Podíamos começar com os concorrentes desavindos a Oeiras, Isaltino Morais e Paulo Vistas, o criador e a criatura, o mestre e o discípulo, o velho galo e o galaró. Ou podíamos optar pelo caso de Matosinhos, onde três candidaturas, todas protagonizadas por socialistas divididos, tornam a campanha efervescente, a pessoalização exacerbada, o resultado incerto. Mas também podíamos abrir esta história com algum dos casos que ficaram célebres e podem ter mudado o rumo da política e, às vezes, do País: Mário Soares e Salgado Zenha, Sá Carneiro e Magalhães Mota, Cavaco Silva e Fernando Lima – ou Freitas do Amaral –, António Guterres e Fernando Gomes – ou Manuel Maria Carrilho –, Paulo Portas e Manuel Monteiro, Santana Lopes e Durão Barroso – ou Carmona Rodrigues, ou Henrique Chaves… –, José Sócrates e António Costa – ou Teixeira dos Santos –, Álvaro Cunhal e Zita Seabra, António de Spínola e Otelo Saraiva de Carvalho. Divergências políticas, intrigas, ciúmes vários, deceções pessoais, disputa de lugares, deslealdades diversas, traições avulsas, equívocos infelizes e, até, negócios de saias já destruíram, na política, amizades que pareciam à prova de bala. Talvez devêssemos, afinal, começar este texto pelo princípio de tudo – porque nem sempre as punhaladas foram metafóricas. Nos “Idos de Março”, Júlio César teve a duvidosa honra de proferir palavras fundadoras, as mesmas que podem continuar a ser proferidas, em Portugal, por políticos e autarcas que desfilam perante as nossas barbas: “Até tu, Bruto?…”
Oeiras à Vista(s)
“Até tu, Vistas?”, dirá Isaltino Morais por detrás das paredes envidraçadas da sua sede de campanha, em Linda a Velha, concelho de Oeiras. Uma sede esta semana convenientemente vandalizada, o que reforça a sua imagem de homem acossado que luta contra tudo e contra todos. Isto depois de uma decisão do juiz Nuno Cardoso, que recusou a sua candidatura em tribunal, ter sido revertida pelo mesmo tribunal. Para vermos como as coisas podem ser colocadas ao nível das relações pessoais, Isaltino sabia, e não deixou de revelar, que Paulo Vistas tinha sido o padrinho de casamento do juiz…
Reeleito em 2009, mas já condenado, em primeira instância, no âmbito do processo que o levaria à prisão, Isaltino tentou fazer de Paulo Vistas o seu Medvedev: tal como Putin, na Rússia, quis fazer-se substituir temporariamente e Paulo Vistas foi o escolhido para lhe guardar o lugar. Em 2013, Vistas usou o nome de Isaltino no seu movimento independente, associando-se, assim, a uma “marca” registada e vencedora. Da prisão, Isaltino veria Vistas ser eleito, em 2013, embora, largamente à sua custa, ou, pelo menos, graças à associação que o delfim soubera habilmente fazer ao seu nome, ganhando pelo movimento Isaltino Oeiras Mais à Frente (IOMAF). Ora, em Oeiras, um saco de batatas teria hipótese de ser eleito se se chamasse Isaltino…
Mas Paulo Vistas tem outra visão: ele, agora, eleito pelo povo, sentiu uma legitimidade própria. O lugar era seu. Isaltino não perdoou e jurou vingar-se. Ele intui que ainda é o favorito dos eleitores e quer prová-lo. Uma guerra de egos, portanto, que os eleitores serão chamados a arbitrar, no próximo dia 1 de outubro.
O caso de Oeiras tem ingredientes ainda mais interessantes: o candidato da coligação PSD/CDS, Ângelo Pereira, é vereador e trabalhou com ambos. E a candidata independente Sónia Amado Gonçalves protagoniza a maior curiosidade: depois de ter também trabalhado com ambos, na Câmara e não só – chegou a apoiar juridicamente Isaltino Morais no seu processo com a Justiça… –, foi convidada pelos dois a dar a cara nas respetivas candidaturas. Já em 2016, Vistas propusera-lhe que deixasse o cargo de confiança política para assumir um lugar de técnica na autarquia. “Na conversa, só faltou oferecer-me o euromilhões”, revela.
Em fevereiro deste ano, Isaltino surpreende-a com um estranho convite: “Quero que sejas a minha candidata à União de Freguesias Algés, Linda a Velha, Cruz Quebrada-Dafundo. Não te levo como vereadora porque não volto a apostar em pessoas que tenham ambição a ser presidentes de Câmara.” O ex-autarca estava escaldado. Pior ficou ao ouvir um “”não”: “Tu vais-te arrepender.” Ganhou ali um inimigo.
Os senhores de Matosinhos
Em Matosinhos, a confusão é total. Entre facadas e punhaladas, Luísa Salgueiro (a “cigana”, nas recentes palavras, que tanta celeuma causaram, do eurodeputado socialista Manuel dos Santos) é a candidata oficial do PS. Estreou-se como vereadora em 1997 a convite de… Narciso Miranda. Narciso que saiu “mal” do partido há anos e que já este ano viu o Tribunal da Relação do Porto confirmar a pena de dois anos e dez meses de prisão, com pena suspensa, por um crime de abuso de confiança e outro de falsificação. Reincidente (2009), volta a tentar a sua sorte, nestas eleições. Mas não é o único: outro ex-socialista, António Parada, ex-presidente da Junta de Freguesia de Matosinhos, já foi candidato há quatro anos e convenceu vários militantes a saírem do partido para apoiar a sua nova candidatura. Embora surja, de novo, como independente, tem o apoio do CDS.
Narciso Miranda, o antigo “Senhor de Matosinhos”, que estribado em beijos e abraços das peixeiras locais lá foi ganhando eleições com tal facilidade que parecia invencível, já há oito anos tentara recuperar a Câmara como independente. Em 2013, apoiou quem? Um dos atuais adversários: António Parada!
A ajudar à festa, cruza-se com estes um outro inimigo, Ernesto Páscoa, presidente da concelhia do PS de Matosinhos, que decidiu impugnar as listas do partido à Câmara. Queria ser ele o candidato. E eis como uma guerra de alecrim e manjerona entre personalidades, egos e interesses pessoais pode fazer um município mudar de mãos.
Os amigos de Santana
Narciso em Matosinhos, Isaltino em Oeiras, dois anjos caídos em desgraça depois de problemas com a Justiça, na sequência de processos decorrentes da sua atividade como titulares de cargos públicos. Quando foi presidente do PSD, Luís Marques Mendes lançou uma fatwa sobre os autarcas do partido que tivessem processos em tribunal, tudo em nome da transparência. Foi o caso em Oeiras ou em Gondomar (de Valentim Loureiro que, curiosamente, também se recandidata este ano), impedidos de concorrerem com as cores laranja. Um dos outros alvos foi, em 2007, o presidente da Câmara de Lisboa, Carmona Rodrigues, o independente eleito pelo PSD e antigo braço-direito – e amigo – do antecessor, Pedro Santana Lopes (que saiu para substituir Durão Barroso, como primeiro-ministro, quando este, em 2004, aceitou o cargo de presidente da Comissão Europeia). Em 2007, na sequência de uma crise de governação camarária, motivada pela troca de terrenos da antiga Feira Popular em Entrecampos, por outros no Parque Mayer, da empresa Bragaparques, o PSD, de Marques Mendes, solicitou aos seus vereadores na CML que renunciassem ao cargo, o que provocou a queda do Executivo Camarário e a marcação de eleições intercalares. Carmona, incompatibilizado com a liderança social-democrata e, já ressentido, também, com Santana – que o tinha posto lá, inicialmente –, vencedor das eleições anteriores contra o socialista Manuel Maria Carrilho, avançou com a sua própria candidatura, relegando o social-democrata Fernando Negrão para um impensável 3.º lugar. Esta zanga abriu caminho a António Costa, na CML, e, vista retrospetivamente, pode ter estado nos primórdios do que acabou por resultar na sua ascensão à liderança socialista e à solução governativa carinhosamente conhecida por “geringonça”.
Em novembro de 2013, acusado do crime de prevaricação de titular de cargo político, no julgamento Bragaparques, Carmona Rodrigues alegou, em tribunal, através da sua advogada, que quem praticou os atos que o levaram ao banco dos réus foi, afinal, Pedro Santana Lopes. Era o fim de uma bonita amizade.
Já que entrámos no capítulo relativo a Santana Lopes, convém recordar que a desavença com um dos seus melhores amigos foi o detonador da crise que, nos finais de 2004, levou o Presidente Jorge Sampaio a dissolver a Assembleia da República e a convocar eleições legislativas antecipadas. Quando o ministro Henrique Chaves, um dos mais próximos de Santana, bateu com a porta, e, sobretudo, nos termos intempestivos em que o fez, o destino do substituto de Durão no Governo estava traçado. O Presidente não precisava de saber mais nada.
A demissão do então recém-empossado ministro da Juventude, Desporto e Reabilitação e amigo pessoal de Santana, surgiu apenas quatro dias depois de ter tomado posse do cargo. Henrique Chaves despediu-se, sem sequer prevenir o primeiro-ministro e, à Lusa, acusou o chefe de “falhas de coordenação e falta de lealdade”. Chaves era um dos ministros mais importantes e influentes do Governo, por pertencer ao núcleo mais duro de Santana. Esta zanga está nas origens do posterior meteoro político chamado José Sócrates e de tudo o que já se sabe sobre este período recente da nossa jovem democracia.
Repare-se que Santana Lopes substitui Durão Barroso porque, numa espécie de “casamento de conveniência”, era então o nº 2 do PSD. Mas a relação entre os dois homens, que tinham sido amigos íntimos enquanto estudantes na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, já tinha conhecido melhores dias. Nunca, no PSD, a fricção entre Durão e Santana, antes inseparáveis, foi devidamente explicada. Nos meandros da pequena maledicência política, corria a versão que tudo começara, ainda na juventude, por uma alegada “questão de saias”.
O fim da dupla-maravilha
Entre as mais surpreendentes quebras – ou, pelo menos, esfriamento – de relações na história do PSD, está o diferendo que opôs Sá Carneiro a Magalhães Mota. A proverbial bonomia de Mota, sempre agarrado a seu cachimbo, em postura reflexiva, estalou, em 1979, quando abandonou o PSD, em conflito com Sá Carneiro, devido a “divergências políticas”. Eram companheiros de anos, desde antes do 25 de abril. Primeiro na Ala Liberal, depois na fundação do PPD, e nos primeiros tempos do PREC. Mota e outros dissidentes, como Sousa Franco (mais tarde ministro das Finanças de António Guterres) acabaram por partir a bancada parlamentar do PSD, abandonando o partido mas não a Assembleia. Inicia-se o projeto de fundação da ASDI (Associação Social Democrata Independente) que, em 1979, integraria as listas conjuntas da FRS (Frente Republicana e Socialista), para as legislativas que deram a primeira maioria absoluta à AD. A FRS era liderada pelo PS.
Desses tempos, sobra uma das zangas mais espetaculares e inesperadas da história política do século XX. O carismático advogado lisboeta Salgado Zenha, considerado, até 1980, o n.º 2 do PS e o mais íntimo amigo de Mário Soares, apresentou, em 1986, a sua própria candidatura presidencial, contra Soares. Zenha contava com o apoio do PRD, partido inspirado pelo PR cessante, Ramalho Eanes, e até o candidato do PCP, Ângelo Veloso, viria a desistir a seu favor. Do PCP, sim, o mesmo partido que Soares e Zenha tinham combatido tenazmente durante o processo revolucionário… No debate televisivo que opôs os dois antigos cúmplices políticos, Soares, referindo-se, provavelmente, ao ideário político que ambos partilhavam, disse: “Nós somos da mesma família…”, ao que Zenha retorquiu, secamente: “Eu não sou da sua família.”
Salgado Zenha, amigo pessoal de juventude, padrinho da sua filha Isabel, era daquelas relações fraternais que só podem ser equiparadas às que unem irmãos de sangue. O processo das presidenciais de 1980, com Zenha firmemente agarrado à candidatura de Eanes, que Soares execrava, resultou numa bola de neve de atritos, discussões e desinteligências que puseram fim à “dupla-maravilha”. Francisco Salgado Zenha morreu no final de 1993, 26 anos antes de Mário Soares, sem nunca mais se falarem, num conturbado drama que chegou a ter sequelas familiares. Mas a sua candidatura, em 1986, talvez tenha, ironicamente, ajudado a congregar os votos da esquerda que, por um triz, impossibilitaram a eleição do candidato da direita, Freitas do Amaral, à primeira volta, propiciando a subsequente eleição de Mário Soares, à segunda.
Mário Soares teve mais três episódios semelhantes, embora nenhum com a carga emocional do caso Zenha. Em 1996, o Jornal de Angola acusou o cessante Presidente português de ser um traficante, por via das suas relações com a UNITA e com Jonas Savimbi. Quando Soares esperava um enérgico protesto do Governo português, ainda por cima liderado pelo socialista António Guterres, Jaime Gama, ministro dos Negócios Estrangeiros, chutou para canto: “Não comento fait divers.” Gama fora uma espécie de delfim de Soares, no PS, e os dois homens eram amigos. Deixaram de ser, em nome da real politik.que presidia às relações com Angola.
Mais tarde, em 2005, Manuel Alegre foi o último a saber que, afinal, não era ele o candidato apoiado pelo PS às eleições do ano seguinte. Sócrates fizera a panelinha com Soares para que fosse este o candidato. O poeta trovejou que manteria a candidatura, o que deixou o político que os portugueses conheceram como “o Bochechas” de boca aberta. O 2.º lugar de Alegre e o 3.º de Soares foi uma vingança fria. Mas o episódio acabou por não abalar a amizade que, poucos anos depois, seria retomada.
Queridos inimigos
Muna-se o leitor de mais um pacote de pipocas: as eleições de 1986, em que Soares foi eleito, trazem agora à cena duas outras figuras incontornáveis nos mais de 40 anos de democracia: Diogo Freitas do Amaral e Aníbal Cavaco Silva. Não é que alguma vez os dois homens tenham sido amigos pessoais. Mas foram, de certa forma, correligionários políticos, na AD e no Governo de Sá Carneiro, em que ambos foram ministros. Mais do que isso, quando Cavaco Silva chegou à liderança do PSD, no final da primavera de 1985, trazia uma agenda de rutura com o Governo do Bloco Central (PS/PSD) liderado por Mário Soares, entretanto dado como candidato presidencial do PS no ano seguinte. Essa postura acabou com as esperanças de Soares em obter o apoio social-democrata ao seu desiderato presidencial. Pelo contrário, Cavaco trazia na manga um nome rival para a função: Freitas do Amaral. Sabemos como a história acabou: Soares ganhou, Freitas perdeu. Mas não sabemos quando é que o candidato derrotado conseguiu, finalmente, pagar, do seu bolso, as dívidas que sobraram de uma campanha luxuosa. Justa ou injustamente, Freitas sentiu-se abandonado por Cavaco e pelo PSD, que não se responsabilizaram por essas despesas. O CDS também não ajudou muito – e o professor de Direito queimou pestanas a elaborar pareceres para poder ganhar o dinheiro necessário. A relação com Cavaco, praticamente, acabou ali. Mas, apesar de tudo, em 2011, na segunda candidatura de Cavaco a Belém, acabou por dar a cara apoiando o antigo primeiro-ministro.
Cavaco Silva tem, aliás, um outro ex-amigo à perna, que o vincou bem num livro de desforço publicado em setembro de 2016. Fernando Lima, ex-jornalista, fiel escudeiro na longa carreira pública de Cavaco, começou a assessorar o social-democrata ainda este debutava como primeiro-ministro, nos anos 80. No interregno político do seu amigo, chegou a voltar ao jornalismo, mas nunca perderam o contacto. Mais do que um assessor de imprensa, Lima era um conselheiro, um spinner, uma sombra protetora e um amigo, daqueles que detinham o poder de saber todos os segredos do líder.
O episódio das “escutas” – expressão que Lima sustenta nunca ter usado, por ter falado, penas, em “vigilância” –, surgiu em setembro de 2009, quando o jornal Público faz uma manchete a dizer que a Presidência da República desconfiava que andava a ser vigiada pelos serviços de São Bento do primeiro-ministro (José Sócrates). Com a relação institucional entre Cavaco e Sócrates em cacos, e a menos de um ano e meio das eleições presidenciais de 2011, a notícia caiu como uma bomba, tendo sido bem aproveitada por Sócrates para se vitimizar. O DN acabou por revelar que, na origem da informação do Público, esteve o assessor Fernando Lima. Completamente em pânico devido às consequências que o caso podia ter para a sua recandidatura, Cavaco afasta Lima das relações com a imprensa mas, para continuar a tê-lo controlado, atribui-lhe um vago cargo de analista de informação em Belém. Uma prateleira. No seu livro Na Sombra da Presidência, Lima descreve coloridamente como arranjou um gabinete vago num lugar esconso do Palácio, “num sótão”. Mas as palavras mais reveladoras vêm logo na nona página de um volume de 430: “Verdadeiramente chocante, para mim e para a minha mulher, foi quando Cavaco Silva e a mulher passaram por nós, no fim do almoço do Dia de Portugal em Faro, em 2010, e fizeram de conta que não nos conheciam. (…) Não queríamos acreditar no que nos acabava de suceder. (…) Não deixo de dizer que foi um momento que me encheu de tristeza e muito incomodou a minha mulher. Tivemos de encarar o sucedido como contingências da vida… e das relações humanas!”
De Portas a Cunhal e Otelo
Embora sem o dramatismo místico e emocional do beijo de Judas, fica para a História o caloroso aperto de mão de Paulo Portas a Manuel Monteiro, no congresso do CDS de 1998, depois de aquele ter provocado a queda deste da respetiva liderança, e quando se preparava para o substituir, derrotando a candidata monteirista Maria José Nogueira Pinto. “Eu sei que o Paulo sabe o que eu sei”, proferiu enigmaticamente a candidata derrotada, talvez numa alusão ao que sabia sobre o que se tinha passado entre os dois. Monteiro & Portas formaram uma dupla digna de usar este “& comercial”. Juntos, transformaram o CDS em Partido Popular, romperam com a linha democrata cristã imposta por Freitas do Amaral e radicalizaram-se mais à direita, enveredando, à revelia da tradição do partido, por um via mais eurocética. Os bons resultados eleitorais em 1995 pareciam confirmar os méritos da nova estratégia. O rompimento de Portas com Monteiro e a forma como conquistou o partido é um caso de estudo. O resultado político desta zanga pessoal foi o do regresso do CDS a uma parte das suas origens – a recuperação da costela europeia, e o realinhamento com o arco do Governo foram as mudanças mais marcantes.
Do lado contrário do espetro político, no PCP, o coletivo impõe-se aos sentimentos pessoais e antes de serem amigos os militantes são camaradas. A humilhação pessoal de “traidores”, “dissidentes” ou caídos em desgraça e transformados em “inimigos de classe” tem uma longa tradição nos métodos disciplinares do PCP. Os hábitos de vida, a orientação sexual ou as características pessoais foram aspetos periodicamente explorados para desacreditar os incómodos. Mas há casos e casos – e o caso de Zita Seabra versus Álvaro Cunhal é diferente. A forma como Zita Seabra foi tratada, pelo líder histórico comunista – que, no auge do processo de expulsão, convidou os membros da Comissão Política a revelarem, em voz alta, o que sabiam ou pensavam de menos bom sobre o passado ou a vida pessoal da dissidente, à frente dela –, revela mais do que um simples detalhe disciplinar ou burocrático: há amargura, deceção e desgosto nas atitudes de Cunhal e na forma como a desacreditou publicamente em reuniões partidárias. Cunhal tivera genuína admiração por Zita Seabra, a quem paulatinamente confiara tarefas cada vez mais importantes. O tresmalhar desta ovelha foi para ele um rude golpe. O epílogo surgiu na forma como Zita abandonou, pela última vez, a sede do PCP, colocando, com estrondo, na mesa de Cunhal, as chaves do Renault 5 que lhe estava atribuído pelo partido – em vez de as deixar na receção. Nunca mais se falaram.
Dos tempos da revolução, sobra o equívoco (pouco conhecido) de Spínola relativamente a Otelo Saraiva de Carvalho. O velho e conservador general do monóculo via Otelo como um dos poucos capitães em quem podia confiar. Profundamente gregário e leal com os seus homens, Spínola encarava todos os que tinham com ele servido na Guiné como uma tropa de elite. Otelo fora um dos favoritos. Quando o Governo português se preparava para negociar as independências com os movimentos de libertação das colónias, Spínola chegou a enviar Otelo às conversações, como seu representante pessoal, para vigiar Mário Soares, o ministro dos Negócios Estrangeiros. Spínola não queria entregar os territórios, preferindo esperar por referendos que aceitassem a soberania portuguesa. Quando Otelo lhe disse na cara que, numa dessas reuniões, interviera para apressar a entrega da colónia ao seu interlocutor africano, foi corrido do Palácio quase a pontapé, aos gritos de “traidor”. Fora uma lâmina aguçada no coração surpreendentemente sensível do velho soldado.
O cartoon da facada
Prepare-se, agora, o leitor com menos memória para uma surpresa: o pacato e dialogante secretário-geral da ONU, António Guterres, chegou a ser caricaturado, num jornal de referência, a cravar uma faca nas costas de um camarada de partido. Sabemos que as caricaturas servem para vincar com mais acidez alguns traços físicos – mas, sobretudo, de personalidade. Não admira que o engenheiro tenha, dessa vez, passado umas noites sem dormir, ao saber que o seu filho fora, na escola, confrontado pelos colegas com o malfadado desenho.
Na sua ascensão para a liderança do PS, Guterres terá feito uma boa dúzia de inimigos – e quando abandonou tudo para não se atolar no “pântano”, deve ter feito outros tantos. Nos seus mais de seis anos como primeiro-ministro, a sua falta de jeito para lidar com as remodelações granjeou-lhe mais alguns: cada ministro que saía, acabava por vir dizer mal dele – veja-se o caso de Manuel Maria Carrilho, antigo ministro da Cultura…
No final do ano 2000, Fernando Gomes é remodelado e abandona o cargo de ministro da Administração Interna. Em causa, a crise dos touros de morte, em Barrancos, com a autoridade do Estado posta em xeque, e uma série de assaltos violentos como o que tocou à atriz Lídia Franco, atacada pelo “gangue da CREL”. Gomes saiu a morder os lábios para não chamar nomes a Guterres, de quem fora n.º 2 no partido e quase candidato presidencial, além de amigo pessoal. Armando Vara, que fora secretário de Estado de Gomes, é promovido a ministro da Juventude e Desporto. E o chefe de Gabinete de António Guterres, Luís Patrão, um homem do lóbi socialista da Cova da Beira, do distrito de Guterres (Castelo Branco) e amigo pessoal de José Sócrates, substitui Vara na Administração Interna. É neste contexto que rebenta o escândalo sobre a criação polémica, por Armando Vara, enquanto secretário de Estado de Fernando Gomes, de uma Fundação para a Prevenção Rodoviária, entidade privada destinada a gerir dinheiros públicos, para fazer o que o Governo deveria fazer diretamente: promover campanhas de prevenção. Numa comissão parlamentar para investigar o caso, Gomes tem a sua oportunidade. E aproveita-a, declarando que nunca concordara com a criação da fundação mas que ela foi para a frente com o beneplácito do primeiro-ministro. Num debate parlamentar, Guterres nega, mas é arrasado pela oposição, numa das tardes parlamentares mais difíceis da vida política do líder socialista. Em Belém, Sampaio estremece: está a um mês da sua própria reeleição e vê o partido que o apoia a embrulhar-se numa mal explicada operação, envolvendo dinheiros públicos. Guterres é chamado a Belém e, no dia seguinte, Armando Vara é forçado a demitir-se (arrastando o sucessor Luís Patrão).
Estas coisas pagam-se: o círculo eleitoral de Bragança, cujo aparelho socialista Armando Vara, natural de Vinhais, dominava, foi o único onde Sampaio perdeu as eleições do mês seguinte. Mais tarde, Vara recusou receber uma condecoração das mãos do Presidente.
Sobre Fernando Gomes, Guterres citaria César: “Roma não paga aos assassinos dos seus generais.”
Até tu…
Nos últimos dias, os mentideros alvoroçaram-se com umas palavras que José Sócrates terá proferido sobre António Costa, e que constariam das escutas ouvidas no âmbito da Operação Marquês. Em causa, a alegada falta de coragem que Sócrates atribui a Costa. Tê-lo-á feito em termos fortes, que o livro de estilo da VISÃO nos impede de reproduzir… Nunca foram verdadeiros amigos, é certo, mas, apesar de tudo, Costa chegou a ser tido como o nº 2 de Sócrates durante os seus governos. Mas quando o ex-primeiro-ministro foi detido, Costa recusou partidarizar a questão e deixou o caso “entregue à Justiça”, algo que Sócrates nunca perdoou. Depois, andou a evitar visitá-lo na prisão, em Évora, acabando por se deslocar ali num período morto, com os portugueses distraídos nas festas natalícias de 2015. Uma visita de curtos minutos em que terá ouvido das boas.
Para a História, porém, a zanga mais marcante de Sócrates surgiu com o episódio do pedido de assistência financeira à troika, em abril de 2011. Fernando Teixeira dos Santos, ministro das Finanças, e o primeiro-ministro, tinham construído, ao longo dos anos, uma relação de interdependência que passava para o exterior como uma verdadeira cumplicidade. Obrigado a pedir ajuda, contra as ordens do seu chefe de Governo, para impedir a bancarrota, Teixeira dos Santos convocou “a ira dos deuses”. O ministro das Finanças acabou por comparecer, horas depois, ao lado de Sócrates, perante as televisões, quando a iniciativa foi anunciada ao País. Mas, nesse momento, os dois homens já não se falavam. Minutos antes, Sócrates “pronunciara” as palavras de César: “Até tu, Fernando?
* com Inês Rapazote e Miguel Carvalho
Artigo publicado na VISÃO 1280 de 14 de setembro