A voz de Maria Barroso ecoou pelos claustros para se despedir. Ela, a mulher que durante 66 anos viveu ao lado de Mário Soares e que morreu ano e meio antes dele, ouvia-se ali na hora da despedida: “Quando eu morrer — e hei de morrer primeiro/ Do que tu — não deixes de fechar-me os olhos / Meu Amor. Continua a espelhar-te nos meus olhos / E ver-te-ás de corpo inteiro”, declamou.
Isabel Soares, a filha, não conteve mais as lágrimas. A voz da mãe lembrou-lhe “a vida e o amor que foi o deles”. E ao pai deixou aquela que foi, talvez, a mensagem mais emocionante destes dias de cerimónias fúnebres de Soares: “O Pai era, para o João e para mim, o nosso herói. Quando o Pai estava tudo parecia seguro e tranquilo”. Ela e João Soares terminaram os discursos deste dia com a mesma saudação: “adeus, querido pai”.
A morte de Mário Soares marca para muitos daqueles que foram falando ao longo destes dias “o fim de uma era”. O fim de um ciclo em que se lutou pela Liberdade, em que se lutou pela democracia, em que as recordações da ditadura fascista ainda estão frescas.
Foi para esses que o recordaram e que lembraram os momentos difíceis que atravessou para permitir que Portugal fosse livre e democrático que Soares foi um “herói”. Um homem de “coragem”, um “exemplo de génio político” – como disse António Costa – alguém que “tinha a visão dos grandes estadistas e a intuição dos grandes políticos” – como lembrou Ferro Rodrigues.
Centenas de entidades e personalidades da vida política de hoje e de outros tempos, nacionais e internacionais, se reuniram hoje nos claustros do Mosteiro dos Jerónimos para uma última homenagem a Mário Soares.
Com uma guarda de honra composta pelos três ramos das Forças Armadas e a bandeira portuguesa a cobrir-lhe o caixão, também a voz de Mário Soares ecoou pelas paredes. Arrepiante, presente, lembrando um dos momentos mais simbólicos da sua vida política e de Portugal, vivida também ali, naqueles claustros, a 12 de junho de 1985. Foi ali que prometeu “fidelidade” de Portugal às suas “raízes e tradições”, como “condição essencial para a construção do futuro”.
O Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa recordou Soares como “um homem que fez história sabendo que a fazia mesmo quando tantos de nós se recusaram a reconhecê-lo”.
E foi esse Soares, o Soares da História, o homem que travou a ditadura comunista – como muitos recordaram nestes dias -, que lutou pelos seus ideais, que não virou a cara às lutas e que com “teimosia” travou todas as batalhas em que acreditou, mesmo aquela campanha derradeira de 2006, em que perdeu as presidenciais para Cavaco Silva. Nem mesmo a discordância da filha Isabel Soares, que hoje revelou que o pai lhe pediu conselho, mesmo que depois “fizesse o que quisesse”.
Milhares de pessoas participaram nestes dois dias nas homenagens a Soares. Não houve “multidões” como pediu o Governo, mas a fila de pessoas que acorreram aos Jerónimos para o velório foi constante. Na Sala dos Azulejos, no velho Mosteiro, no local onde ficava o refeitório dos frades, a urna esteve em câmara ardente nos dois dias. No topo da sala, os filhos Isabel e João, receberam os cumprimentos de todos aqueles que quiseram homenagear Soares. Passaram por ali Edmundo Pedro, que “sempre esteve do mesmo lado” que o amigo, mas também Ramalho Eanes e Manuela Eanes, Jorge Sampaio e Maria José Ritta, Pedro Passos Coelho, Jerónimo de Sousa, Assunção Cristas, Catarina Martins, José Sócrates, António Sampaio da Nóvoa e tantos outros. Amigos de hoje, amigos de ontem. Homens e mulheres que estiveram ao seu lado, que estiveram contra ele, mas que nesta hora lhe reconheceram a grandeza.
E se ontem as ruas pareciam pouco mobilizadas à passagem da urna do antigo Presidente da República por Lisboa, hoje, quando se dirigiu dos Jerónimos para o Cemitério dos Prazeres, onde foi a sepultar, o cenário foi bem diferente. Pelas ruas ecoou novamente o slogan da campanha presidencial de 1986: “Soares é fixe”. No Largo do Rato, em frente à Assembleia da República e da Fundação Mário Soares, o cortejo fúnebre foi acompanhado de aplausos por centenas de populares. Ali, nas ruas, não houve réstia do “ódio” de que falou Ferro Rodrigues. Um azedume e palavra duras que foram proliferando pelas redes sociais nestes dias, mas a que o Presidente da Assembleia da República respondeu: “um país que se exprime fortemente nestes dias, e marginaliza os saudosistas do ódio”.
Cravos vermelhos, símbolo da Liberdade de Abril, e rosas amarelas, rosas bravas, as preferidas de Maria Barroso, foram sendo deixadas nos Jerónimos, atiradas nas ruas para a urna que passava em armão militar. Eram essas as flores na charrete. Eram também essas as flores que Isabel Soares e João Soares levavam ao peito durante todas as cerimónias.
Na capela, a frase “unir os portugueses, servir Portugal” – marcava o cenário da última morada. Ouviu-se mais uma vez a voz de Soares, num discurso de 1986: “Estive sempre com os que eram oprimidos e se sentiam excluídos do seu país. Em Lisboa, em S. Tomé, em Paris, na Fonte Luminosa. Lutei sempre para que os portugueses pudessem conviver em liberdade uns com os outros e para que todos se sentissem parte de Portugal. Para que nenhum deles se tornasse um cidadão de segunda classe por causa das suas ideias ou da sua pobreza.”
Chegava então o momento da derradeira despedida. A bandeira que cobriu a urna de Mário Soares durante toda a cerimónia era retirada e entregue aos filhos. Antes, já as insígnias do avô eram devolvidas aos netos Lilah e Jonas Soares.
“A única consolação que podemos ter, nesta hora de tristeza, é a de que, para homens como Mário Soares, a morte existe menos do que para os outros. Da lei da morte, como disse Camões, eles se libertam pelas obras valorosas da sua vida”, sublinhara António Costa, horas antes, num vídeo gravado a partir da Índia.
Agora, como disse Marcelo, é tempo de “mobilizar todos para que jamais Portugal seja remorso” e tempo de deixar um “obrigado, em nome de todo, mas de todo o Portugal, a Mário Soares”.