Como a história do “para o ano é que é o ano da Operação Marquês” se repete desde 2014, é provável que muitos já tenham perdido a vontade de ir a correr assistir aos desenvolvimentos desta novela judicial. Mas agora é garantido: 2019 vai mesmo ser o ano do tudo ou nada para o processo que tem como protagonista José Sócrates.
Com a passagem da pasta do juiz Carlos Alexandre (que acompanhou o processo na fase da investigação, autorizando as buscas judiciais e as escutas telefónicas) para o juiz Ivo Rosa (que irá acompanhar a fase de instrução, decidindo quem vai ou não a julgamento e por que crimes), e com as inúmeras questões técnico-jurídicas levantadas pelas defesas dos arguidos, o melhor é preparar-se para ouvir muitas vezes o nome Operação Marquês no próximo ano, porque este folhetim judicial promete muitos episódios. E alguns poderão ser surpreendentes. Nos últimos meses, o juiz Ivo Rosa decidiu não levar a julgamento um marroquino acusado de recrutar membros para o Daesh; um ex-secretário de Estado e um antigo decisor público no caso dos colégios GPS; e responsáveis da TAP e da Sonangol num caso em que a petrolífera angolana era suspeita de branquear dinheiro em Portugal. Pelo que, atendendo ao histórico das suas últimas decisões, há razões para desconfiar de que dificilmente o texto da acusação da Operação Marquês chega a julgamento tal como está. A grande dúvida é se haverá uma reviravolta: poderá toda a investigação do Ministério Público vir abaixo e José Sócrates livrar-se de ir a julgamento por corrupção?
Tudo isto começará a ser discutido no fim de janeiro, data em que o juiz madeirense irá começar a reunir-se com os advogados dos arguidos que requereram a instrução na esperança de evitar o julgamento. E claro que do lado das defesas – onde estão alguns dos pesos-pesados da advocacia portuguesa – se esfregam as mãos de contentamento desde que o sorteio eletrónico ditou que o juiz de instrução seria Ivo Rosa, conhecido por anular acusações que pareciam coesas.
Do outro lado do sorteio ficou Carlos Alexandre, a fava que todos os arguidos rezavam para que não lhes calhasse este ano no bolo-rei. O seu nome pode não ter sido o sorteado, mas não será por isso que desaparecerá de cena no ano judicial que se avizinha. É que se, por um lado, muitos arguidos defendem que o processo foi inicialmente mal distribuído, tendo ido parar às mãos de Carlos Alexandre de forma irregular, por outro, o juiz mais mediático do Tribunal Central de Instrução Criminal está a braços com um processo disciplinar por ter levantado dúvidas sobre a suposta aleatoriedade do sorteio eletrónico que ditou quem decidiria o futuro da Operação Marquês.
Mas o que pode mesmo comprometer a visão que os portugueses têm da Justiça é o que sair da decisão instrutória: se Ivo Rosa decide que há indícios suficientes para levar a julgamento José Sócrates, o amigo Carlos Santos Silva ou o ex-ministro Armando Vara pelos crimes de que são acusados, ou se, pelo contrário, iliba todos, no mais grave caso de corrupção da história da democracia portuguesa, ou ainda se decide, por exemplo, levar Sócrates a julgamento apenas pelos crimes de fraude fiscal e branqueamento de capitais, deixando cair os crimes de corrupção – campo em que o Ministério Público não conseguiu reunir prova direta.
Todas as antenas estarão viradas para Ivo Rosa. Mas a sua decisão não será o fim da Operação Marquês. Tanto os arguidos como o Ministério Público têm ainda a hipótese de recorrer das suas decisões para os tribunais superiores antes de o caso seguir para um tribunal criminal (estão preparados para ouvir falar de Operação Marquês em 2020?). E, neste caso concreto, se olharmos para as estatísticas, o caso é mais favorável para o lado do Ministério Público e do juiz Carlos Alexandre: as suas decisões foram confirmadas por todos os juízes que analisaram recursos, à exceção de um. O nome desse magistrado, nem a propósito, estará no centro de outro processo que deverá ter desenvolvimentos no próximo ano: a Operação Lex.
Rui Rangel foi o único juiz a dar uma decisão favorável a José Sócrates e é um dos candidatos a conhecerem desenvolvimentos no processo em que é suspeito de ter recebido dinheiro em troca da promessa de decisões judiciais favoráveis. Rangel, segundo o Ministério Público, terá prometido ajudar figuras como Luís Filipe Vieira ou José Veiga. Quer um quer outro continuarão na berlinda do mundo judiciário em 2019. O presidente do Benfica terá ainda de aguardar pelo desfecho do caso dos emails (num momento em que a juíza de instrução decidiu que a SAD do Benfica não vai a julgamento no caso e-toupeira). Já o ex-agente de futebolistas poderá preparar-se para uma acusação até ao outono no caso Rota do Atlântico, no qual foi constituído arguido por suspeitas de ter corrompido governantes do Congo-Brazzaville a troco da adjudicação de obras públicas para o grupo brasileiro Asperbras, para o qual trabalhava.
Futebol, BES e EDP
No que ao futebol diz respeito, a justiça do ano que vem promete não ter só Benfica. Será o ano em que Bruno de Carvalho vai saber se há ou não provas suficientes para o levar a julgamento no caso do ataque à academia do Sporting em Alcochete e em que a procuradora Cândida Vilar ficará a saber, no inquérito disciplinar contra ela movido depois da divulgação dos áudios dos interrogatórios, se se “esticou” ou não enquanto interrogava outros arguidos que estão em prisão preventiva nesse processo.
Já do lado de lá do Atlântico, são esperados desenvolvimentos no caso judicial em que a americana Kathryn Mayorga acusa Cristiano Ronaldo de a ter violado num quarto de hotel de Las Vegas, em 2009. Um previsível primeiro passo será a audição do jogador da Juventus por videoconferência. Depois, a grande incógnita: irá a justiça americana em época de #metoo acusar um dos mais mediáticos jogadores de futebol do mundo?
Depois de “paiol” se ter tornado uma das palavras do ano de 2018 à custa da anedótica encenação da descoberta das armas de Tancos, o próximo ano deverá reservar acusações tanto para os que roubaram as armas como para os que alegadamente encenaram que as tinham descoberto.
Já no campo político, os ex-secretários de Estado que foram ver os jogos de Portugal a França a convite da Galp vão ter de esperar mais uns meses para saber se também neste caso o Ministério Público será o cobrador do fraque e se pagam mesmo uma multa para escapar a julgamento. Quanto aos deputados e presidentes de junta envolvidos no Tutti Frutti, estes deverão finalmente começar a ser ouvidos no processo em que PS e PSD aparecem todos à mistura. O ex-ministro Armando Vara, por seu lado, já está na cadeia de Évora, onde é o primeiro político a cumprir uma pena de prisão em Portugal por crimes de tráfico de influência. Em breve, poderá deixar de ser o único: são esperados resultados de outros recursos – os últimos – do processo Face Oculta, que investigou uma alegada rede de corrupção que teria como objetivo favorecer um sucateiro em negócios com o Estado. E a confirmarem-se as decisões dos tribunais superiores, que têm mantido as penas de prisão efetivas, tudo indica que o ex-presidente da REN, José Penedos, e o seu filho Paulo Penedos serão os senhores que se seguem.
Poucos estarão a torcer tanto por uma reviravolta nos seus processos como os Penedos ou Orlando Figueira, o ex-procurador que prometeu recorrer da pena a que foi recentemente condenado: seis anos e oito meses de prisão por ter aceitado alegados subornos do então vice-presidente angolano, Manuel Vicente. Resta saber se a condenação vingará em sede de recurso, se o alegado corruptor vai mesmo ser julgado em Angola, e o que vai acontecer ao novo processo nascido deste Fizz, em que o banqueiro Carlos Silva é suspeito de ser o corruptor de Orlando Figueira (e não Manuel Vicente) e o advogado Proença de Carvalho é suspeito de pagar pelo silêncio do procurador. Poderão as duas teses vingar ao mesmo tempo?
Novidades com mais potencial mediático são esperadas no processo EDP, agora que os procuradores do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) começaram finalmente a poder usar emails e dados fiscais e bancários dos arguidos. O ano começará com audições de mais testemunhas e só um grande volte-face poderia evitar que Manuel Pinho não fosse acusado em 2019 de ter favorecido os interesses da elétrica quando era ministro da Economia do governo de José Sócrates, em troca de um cargo de professor em Columbia num curso patrocinado pela EDP e avenças mensais chorudas da Espírito Santo Enterprises, a empresa não documentada do Grupo Espírito Santo (GES).
Por falar em DCIAP e em GES, a grande corrida contra o tempo naquele departamento decorre precisamente nos processos que investigam a queda do BES e do grupo liderado por Ricardo Salgado. As pressões para que haja uma acusação até março vêm de todas as partes. Cumprir esse prazo parece uma tarefa hercúlea num momento em que tantas testemunhas essenciais para o processo ainda não foram ouvidas, mas ninguém perdoaria se o ano acabasse sem uma acusação. Ricardo Salgado termina este ano de 2018 com uma série de decisões judiciais favoráveis que têm anulado as acusações do Banco de Portugal, mas arrisca-se a terminar o próximo com, pelo menos, duas acusações em processos-crime: uma no caso EDP, outra no caso BES/GES, ambas no papel de corruptor.
Os processos quentes
Um pequeno guia para não se perder
Operação Marquês
Principal arguido: José Sócrates
A fase de instrução (prejulgamento) começa em janeiro
Caso BES/GES
Principal arguido: Ricardo Salgado
Espera-se primeira acusação em 2019
Operação Lex
Principal arguido: Rui Rangel
Em investigação no Supremo Tribunal de Justiça
Operação Fizz
Principal arguido: Orlando Figueira
Tribunal condenou o ex-procurador. Caso vai para recurso
Rota do Atlântico
Principal arguido: José Veiga
Esperada acusação até ao outono