André Matias de Almeida ainda estaria longe de imaginar que, um dia, viria a ser porta-voz da Associação Nacional de Transportadores Públicos Rodoviários de Mercadorias (ANTRAM) quando esteve debaixo de fogo numa investigação judicial por suspeitas de ter gerido de forma desastrosa o dinheiro da Associação Académica da Universidade de Lisboa (AAUL), da qual foi tesoureiro entre 2013 e 2014.
O presidente da direção seguinte não gostou das contas que herdou e remeteu uma queixa-crime para o Ministério Público (MP), na qual descreveu uma discrepância de cerca de 30 mil euros entre as faturas apresentadas e o dinheiro que saiu da conta bancária daquela associação, durante o mandato de Matias de Almeida, hoje advogado da Albuquerque & Almeida e representante dos patrões nas negociações com o Sindicato Nacional de Motoristas de Matérias Perigosas (SNMMP), que ainda há uma semana esteve perto de paralisar o País.
Despesas recorrentes em restaurantes, que incluíram jantares regados com duas garrafas de Licor Beirão. Compra de um fato Giovanni Galli e de botões de punho. Gastos em bilhetes de cinema, artigos de farmácia, serviços de costura e lavandaria. Consumos em discotecas de Lisboa e de Coimbra, como o Main, o Twiit, o Manga Club, pagos com o cartão multibanco da associação académica. Levantamentos em caixas automáticas superiores a 11 mil euros, nalguns casos em montantes que não correspondem às faturas apresentadas. Elevados custos com telemóveis e comunicações. Centenas de euros em gasolina e dezenas de viagens de táxis e transportes públicos, em quantidades e valores que levantaram suspeitas de que André Matias de Almeida, então tesoureiro, e André Machado, então presidente da associação e hoje assessor da eurodeputada do PSD Lídia Pereira, estariam a usar os fundos da AAUL, que funcionava como uma federação de associações, para pagar as suas despesas diárias.
Ao todo, dizia a queixa-crime apresentada pelo líder seguinte da AAUL, João Pedro Vieira, a que a VISÃO teve acesso, a associação terá gasto mais de 43 mil euros num ano, contra os cerca de 13 mil despendidos, por exemplo, pela direção do mandato anterior.
No entanto, André Matias de Almeida e André Machado, únicos arguidos do processo, apresentaram outra versão ao MP: tinha sido um ano atípico para aquela associação, com inúmeras reuniões devido à anunciada fusão da Universidade Técnica de Lisboa com a Universidade de Lisboa. No mesmo sentido das declarações que prestou à data, o advogado e porta-voz da ANTRAM afirma agora à VISÃO que tudo se tratou de “uma difamação que ficou esclarecida junto do MP”.
Nega que tenham sido feitos levantamentos sem suporte documental, justifica os montantes deixados em restaurantes, transportes públicos e táxis como “despesas de representação de uma direção inteira” num “ano de muito trabalho”, mas garante que esses montantes estão ainda assim “muito abaixo das despesas de representação de outras estruturas associativas de âmbito nacional”. Fundamenta as despesas em discotecas de Lisboa por ser “do âmbito das associações realizarem festas” e as de Coimbra com o bloqueio do cartão pessoal de outro dirigente que, nos dias seguintes, terá reembolsado a associação. Já sobre o fato e os botões de punho, garante não ter havido “dinheiros da associação nestes gastos”, até porque “jamais um técnico oficial de contas teria aceitado tais despesas”: “Trata-se de um documento sem qualquer contribuinte e alheio à associação, que nenhuma pessoa pode juntar numa queixa e dizer que foi feito por outrem ou com dinheiros de uma associação sem que para tal tenha apresentado qualquer prova.”
A auditoria que nunca existiu
O Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Lisboa arquivou o processo-crime, em julho de 2017. A procuradora concluiu que das declarações de ambas as partes tinha resultado uma dúvida “insanável” sobre se teria havido ilícitos ou sobre quem os praticara, sobrando apenas duas versões contraditórias, ambas corroboradas por testemunhas. Não havia provas em concreto que sustentassem que os factos haviam ocorrido como tinham sido relatados na queixa, da mesma forma que não existiam “motivos suficientes” para “desvalorizar a versão apresentada pelos arguidos”.
Não tendo o MP conseguido “prova documental” que sustentasse a queixa, a procuradora alegou não poder concluir “sem dúvidas” que André Matias de Almeida e André Machado se teriam “apropriado das quantias em causa em seu benefício”, ou em benefício de terceiros, ou “quais os montantes concretos de que se teriam apropriado”, acabando por concluir que o cartão multibanco da associação não seria apenas usado pelo tesoureiro e pelo presidente mas também por outros membros, incluindo João Pedro Vieira, que fora vice-presidente naquele mandato e que foi o autor desta denúncia em representação da AAUL, a que presidiu de outubro de 2014 a outubro de 2015.
No despacho de arquivamento não há qualquer referência a análises detalhadas às contas da associação. No relatório intercalar, o órgão de polícia criminal que teve a investigação a seu cargo sugeriu que se realizasse uma perícia à contabilidade da associação académica, mas tal nunca terá sido feito.
Sentindo-se lesado com a fama de gastador, André Machado ainda apresentou uma queixa por difamação contra João Pedro Vieira, hoje vereador da Câmara Municipal do Funchal e secretário-geral do PS Madeira. O MP acompanhou a acusação particular, mas uma juíza decidiu arquivar o processo. O homem que tem estado na berlinda por negociar com o Governo e com o sindicato de Pedro Pardal Henriques, enquanto representante dos patrões das empresas de camionagem, seguiu os mesmos passos do que o antigo colega, mas a juíza sugeriu que as partes chegassem a acordo e desistissem do processo. Assim foi.
Na altura em que foi tesoureiro da AAUL, André Matias de Almeida já tinha terminado a licenciatura e uma pós-graduação, na Faculdade de Direito de Lisboa, local onde também foi dirigente associativo entre 2012 e 2013. Começara a frequentar o mestrado à noite e já trabalhava no escritório de advogados Jardim, Sampaio, Magalhães e Silva e Associados.
Uma questão familiar
Seja como for, o jovem promovido à ribalta com a greve dos motoristas de veículos pesados não é o único elemento do clã a ter problemas judiciais relacionados com o seu percurso de dirigente associativo. O irmão, Bruno Matias de Almeida, hoje adjunto do secretário de Estado da Economia, candidatou-se à liderança da Associação Académica de Coimbra em 2013, mas só tomou posse quatro meses depois de ter vencido as eleições.
O processo eleitoral foi impugnado por Samuel Caetano Vilela, o candidato que venceu a primeira volta com boa margem, mas perdera a segunda por uma diferença de votos nunca vista num sufrágio anterior. A sua lista suspeitou de uma grande variação de votos numa urna da faculdade de Medicina de Coimbra. O caso foi investigado, descobriu-se que as câmaras de vigilância de uma sala onde estavam guardadas as urnas tinham estado desligadas durante um determinado período, foi relatada a entrada e a saída misteriosa de um saco de desporto nessa mesma divisão, um segurança que interveio no transporte dos boletins de voto nunca foi encontrado, mas o enigma acabou sem consequências. O processo-crime foi arquivado por não se ter descoberto o(s) alegado(s) autor(es) da fraude.
A ação foi interposta contra a Comissão Eleitoral e não contra Bruno Matias de Almeida. Apesar disso, e de estar em causa a legitimidade de um mandato e interesses que deveriam ser opostos, quem representou a Associação Académica de Coimbra foi Manuel de Magalhães e Silva, advogado do escritório onde à data trabalhava André Matias de Almeida. Durante a fase de inquirição do processo-crime, as testemunhas foram acompanhadas pela advogada Diana Afonso, atual mulher de André Reigota Gomes, adjunto do secretário de Estado da Defesa do Consumidor e amigo de André Matias de Almeida.
Samuel Caetano Vilela – que atualmente assessora Lídia Pereira no Parlamento Europeu (tal como André Machado) – foi vice-presidente da Associação Académica de Coimbra em 2012 e propôs reformar o funcionamento da Queima das Fitas que, na altura, tinha uma comissão organizadora liderada por André Reigota Gomes.
O mais curioso é que no processo movido contra André Matias de Almeida por suspeitas de má gestão dos fundos da AAUL, o irmão Bruno também é mencionado. O seu mandato apresentara despesas de merchandising superiores a 7 mil euros, valor que o queixoso entendeu ser “altamente inflacionado” para canetas, fitas, autocolantes, isqueiros e blocos. Cada caneta, por exemplo, tinha custado 96 cêntimos, face a orçamentos anteriores em que cada esferográfica não tinha ultrapassado os 35 cêntimos.
A denúncia sugeria que esse dinheiro poderia ter sido desviado para a campanha em Coimbra de Bruno Matias de Almeida, que todos comentavam ter sido uma das mais exuberantes de que havia memória. Em todo o caso, o fornecedor da gráfica, também de Coimbra, contou que os valores tinham disparado porque os materiais foram solicitados com urgência. Argumentou até que, por essa razão, as fitas encomendadas tinham sido fabricadas à mão, uma a uma.
“O meu irmão nunca contribuiu financeiramente para qualquer campanha em que eu estive envolvido”, defende-se, em resposta enviada à VISÃO, o adjunto do gabinete de João Correia Neves. Quem conhece os irmãos Matias de Almeida não tem dúvidas de que ouviremos falar muito nos seus nomes. Na política, na advocacia ou nos negócios? É essa a incógnita.
Leia mais na edição da VISÃO que vai amanhã para as bancas.