Médico que é bom médico é aquele que investe na investigação de doenças e de procedimentos. Assim pensava a americana Rita Charon, nascida em Providence, Rhode Island, quando concluiu o curso de médica internista, em Harvard. Depois de ter já sido professora, motorista de carrinha escolar e ativista pela paz, Rita acabou por abraçar a profissão do pai e não imaginava que estava prestes a iniciar a revolução da sua vida.
Tudo começou com a sua insatisfação face aos cuidados de saúde, cada vez mais especializados mas, simultaneamente despersonalizados, como se nos corpos portadores de uma doença não habitassem pessoas. Foi então que se especializou em literatura e hoje é conhecida internacionalmente por ser pioneira do movimento da Medicina Narrativa na universidade de Columbia.
Desde o início do século que Rita se tem dedicado a investigar e a divulgar o papel do uso de histórias na prática clínica, reunindo profissionais de saúde e das humanidades para, juntos, encontrarem formas de ampliar as competências clínicas.
A meta é cultivar a multidisciplinaridade e personalizar e humanizar os cuidados prestados, porque nem só de ciência e técnica se faz a relação médico-doente. E porque ambas as partes ganham com isso, com resultados comprovados.
Estar presente
Pela terceira vez em Portugal, a convite do Projeto Narrativa & Medicina, do Centro de Estudos Anglísticos, da Universidade de Lisboa, Rita Charon proferiu uma palestra no dia 29 de outubro, na Fundação Champalimaud, intitulada “Corpos, Histórias e Identidades: Como a Narrativa Salva Vidas”. O projeto, financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia, tem cativado os profissionais de saúde portugueses que, paralelamente ao evento, puderam frequentar um workshop com a mentora e tomar contacto com este método de inovação em saúde.
Laureada com uma bolsa Guggenheim e acumulando vários prémios de mérito em associações médicas e literárias, Rita pede aos estudantes que registem as suas reações a cada caso clinico, na tentativa de irem ao encontro da experiência dos pacientes e do modo como respondem às explicações e informação que lhes dão acerca da doença.
O seu Guia de Leitura para uma Prática Refletida resume-se em seis passos: observar com os cinco sentidos, captar pontos de vista, interpretar a forma do discurso, a voz que conta a história, o estado de humor associado e o rumo seguido.
7 Perguntas a Rita Charon
Aos 66 anos, a médica doutorada em literatura continua a inspirar colegas, alunos e membros da sociedade civil e a produzir obras como o clássico Narrative Medicine: Honoring the Stories of Illness (2006). Fomos ao seu encontro para perceber de que maneira o seu trabalho e investigação pode fazer a diferença nas vidas de todos nós
Qual a vantagem de usar a narrativa literária no treino médico?
Permite que os profissionais de saúde vão além do plano estritamente técnico e descubram recursos preciosos, dos quais não tinham consciência. Quando encorajo os estudantes a escreverem sobre o que se passou na situação clínica, eles dão-se conta de que usam emoções, memórias, capacidades estéticas e crenças filosóficas para chegar ao paciente.
E não é suposto saberem isso, fazerem-no naturalmente no decorrer da consulta?
Não. Muitos clínicos pensam que – e agem como se – o único recurso importante fosse o conhecimento científico. Por exemplo, tocam um corpo para auscultar o som dos batimentos cardíacos ou detetar alguma coisa no fígado. Sentem culpa por poderem estar a trair a sua prática se usarem a imaginação e outros talentos, mais artísticos ou reflexivos. Dizem “não devo fazê-lo, não é da minha competência”.
Sair do registo puramente científico é sinónimo de perda de crédito? Ou uma defesa?
O trabalho que faço, desde há quatro anos, no colégio de médicos e cirurgiões da universidade de Columbia, ajuda-os a estarem presentes na relação, a torna-los curiosos acerca de outros aspetos da vida do paciente, além da sua asma, da sua diabetes… No final, ficam gratos por se libertarem de uma restrição desnecessária de partes de si que facilitam muito o seu trabalho.
Existe o risco de contaminar a experiência pessoal do paciente com a do médico?
Atenção! Não se trata de confessar ao paciente coisas suas, tipo “eu também tenho asma, sei o que está a passar”. O que conta é estar na plena posse do que se passa ali, no momento, para receber o que o paciente diz e poder conter isso de forma mais alargada. O paciente é o primeiro a sentir que é ouvido e a aderir ao processo.
O seu trabalho com narrativas lembra-me o da escritora Siri Hustvedt (mulher de Paul Auster), que não sendo médica, usou a escrita criativa com doentes psiquiátricos. Conhece?
Somos amigas! Ela vive em Brooklyn mas veio a Manhattan, onde eu vivo, para fazer workshops na clínica de Paine Whitney. A linha do nosso trabalho é distinta, mas partilhamos experiências. No seminário que ela fez na minha universidade, usámos a obra de Henry James, O Calafrio, que serviu para nos mostrar quantos fantasmas e mistérios nos cercam!
Visto assim, o papel do médico é tão atrativo como o do carismático personagem Dr House…
(risos) Sim, chego ao departamento e digo aos presentes: “Não sei como lidar com este caso. Digam-me vocês!” Ao longo de todos estes anos como internista, percebi que me pagam para saber escutar, de forma sofisticada, as versões múltiplas e contraditórias sobre a doença de alguém – do paciente, da filha dele, do médico internista, do ortopedista, do psiquiatra – e integrá-las, dar-lhes coerência para, só então, intervir.