
E medo, não existe? Existe, tanto que só conduzem durante o dia. Mas é relativo. “Somos desde sempre amantes das viagens sem pulseirinha nem bar aberto”, ilustra o marido de Glória, ela já a deixar-se levar pelas palavras do homem com quem casou em 1976 assim como se deixa ir África adentro. “Nós não somos turistas normais, somos viajantes. Gostamos de contactar com as pessoas, de estar em casa delas, de visitar as aldeias.” Uma ideia na bagagem é a renovação dos votos de casamento junto de uma tribo, talvez os hereros em Angola ou os bushmen no Botswana. No braço esquerdo de ambos já assinalaram a data com uma tatuagem: um mapa de África a envolver o número 40.
No jipe, além da roupa e do material escolar, também cabem fogão, frigorífico, computador, máquina fotográfica, equipamento de navegação, cadeiras e uma tenda, onde vão dormir sempre que não houver um hotel ou um albergue por perto. Nesses dias, escolhem um local isolado ou procuram uma placa a dizer camping. “Basta isso para aquilo passar a ser um parque de campismo, com a vantagem de não precisarmos de carta de campista”, ri-se Glória.
Até ver, os leões nunca se aproximaram. “Às vezes ouvimos um rugido ao longe, mas tem sido pacífico”, garante Manolo, antítese do Fernando Pessoa “que dizia que viajar não valia a pena”. Admirador do escritor, para o fazer mudar de ideias, como se tal fosse possível, este português de “espírito nómada” levá-lo-ia primeiro às Cataratas de Vitória, no Zimbabwe: “É um coisa fabulosa. Faz-nos perguntar: ‘Mas afinal quem é que fez isto? Como é que isto é possível? Existe ou não existe Deus?'”. Perante a paisagem “monstra”, uma garganta gigante que se abre entre dois blocos de terra e faz o rio Zambeze cair num precipício com mais de 100 metros, até um ateu como ele fica na dúvida. “Não somos religiosos, graças a Deus”, graceja.
Manolo continua a acreditar “mais nas pessoas”. Como os voluntários incansáveis de Organizações Não Governamentais (ONG’s) que tem visto por África, no terreno, a ajudar as populações, às vezes 18 horas por dia. Ainda que esse “excelente trabalho” não dissipe as “muitas dúvidas” que tem sobre o verdadeiro interesse das ONG’s “em estabilizar o continente”. Ao fim de décadas de doações, é bastante crítico da aplicação do dinheiro em África por parte das ONG’s. “Não se vê uma transformação. Parece que são profissionais da miséria, ou seja, ganha-se dinheiro enquanto o continente estiver no estado em que está. É essa a sensação que dá”, lamenta Manolo, convicto de que só os africanos podem levantar um continente “rico em tudo o que se possa imaginar”.
Ao longo desta viagem, o casal lisboeta promete manter os interessados a par das peripécias através de crónicas regulares no site da VISÃO. Sempre que a internet estiver disponível, haverá novidades da aventura. E não será assim tão difícil. “Mesmo nas aldeias remotas, em locais onde não há luz nem água canalizada, há cidadãos com dois telemóveis”, relata Manolo, que deixa mensagem após o sinal: “As operadoras de telecomunicações oferecem aos novos assinantes um par de calças, um carneiro, pintam casas… É uma doideira.” Boa viagem.