Os embaixadores que analisaram o currículo ficaram em estado de choque: uma diplomata licenciada em Antropologia Cultural? Acabada de chegar dos Açores, Ana Paula Zacarias contou-lhes que tinha andado na caça à baleia, uma experiência “única”, interdita a espíritos mais impressionáveis. Esta entrevista decorreu em 1983 e o facto é que a argumentação da então candidata surtiu efeito a antropóloga acabaria por entrar para a carreira diplomática, “reservada”, por tradição, a pessoas com outro perfil académico.
Começou por ser adida de embaixada no Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE), em Lisboa. Ana Paula Zacarias continua a descrever ao pormenor essa viagem açoriana, realizada por uma equipa de investigação constituída por biólogos e antropólogos. As advertências de que aquilo não era para “meninas”, a saída da cidade da Horta às 5 da manhã, a traineira perdida nos confins do oceano, o alerta do baleeiro ao avistar o repuxo da baleia, um homem de nome Chá Preto segurando o arpão, o mar completamente vermelho. Quase 30 anos depois, ainda fala do modo como a Antropologia a ajudou a pensar o mundo para além de uma perspetiva linear. “Tem a ver com a adaptabilidade, com a capacidade de saber ouvir, de estudar, de entender o que se passa à nossa volta, de utilizar a informação que se tem”, diz, a partir de Bruxelas, à VISÃO. “A Antropologia dá-nos uma base de compreensão do mundo e dos outros. E, no fundo, o diplomata deve saber ouvir, fazer julgamentos a partir da informação que conseguiu recolher e, numa negociação, ser capaz de compreender o interesse do outro.” Curiosamente, o novo Serviço de Ação Externa da UE, criado pelo Tratado de Lisboa, tem ainda outro português num lugar de destaque: João Vale de Almeida, antigo chefe de gabinete de José Manuel Durão Barroso, na Comissão Europeia, dirige a delegação em Washington. Ana Paula Zacarias, até agora representante permanente adjunta de Portugal em Bruxelas, deverá estar em Brasília no próximo mês de maio, a tempo de acompanhar a visita ao Brasil de Catherine Ashton, Alta Representante da UE para os Assuntos Externos. Segundo a embaixadora portuguesa, é intenção da Europa dar “uma dimensão mais política à relação com o Brasil”, país com o qual “possui laços de natureza histórica, económica e cultural de várias décadas”.
UM POUCO MAIS DE CRIATIVIDADE
Nascida a 5 de janeiro de 1959, em Lisboa, Ana Paula Zacarias é a mais velha de três irmãos de uma família da pequena burguesia lisboeta. A mãe, funcionária dos Correios, morreu muito cedo. O pai, militar, acabaria por ser a figura central para os filhos. Em 1977, Ana Paula fez os exames de admissão à faculdade de Medicina, juntamente com Maria do Carmo Fonseca, sua amiga, colega de liceu e atualmente diretora do Instituto de Medicina Molecular da Universidade de Lisboa.
Ao mesmo tempo, porém, Ana Paula inscreveu-se em Direito, na Universidade Católica. E por este curso viria a optar porque, segundo conta, aqueles anos pós-revolucionários foram demasiado complicados nas universidades públicas e, na Católica, as «coisas estavam um pouco mais organizadas».
Lembra, com apreço, alguns professores que a marcaram, mas, às leis e aos códigos, sentia que “faltava um certo espírito de criatividade”. De Direito, Ana Paula fez apenas três anos, acabando por pedir transferência para Antropologia Cultural, na Universidade Nova de Lisboa.
Terminado o curso, em 1983, ficou na faculdade a dar aulas e a fazer um mestrado em História Cultural e Política de Portugal. “Na altura pensei que a minha vida iria por ali”, explica. Aliás, a maior parte dos seus amigos são, como Miguel Vale de Almeida, Cristiana Bastos ou Clara Saraiva, da área da Antropologia.
Entretanto, abriu o concurso para a carreira diplomática, do qual já se falou no princípio deste texto. Aconselhada pelo pai e por vários amigos, Ana Paula decidiu concorrer. Ao ser aceite, começou por trabalhar no Serviço de Protocolo, onde teve a oportunidade, conforme diz, “de ver pessoas que jamais teria conhecido se não tivesse estado no protocolo”. Apenas três nomes: Jacques Delors, senador Kennedy, princesa Diana.
A propósito, e recordando a sua carreira de 28 anos como diplomata, acrescenta que “a sorte é o momento em que a preparação encontra a oportunidade e algo acontece”. Esteve presente, por exemplo, na cerimónia de adesão de Portugal às Comunidades Europeias, no Mosteiro dos Jerónimos, em 1986. “Nunca mais me vou esquecer disso.”
‘BRASILIAN CONNECTION’
Nos dois anos seguintes, Ana Paula Zacarias foi assessora diplomática do Presidente Mário Soares, em Belém. E, em 1988, nomeada para a embaixada de Portugal, mudou-se para Washington, cidade que, como recorda, “naquela altura era o centro do mundo”. Durante a presidência portuguesa da UE, em 1992, integrou a equipa de negociações do processo de paz no Médio Oriente, na sequência do qual o Presidente Clinton viria a reunir em Washington Yasser Arafat e Yitzhak Rabin para assinarem o acordo que criaria a Autoridade Palestiniana.
Na sua “caixinha de memórias”, Ana Paula guarda uma fotografia da altura, enviada por um colega do State Department, com uma frase a lembrar a sua intervenção no processo: “You were part of it.”» Em 1993, foi nomeada cônsul de Portugal em Curitiba. Desta sua outra “aventura”, gosta de recordar “uma cidade inovadora” e “o contacto direto com as pessoas”. São essas “as coisas que realmente ficam”. E explicita: “Não são só os papéis.” Chegamos ao ponto de contar uma espécie de “brasilian connection” que Ana Paula Zacarias sente na sua vida: o avô paterno morreu no Brasil, foi professora de cadeira Civilizações Ameríndias, a filha nasceu no Brasil e, agora, está de partida para Brasília. A tarefa mais complicada de todo o seu percurso profissional porque, comenta por graça, “leva na bagagem 500 milhões de europeus e estão lá 200 milhões de brasileiros”.
Ana Paula regressou a Portugal no final da década de 90, tendo sido diretora de serviços no Gabinete de Informação e Imprensa do MNE e vice-presidente do Instituto Camões. No ano 2000, foi, ainda, conselheira da missão permanente de Portugal junto da UNESCO, em Paris, e, cinco anos mais tarde, teve a seu cargo a criação da embaixada portuguesa em Tallin. Chegou à Estónia, como diz, com uma mala, um computador e um telemóvel.
E pensou para si própria: “Meu Deus, não sei falar a língua, não conheço ninguém, chove o dia todo, como é que eu vou dar conta disto?” Até que alguém lhe falou numa rapariga, “meio estónia meio portuguesa”, que lá vivia. Era Lina Milhazes, filha do jornalista José Milhazes, a quem ainda hoje Ana Paula agradece o facto de a ter ajudado “a aproximar os dois extremos da Europa”. Desta vida de diplomata, três, quatro, cinco anos num país até à próxima nomeação, conta que tudo se faz de “coração aberto”, sem pensar muito para além desse horizonte temporal. “Mesmo em poucos anos, é possível criar algumas raízes, absorver muitas coisas e trazer outras na bagagem.” Contudo, quando um dia regressar, “há de saber bem”.
(Artigo publicado na edição 946 a 21 de abril de 2011)