O presidente da Fundação “O Século” apresentou a sua demissão da instituição na semana antes da Páscoa, depois ser constituído arguido pelo Ministério Público por suspeitas de abuso de poder e peculato (uso de bens públicos para fins privados), e depois de um longo braço-de-ferro com o Conselho de Curadores da instituição, que defendia que o presidente e o vice-presidente se deviam afastar devido à situação financeira em que “O Século” se encontrava e devido às graves suspeitas do Ministério Público. Essas suspeitas, que a VISÃO tem revelado na edição em papel e no online, levaram a Polícia Judiciária a fazer buscas por duas vezes à Fundação com sede em São Pedro do Estoril, uma em janeiro, outra em março deste ano.
Emanuel Martins, que liderava a instituição desde o verão de 2012, terá tentado primeiro uma compensação monetária pela saída. Depois, terá tentado ficar com o carro da Fundação que conduzia na condição de presidente. Perante as recusas do Conselho de Curadores, Emanuel Martins terá então, ao que a VISÃO averiguou, decidido vender o Volkswagen Passat que usava mas que era propriedade da Fundação. Para contornar as regras que ditam que os administradores não podem fazer negócios com as instituições que administram, Emanuel Martins decidiu vender o carro a um dos seus filhos, Mário Martins, também funcionário da Fundação. Mas sem que, aparentemente, outros trabalhadores fossem informados sobre esta venda.
À revelia das instruções dos Curadores, em fevereiro, o então presidente da Fundação “O Século” resolveu levar a votação numa reunião do conselho de administração a proposta para a venda do carro ao filho. Essa proposta foi aprovada com votos de três dos cinco administradores. O carro da Fundação foi então vendido a Mário Martins por 11 500 euros, que deverão ser pagos em prestações durante os próximos anos.
Contactado há uns dias pela VISÃO, Emanuel Martins nada quis comentar: “Não irei responder a absolutamente nada.”
As circunstâncias da venda desta viatura, e a legalidade da operação, estão agora a ser analisadas pelo novo conselho de administração que tomou posse na passada segunda-feira, 2 de Abril, e que conta até ao momento com quatro membros. António Júlio de Almeida é o novo presidente da Fundação.
Júlio de Almeida esteve à frente de uma instituição da margem sul de Lisboa mas ficou conhecido sobretudo como presidente da EMEL – Empresa de Mobilidade e Estacionamento de Lisboa. Foi demitido em 2015 por António Costa, então presidente da autarquia, por uma alegada “divergência insanável relativamente a um conjunto de despedimentos”. Júlio de Almeida tinha começado a despedir uma dezena de quadros da empresa que seriam próximos de dois administradores que haviam contestado a sua gestão.
Esses administradores recusavam-se a assinar as atas do Conselho de Administração da EMEL por entenderem que não correspondiam à verdade das reuniões. Entre outras coisas, essas atas mencionariam a aquisição de serviços de arquitectura no valor de milhares de euros, aquisições de que esses gestores discordavam, por entenderem que eram ilegais.
António Júlio de Almeida tinha também entrado em conflito com a autarquia por alegadamente recusar pagar à câmara cerca de 13 milhões de euros de rendas de concessão da EMEL à autarquia. Quando saiu, o agora presidente da Fundação “O Século” enviou um email aos trabalhadores mencionando que em seis anos teria conseguido pôr a EMEL com “níveis de rentabilidade consideráveis” e com o resultado líquido “mais elevado da história da empresa”.
As alegadas ilegalidades do ex-presidente da Fundação “O Século”
A nova administração da Fundação “O Século”, liderada por Júlio de Almeida, e que tem como vice-presidente Mafalda Morgado (que transitou da anterior administração), está incumbida nesta primeira fase de fazer um balanço da atual situação financeira da instituição e de arranjar um plano para a salvar. Muitas contas da Fundação estão penhoradas por dívidas contraídas pela anterior gestão. Até ao momento ainda só foi pago cerca de metade dos salários do mês de abril e, para muitos, o subsídio de Natal ainda está em dívida.
Em março, a VISÃO revelou que aquela Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS) conhecida sobretudo pela sua colónia balnear tinha, no final do ano de 2017, dívidas de 4 milhões de euros, entre IVA, segurança social dos trabalhadores, fornecedores e financiamentos bancários. Emanuel Martins negava tudo. Agora, depois de apresentar a demissão perante o Conselho de Curadores, o ex-presidente d’ “O Século” enviou também uma carta de despedida aos trabalhadores, culpando a anterior administração e a Câmara Municipal de Lisboa pelo descalabro financeiro da Fundação.
Ainda ninguém se tinha esquecido do escândalo da Raríssimas quando a Polícia Judiciária fez buscas na Fundação “O Século”, no início de Janeiro. O Ministério Público estava a investigar mais uma IPSS que todos os anos recebe subsídios do Estado. A denúncia enviada à Segurança Social em 2016 – que levou a uma auditoria jurídico-financeira à instituição e ao consequente inquérito no Ministério Público – conta em pormenor como os recursos financeiros e humanos daquela IPSS terão sido usados em proveito do seu presidente. Nessa altura, a VISÃO revelou como a Fundação estava dominada pela família do seu presidente, por membros da maçonaria e por políticos do concelho de Oeiras. Emanuel Martins negou todas as denúncias e defendeu ter lutado, nos últimos anos, para “manter a Fundação viva”.
Além das suspeitas de contratações indevidas de familiares e de amigos maçons, há registos de gastos com o cartão de crédito não documentados e suspeitas de que esses cartões terão sido usados para gastos pessoais do ex-presidente e do ex-vice-presidente – em viagens e restaurantes, por exemplo.
Desde janeiro que o Conselho de Curadores queria afastar Emanuel Martins e o vice-presidente da Fundação, João Ferreirinho, dos respetivos cargos. Chegou até a ser pensado que o próprio Conselho de Curadores poderia assumir a gestão corrente da IPSS até ser escolhido um novo conselho de administração. A Segurança Social, porém, vetou essa opção, por ir contra a Lei das Fundações.
Contactado pela VISÃO, Rodolfo Crespo, presidente do Conselho de Curadores e ex-presidente da Fundação “O Século” (anterior a Emanuel Martins), não quis comentar as alegadas ilegalidades sob suspeita. Confirmou apenas que a situação financeira da instituição “não é fácil”: “Temos de dar a volta às coisas. Foi difícil encontrar uma administração com coragem para segurar o barco. A Fundação passou já por outros momentos semelhantes e sabemos que ninguém quer perder esta obra social.”