Até 2014, ano em que foi preso preventivamente, João de Sousa era considerado um prodigioso inspetor da Polícia Judiciária. Com formação em psicologia e cultura acima da média, notabilizou‑se a decifrar locais de crime e a obter confissões em interrogatórios. Detido preventivamente durante mais de dois anos por suspeitas de envolvimento com uma rede que se dedicava à venda de ouro, acabou condenado a 5 anos e 6 meses de prisão pela alegada prática de crimes de corrupção passiva, recebimento ilícito de vantagem e violação de segredo de funcionário. Na prisão de Évora, onde coincidiu com José Sócrates, foi seu amigo [ajudou‑o a superar o seu problema de pulgas e a decifrar a geografia do poder dentro da cadeia], cúmplice (partilharam livros e confidências) e, finalmente, adversário (cortaram relações por causa das críticas que João lhe fazia no seu blogue, a que chamou Dos Dois Lados das Grades). O que se segue é o seu relato, em exclusivo e na primeira pessoa, daqueles que considerou os momentos mais importantes da passagem de Sócrates pela cadeia.
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As cartas e entrevistas que o José ofereceu ao mundo eram como mecanismos psicológicos de compensação por tudo aquilo a que estava “a ser sujeito pelos canalhas”. Confidenciava-me, enquanto andávamos pelas alas ou no pátio, que era assim que se sentia bem, “revigorado, mais ainda do que quando treinava”. Ou seja, quando escrevia, quando respondia, estava no seu terreno “a lutar”. Revelava‑se extremamente ansioso no dia em que enviava as missivas e na manhã seguinte após a publicação e difusão das suas palavras (assegurando sempre que não lia jornais ou que tinha visto na televisão, o que era mentira) sondava‑me no sentido de obter uma opinião. Chegou a pedir‑me para a minha mulher fazer uma pesquisa nas redes sociais para apurar o sentido da maré, o que contrariava a imagem que pretendia passar: “Estou acima de tudo o que possam dizer ou criticar; não ligo a vozes baixas!”
26 de novembro de 2014
A primeira carta a partir da cadeia
Somente dois dias após a sua divulgação, conversamos sobre a carta que divulgou na comunicação social. Tenho uma anotação no Moleskine: “Exibição narcísica.” Abordamos a eventual perturbação de inquérito que poderia resultar da divulgação das suas palavras. Não releva. “Não me vão calar, João.” Nesse mesmo dia sonda‑me:
– O que acha de dar uma entrevista ao Expresso?
– Perturbação de inquérito…
– Estou‑me cagando!
– Tem de pedir autorização ao diretor da Direção‑Geral dos Serviços Prisionais.
– Eu? O João está enganado! Eu somente vou comunicar ao banana do Sá Gomes.
29 de novembro de 2014
A carta vermelha para mandar Rosário e Alexandre à merda
– José, não acha que a frequência com que fala o vai prejudicar?
– [Rangendo os dentes] João, você não sabe nada sobre estratégia política ou de comunicação. Temos de fazer passar a nossa mensagem repetidamente e convictamente!
– E a defesa em boca própria, o autoelogio, não correrá esse risco, de apontarem‑lhe isso?
– Um político tem de ter amor próprio, muito, tem de gostar que gostem dele. Vaidade?!
– Não será malvisto?
– Nada disso, é uma questão de dignidade!
Depois destas duas iniciativas, o José demonstrava algum desânimo porque no Partido Socialista ninguém se manifestava abertamente sobre a sua prisão, “ninguém com peso”, à exceção do “querido Mário Soares”, que velhinho, encurvado, enchia a sala de visitas com todo o peso da sua história pessoal. “Foi muito bom vê‑lo. Engulam, o Mário Soares visitou‑me!”
1 de dezembro de 2014
A segunda carta
A 30 de novembro de 2014, lê‑me um texto cujo título é Prendo‑te.
Uma escrita virulenta, muito agressiva. Novamente alerto para o perigo de perturbação do inquérito. Responde que eu não deveria comparar o peso que ele tem na sociedade com o de um recluso normal. Ele pode e deve falar, afinal é um ex‑primeiro‑ministro.
Na ocasião faço uma referência a uma frase que anotei da série televisiva Hannibal: “‘Inocência’ não é um veredito, ‘não culpado’, é! Isto não é lei, isto é publicidade! Isto não é lei, isto é publicidade.” Adorou a citação. Anotou‑a e, com uma palmada nas minhas costas, disse‑me:
“Muito bem, João. Já está a perceber como as coisas funcionam!”
Com esta carta e sua publicação, apercebo‑me que as cartas não são publicadas como saem das suas mãos. São revistas por alguém. Mais tarde reconheceu que Pedro Silva Pereira fazia a sua revisão.
(…)
4 de março de 2015
A moleza de António Costa
Cada vez mais desanimado com “toda esta canalhice”, desiludido com as diversas peças jornalísticas que “ajudavam o Teixeirinha e o Alexandre, o Grande Alexandre”, foi notória a satisfação com que recebeu a notícia das palavras de Passos Coelho, afirmando: “Assim sim, João, revelem‑se. Isto é tudo um processo político.” A crítica a Costa torna‑se mais forte, corrosiva, porque não respondeu a Passos Coelho: “Costa é isto! Um mole, sem sentido de oportunidade política, tinha que atacar!”
A 30 de maio 2015, recupera a ausência de reação de Costa aquando das declarações de Passos Coelho, na minha companhia no pátio, gozando, pela derrota na Madeira do Partido Socialista:
“O resultado do PS!!! 10%! 10%! Ó Costa, fala lá agora. Agora vais ter que falar!” Chega ao ponto de afirmar que o resultado é consequência de António Costa não o apoiar publicamente!
(…)
8 de junho de 2015
A recusa da pulseira eletrónica
Confirmando aquilo que me disse em dezembro de 2014, recusou a pulseira eletrónica. Em conversa comigo e outros reclusos, anunciou o que ia fazer, declarando que não era um recluso como os outros. Não aceitaria “desculpas ou tentativas de desculpa por parte do Teixeirinha e do Alexandre, o Grande”.
Nesta fase agudizou‑se a falta de educação em relação aos guardas prisionais. Numa altura um guarda alertou‑o para falta de higiene na sua cela, garantindo ao José que reportaria o facto. Sócrates respondeu: “Sabe escrever? É que eu sei e faço‑o!”
É também nesta altura que a nossa relação esfria, porque lhe digo: “Politicamente a recusa da pulseira é brilhante, mas acho que em nada contribui para otimização da Justiça; diria mesmo que ética e moralmente é reprovável!” Nada respondeu e deixámos de nos falar.
19 de agosto de 2015
A conversa com Francisco Assis
A 6 de agosto, os guardas, indignados, informaram‑me de que o José estava contra a greve que mantinham. A paralisação prejudicava os contactos dos presos com os advogados e as visitas, condicionando as comunicações com o exterior. É notória nesta fase a ansiedade que experimentava, passando horas a caminhar com o olhar ausente.
A 9 de agosto foi visto a falar com a mão à frente da boca para não se perceber o que dizia. Nesta altura eu já escrevia para o CM. Quatro dias depois, durante uma visita de Francisco Assis, estava eu na sala com a minha visita, escutei‑o afirmar: “A minha relação com o Costa é inexistente!”
Cada vez mais, José comportava‑se de forma arrogante, discutindo com os guardas porque as coisas não eram como ele queria. Não era a primeira vez. Aconteceu com o caso das botas [José Sócrates usava calçado proibido pelos regulamentos]. Sobre isso, um dia, depois de assistirmos à revista de imprensa de domingo, na RTP1, com os comentários de Felisbela Lopes [que criticou o facto de o Expresso fazer manchete com a questão das botas e do cachecol de Sócrates], disse:
– Esta tipa saiu de que buraco? Acha mal a primeira página falar da questão das botas!?
– Sempre é uma primeira página, José…
– Ela fala porque não sabe o que isto é aqui! Estar aqui com esta gente, desculpe lá João, que nem se preocupa com estas questões da dignidade…
– José, aqui nós estamos mais preocupados com a comida, as visitas, os telefonemas… as botas… só o José é que usa!
– Oh! João, em diplomacia morre‑se por uma vírgula, e as minhas botas são a minha vírgula. Esta gente não sabe o que é lutar por uma causa!
A última semana
Verificou‑se que o José estava a enviar as suas coisas – livros, DVD – para fora da prisão [o marido da ex‑mulher diligenciou nesse sentido]. Cada vez mais, isolou-se dos restantes reclusos. Foi notório que estava mais confiante nas poucas interações que mantinha com alguns guardas e outros presos. Um ou dois dias antes de sair demonstrou cortesia. A posteriori, essa afabilidade no tratamento com terceiros levou a crer, entre a população recluída e corpo dos guardas, que o José sabia da sua libertação, que viria a acontecer na sexta‑feira, 4 de dezembro:
– Sr. João, Sr. João! O Sócrates vai embora!
– Ele saiu da toca!!!
– A princesa vai embora!
Eram 19h25.
As primeiras manifestações, relativamente à alteração da sua medida de coação, que o José possivelmente ouviu, foram estas. Não ouviu bombos, não estava uma multidão à sua espera, não foi uma apoteose. Em teatro, apoteose é a cena final nas peças alegóricas ou fantásticas, em que as personagens estão representadas numa espécie de glória celeste; conquanto seja fantástica a jornada prisional do José, e conter muito de alegórico relativamente ao poder, sua legitimação popular e exercício, Sócrates não saiu acompanhado de aplausos vibrantes e unânimes: apenas saiu!
Pré-publicação na VISÃO 1284 de 12 de outubro