Na década de 70, cerca de mil e quinhentas famílias foram desalojadas das suas casas costeiras, em Fortaleza (Ceará), por interesses e especulações imobiliárias. Escorraçaram-nas para a periferia, a mais de vinte quilómetros do seu local de origem, sem casas nem infraestruturas. Hoje, conseguiram passar de favela a bairro, criando o seu próprio dinheiro – o Palmas – e o primeiro banco popular do Brasil (Banco Palmas), cuja experiência está a ser replicada em mais de 100 municípios brasileiros e exportada para o mundo. A psicóloga, documentarista e pós-graduada em Gestão Pública, Edilsa Peixoto, acompanhou a comunidade durante 11 anos e agora faz palestras pelo mundo sobre boas práticas de Economia Social e Solidária no Brasil. Estará em Portugal, entre 19 a 24 de Junho, em Grândola, Palmela e Évora, na sequência do Tour Europeu Economia Social e Solidária 2016, organizado pelo Instituto Marquês de Valle Flôr.
Sem qualquer luz ao fundo do túnel, numa situação desesperada, longe de fontes de rendimento, a comunidade resolveu sair do sistema. Ou seja, como explica Edilsa Peixoto à VISÃO, o bairro de 40 mil habitantes “provou que era possível um novo tipo de sociedade e de economia, a partir da circulação de uma moeda social/local”. Claro que, refere, não falamos de utopia, a comunidade não vive isolada do resto do Brasil: “Existe a economia de dentro, a que chamamos economia solidária, e a economia de fora, a que chamamos economia capitalista e de mercado”. O dinheiro oficial do país, o real, continua a circular. Aquilo a que a conferencista chama “hibridaçâo”. E exemplifica: “Temos a costureira no bairro mas não temos a indústria têxtil que produz o tecido e que está fora do bairro. Então é preciso relacionar as duas economias. As costureiras e os comerciantes locais precisam de comprar o tecido na economia fora do bairro (de mercado ou capitalista). Por isso, a moeda Palmas está ‘lastreada’ na moeda nacional, em reais. Quando os moradores precisam comprar produtos ou consumir fora do bairro, elas vão ao Banco Palmas, trocam os palmas por reais e assim compram na outra economia”.
Garante que esse processo de «hibridação de economias» é «legal e tranquilo». A ideia é que, explica, aos poucos o bairro vá abdicando da necessidade de comprar fora e seja o mais autossustentável possível, quando os moradores começarem a produzir muitos produtos localmente e até criem indústrias.
Neste momento, existem no Brasil 113 bancos comunitários, em 20 estados brasileiros e em 93 municípios. O Banco Palmas, o primeiro no Brasil, é o maior (6 mil clientes), o segundo é Banco Bem, situado num morro na cidade de Vitória, e que serve pessoas em pobreza extrema (3 mil clientes) e o terceiro o Banco Tupinanbá, que serve os pescadores da remota Ilha de Marajó, Belém do Pará, Amazónia, sem infraestrutura, nem presença do Estado (1500 utentes).
Mais autónomos, mais felizes
A moeda que circula localmente gera riqueza, as pessoas conseguem comprar mais, trabalham mais, criam-se mais postos de emprego. A identidade da comunidade, continua Edilsa, torna-se fortíssima, assim como o poder local. E isso só funciona na base da confiança: quando um comerciante aceita um pedaço de papel emitido por um banco comunitário para troca, está a assumir a possibilidade de uma economia alternativa. Os moradores do bairro, continua, são hoje mais confiantes, mais ponderados, mais cientes dos seus direitos e deveres. E também da sua autoestima. “Porque aprenderam a produzir e consumir localmente, a resolver os seus problemas comunitariamente. Vivem melhor, amenizam as suas dores, potenciam os momentos de prazer. Têm a noção que os seus problemas podem ser superados por eles mesmos. E talvez isso traga mais felicidade”.
Agora que, comenta Edilsa, “a democracia brasileira foi brutalmente golpeada pelo novo governo ” – não terminaram só os Ministérios da Cultura, dos Direitos das mulheres, da Igualdade Racail, dos Direitos Humanos (ministérios mais sensíveis a causas das minorias e mais desfavorecidos no Brasil), acabou também a Secretaria Nacional de Economia Solidária – teme que possa acontecer um grande retrocesso social: ” Não é só um novo governo, não é apenas a substituição de uma presidente pelo vice-presidente. É mais que isso, é um novo plano de governo, novo plano politico, baseado numa nova filosofia e lógica voltados para o mercado, onde tudo ‘vira’ mercadoria”.
Segundo explica, «as primeiras medidas deste novo governo, todas foram no sentido do retrocesso, reduzindo ganhos resultantes de lutas sociais. Tentando reduzir benefícios sociais conquistados depois de muita mobilização e lutas populares. Existe uma ameaça muito concreta, mas há no Brasil também um movimento de resistência muito forte. O movimento das ruas, do povo, dos artistas, dos intelectuais, e de políticos… Estamos confiantes de que este novo governo, por ser ilegítimo, por não ter sido eleito pelas ruas e por apresentar um modelo que aponta frontalmente para a perda de benefícios, vai enfrentar oposição aguerrida de uma maioria do povo e não sustentará suas propostas de retrocesso. O meu desejo é que o poder seja retomado por quem lhe é de direito, ou seja, pelo respeito ao voto do povo, ou com a volta da presidenta, ou com novas eleições”.
Com a experiência da comunidade e do Banco Palmas, aprendeu que “o povo pode resolver os problemas do próprio povo”. A causa terá, agora, menos recursos, menos repercussão nacional, e menos apoio governamental. “Mas os bancos comunitários foram feitos para sobreviver de forma ‘autogestionária’, a partir da capacidade de seus associados, de suas poupanças e da criação de soluções locais. Então podemos dizer pelo mundo todo que resistiremos! A crise brasileira, a crise politica, a crise econômica e social, o golpe na democracia, pode até afetar, mas não vai destruir o que foi construído. Porque estamos solidificados no apoio e processo de organização das comunidades”.