Ser capaz de realizar um ensaio clínico de fase I está para a medicina como a indústria espacial está para a tecnologia. Funciona como um selo de qualidade que atesta a capacidade de cumprir os mais exigentes e detalhados requisitos. Só os países muito avançados conseguem entrar nesta primeira liga, de mercados muito regulamentados e com cadernos de encargos que enchem dezenas de dossiês. É por isso que, a par da consternação, o sentimento mais comum perante o ‘caso Bial’ seja a estupefação. “É de tal forma estranho, raro e grave que pode vir a mudar a forma de desenhar ensaios clínicos”, nota o neurologista Joaquim Ferreira, que já coordenou o Centro de Investigação Clínica do Hospital de Santa Maria.
Pelos piores motivos, a farmacêutica portuguesa Bial tem estado, desde sexta-feira, 15, em destaque nos principais meios de comunicação mundiais. Neste dia, e pela boca da ministra da saúde francesa, Marisol Touraine, ficou a saber-se que o ensaio de fase I, feito em Rennes à molécula BIA 10-2474, tinha sido suspenso porque um dos participantes no estudo estava em morte cerebral (entretanto morreu) e outros cinco estavam internados, quatro deles em estado grave. Todos voluntários, jovens e saudáveis, que aceitaram participar no estudo a troco de uma compensação financeira no valor de 1900 euros.
No mundo ocidental, os dedos de uma mão sobram para reportar casos com esta gravidade. Na Europa, é mesmo o mais grave alguma vez registado. (À parte desta questão fica a Ásia, em particular a Índia, que se tem tornado numa espécie de mercado negro dos testes a medicamentos, onde a regulamentação, ou ausência dela, não tem qualquer paralelismo com o que se passa na Europa ou na América.)
Durante um ensaio de fase I está a dar-se, pela primeira vez, um medicamento a um grupo de pessoas. Antes disso, a nova molécula foi testada em células e em animais (ver infografia). É uma ocasião para testar, essencialmente, os efeitos tóxicos e a segurança do produto. “Nesta fase inicial não conhecemos ainda todas as ações do composto e muitas vezes os fármacos têm uma ação que desconhecemos”, explica Joaquim Ferreira. “É a fase de maior risco e por isso também a que tem mais regras e procedimentos”, acrescenta a investigadora do Instituto de Tecnologia Química e Biológica de Oeiras, Paula Alves.
Dentro dos ensaios de fase I, podemos distinguir dois tipos. Aquele em que se testa um medicamento inovador em pacientes, geralmente em casos de doenças oncológicas ou raras, em que os participantes são pessoas sem qualquer tratamento disponível ou que já esgotaram todas as hipóteses terapêuticas do mercado. E depois há aqueles em que se experimenta uma nova molécula em voluntários saudáveis, como é o caso deste produto da Bial, para avaliar a sua segurança e perfil de toxicidade.
O que falhou?
A hipótese mais plausível, para já, é a de que tenha ocorrido um erro grosseiro na manipulação do produto. “Alguém dever ter-se enganado na dose e dado 10 ou 100 vezes mais do que o previsto”, avança José Cunha Vaz, presidente da Associação para a Inovação e Pesquisa Biomédica em Luz e Imagem, Aibili. “Enquanto se está a testar uma nova molécula, as quantidades de produto vão aumentando progressivamente e é muito estranho que nos quase 100 voluntários que já tinham tomado a dose anterior não se tenha registado qualquer efeito adverso”, sublinha o responsável do Aibili, instituto que se tem destacado na realização de ensaios clínicos, sobretudo na área da visão.
Na Europa, o caso mais parecido com este é o que ficou conhecido como “o homem elefante” (porque as suas cabeças triplicaram de tamanho), em que o teste a um anticorpo monoclonal, a TGN1412, em Londres, em 2006, resultou no internamento nos cuidados intensivos, com falência múltipla dos órgãos, de seis voluntários saudáveis. Um deles, Ryan Wilson, de 20 anos, teve de amputar os dedos das mãos e partes dos pés.
Nav Modi, um estudante de 24 anos, já tinha participado em dois outros ensaios da clínica Paraxel, que lhe pagava 2 800 euros. Só num deles tinha sentido algum desconforto, com diarreia e queda de cabelo. Depois da tragédia, recebeu 10 mil euros de indemnização. “Nada pode compensar a saúde perdida, nem mesmo um milhão de libras”, disse durante o julgamento. Todos os envolvidos neste ensaio foram posteriormente avisados de que poderiam desenvolver linfoma ou doenças autoimunes.
Neste caso, o problema estava relacionado com a dosagem, o que levou mesmo a uma reformulação das regras inglesas, sendo desde então obrigatória uma avaliação independente da dosagem a aplicar na fase I de testes em humanos e incluir os pacientes um a um, para limitar danos. A farmacêutica alemã TeGenero faliu no ano seguinte mas a molécula foi comprada pela empresa russa TheraMAB, que iniciou ensaios de fase II no ano passado.
Nos Estados Unidos, a empresa de biotecnologia Zafgen assumiu, no ano passado, a responsabilidade pela morte de dois pacientes que participavam num ensaio clínico de um medicamento para a obesidade. Ambos morreram com coágulos nos pulmões. É preciso recuar a 1999 para encontrar notícias semelhantes. Foi nesse ano que o americano Jesse Gelsinger, de 18 anos, e com uma doença do fígado causada por uma mutação genética, entrou num ensaio clínico da Universidade da Pensilvânia que queria desenvolver um tratamento para recém-nascidos. Foi injetado com um vetor adenoviral transportando um gene corrigido para testar a segurança do processo. Morreu quatro dias depois.
Há ensaios deste tipo em Portugal?
No nosso país, de acordo com a autoridade portuguesa do medicamento Infarmed, estão atualmente aprovados para realização 361 ensaios clínicos, envolvendo 11 943 pessoas. Destes, apenas 14 são de fase I, com a participação de 300 pessoas – um valor residual.
Esta é a fase mais exigente e também a mais apetecível, pelo nível de sofisticação da investigação, que acaba por ser um motor de aprendizagem e inovação. Canadá, Inglaterra, França ou Bélgica são os líderes mundiais nesta área. Mas Portugal quer entrar na corrida. “Vários hospitais públicos portugueses estão a preparar-se para isto,” revela a médica e investigadora Catarina de Resende Oliveira, responsável pela Unidade de Inovação de Desenvolvimento do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra. “Nós ainda não os fazemos, mas já temos a estrutura física montada, as equipas constituídas e esperamos poder começar a funcionar ainda este ano ou no próximo,” continua. Ao que a VISÃO apurou, também o Hospital de Braga, em colaboração com a Universidade do Minho, e o Hospital de Santa Maria, em parceria com o Instituto de Medicina Molecular, se preparam para conduzir este tipo de testes. “É uma questão de estratégia, definida pelos próprios conselhos de administração, que se tornou possível graças à evolução na investigação clínica feita no País e à formação de profissionais desta área”, continua a médica. Uma aposta também a nível europeu, muito clara no principal programa de financiamento da ciência, Horizonte 2020.
Já houve tempos em que em Portugal se fizeram mais ensaios de fase I. A própria Bial chegou a ter em São Mamede do Coronado, na Trofa, uma unidade dedicada a esta área. Só que na legislação para o setor, aprovada em 2004, inferia-se que não seriam permitidos pagamentos a participantes em ensaios clínicos, prevendo apenas o ressarcimento ou compensação pelas perdas sofridas em função da sua participação, como as faltas ao trabalho, os transportes ou a alimentação. Isto levou a que os ensaios com voluntários saudáveis tivessem praticamente deixado de se fazer. Afinal, por maior que seja o amor à ciência, é preciso ter em conta que os voluntários estão a perder tempo, a sujeitar-se a picadas, colheitas de sangue, exames múltiplos. Pode acontecer, por exemplo, a pessoa ter de ser internada durante dois ou três dias, depois da toma do medicamento, sendo constantemente monitorizada.
Em janeiro de 2011, a Comissão de Ética para a Investigação Clínica – uma das três entidades, a par da Comissão de Proteção de Dados e do Infarmed, envolvidas no processo de aprovação de um ensaio – publicou um documento orientador “sobre o pagamento a participantes em ensaios clínicos”, onde se admite que, em situações específicas, poderão ser permitidos pagamentos a participantes em ensaios clínicos: voluntários sãos para fase I ou estudos de bioequivalência (a genéricos). De notar que não está previsto, em lado nenhum, que os doentes participantes em ensaios recebam qualquer tipo de pagamento, assumindo-se que o acesso a um medicamento inovador é só por si um benefício.
O que ganham os voluntários?
Os valores não estão tabelados, porém neste documento refere-se que os pagamentos não deverão ultrapassar o equivalente a dois salários mínimos nacionais. Também se limita a participação, salvo raras exceções, a um ensaio por ano.
Esta abertura permitiu que públicos e privados começassem a apostar neste mercado. A empresa Blueclinical, a funcionar no Hospital da Prelada, no Porto, tomou a dianteira, especializando-se neste tipo de testes. Para estudo de biodisponibilidade e bioequivalência; para avaliar a interação com alimentos, para determinar se um medicamento deve ser tomado às refeições ou fora delas; as interações medicamentosas, que permitem determinar se um medicamento afeta ou é afetado pela toma de outro, e ensaios de tolerabilidade e farmacocinética, para determinar quais são as doses seguras de um fármaco e a forma como o organismo humano o metaboliza e elimina.
Na sua página está disponível o formulário de candidatura dos voluntários, bem como uma descrição dos procedimentos a que terão de ser sujeitos: análises, alimentação padronizada, internamento por alguns dias.
Nos países onde esta é uma prática comum, a participação em ensaios é vista como um part-time, uma fonte de rendimento extra, que atrai, tipicamente, estudantes universitários. Aliás, este é um dos perfis dos voluntários da Biotrial, a empresa francesa responsável pelo ensaio da Bial. Na página, jovens sorridentes afirmam o seu interesse no progresso científico. Também surge um pai de família a agradecer as férias pagas à custa da sua atividade como “cobaia humana” e um respeitável aposentado que aprecia o “complemento de reforma”.
Tem mesmo de ser assim?
Duarte Cancella de Abreu faz parte da história daquele que será o segundo medicamento da Bial a ser aprovado, prevê-se que muito em breve, o opicapone, para a doença de Parkinson (o primeiro foi um antiepilético). Para o lisboeta de 55 anos, ser uma “cobaia humana” foi a sua salvação. Já não havia nenhum medicamento no mercado que lhe permitisse fazer uma das coisas de que mais gosta, conduzir. “A minha única alternativa seria a cirurgia [para implantação de elétrodos no cérebro] e eu não queria porque tem riscos”, revela. E nem o facto de a molécula salvadora ser produzida pela Bial lhe levanta hoje qualquer dúvida. Aliás, a seu ver, a participação naquele ensaio, que já ia na fase III quando foi recrutado, permitiu-lhe não só recuperar alguma autonomia como ainda lhe trouxe uma sensação de dever cumprido. “Estou a contribuir para o progresso da ciência.”
E a verdade é que não há volta a dar. Se queremos ter medicamentos inovadores e eficazes, tem de ser assim. “A medicina ainda não tem nenhuma outra forma de o fazer,” sublinha o médico e investigador do Hospital de Santa Maria, Joaquim Ferreira. “Trabalhamos em células, em vários modelos animais, mas não há previsão de que seja possível eliminar a fase de testes em humanos”, concorda Paula Alves, responsável pelo Laboratório de Bioprocessos Celulares, do Instituto de Tecnologia Química e Biológica (ITQB), em Oeiras. Ainda assim, o seu grupo de investigação, bem como outros em todo o mundo, está a trabalhar no sentido de reduzir ao máximo a necessidade de recorrer a organismos vivos – sejam eles pessoas ou animais. No ITQB, a investigadora já conseguiu montar em laboratório uma rede de células que mimetiza o funcionamento do cérebro e também do fígado. “Trata-se da abordagem organ on a chip [órgão num chip] à qual se seguirá, espera-se, o body on a chip [corpo num chip], que nos permitirá afinar a dose, antes de partirmos para os seres vivos, mas continua a estar completamente fora de hipótese eliminar as etapas estipuladas,” defende.
Que molécula é esta?
De acordo com um comunicado da Bial, a investigação sobre a molécula BIA 10-2474 teve início em 2005, sendo que os primeiros estudos em células e em animais começaram em 2009. Ainda não há nenhum medicamento no mercado que pertença a esta classe – inibidor de longa ação de FAAH (hidrólase de amidas de ácidos gordos) –, mas já foram feitos testes a moléculas da mesma família. E tem vários anos o conhecimento acerca do efeito deste tipo de moléculas na anandamida – um neurotransmissor que imita os efeitos dos compostos psicoativos presentes na canábis, os chamados canabinoides. O seu potencial de atuação é muito sedutor, por incluir o controlo da dor (apresentando-se como uma alternativa aos opiáceos que causam habituação), o efeito anti-inflamatório, a modelação do humor (anandamida vem da palavra em sânscrito que significa ‘paz interior’) e até da memória.
Por tudo isto, o mundo tem os olhos postos na empresa portuguesa. O Governo francês está a acompanhar o caso de perto e espera-se que até ao final do mês fiquem esclarecidas as circunstâncias em que tudo aconteceu. Se foi problema da molécula – e aí a responsabilidade seria do promotor do ensaio, ou seja, da Bial –, se o problema está na forma como o estudo foi conduzido, ou seja, da responsabilidade da francesa Biotrial, uma empresa com larga experiência no setor e com a qual a Bial colabora desde 2007. Dependendo dos resultados, as consequências podem ir até à Agência Europeia do Medicamento, que autoriza todos os ensaios. Para já, foram instaurados três inquéritos pelas autoridades francesas, um deles entregue à polícia judiciária. “Não é um acontecimento normal, mas é sempre possível”, nota Joaquim Cunha, diretor executivo do Health Cluster Portugal, organização que junta dezenas de empresas portuguesas no setor da Saúde, incluindo a Bial. “O facto de os ensaios terem sido feitos em França, um país com muito boa reputação nesta área, protege a empresa numa situação como esta,” defende Joaquim Cunha. Mas alguém falhou na proteção da “cobaia”.