O que diria à ministra da Justiça se tivesse oportunidade de se sentar hoje à mesma mesa que ela?
Diria que a oportunidade de noticiar uma informação é, na maioria dos casos em política, mensagem. E que as notícias que têm vindo a sair do Ministério da Justiça sobre os advogados no período eleitoral pode ser entendida como uma ingerência na eleição para a Ordem dos Advogados, por um lado, e como a Srª Bastonária e este Conselho Geral nada têm feito, significativamente, pela advocacia portuguesa, poderá significar uma aposta em quem anda a reboque do Ministério da Justiça. Mas também lhe diria o que entendo de positivo sobre a sua ação e reconheceria a inteligência, capacidade política e cultura jurídica da Sr.ª Ministra que é, provavelmente, das pessoas mais capazes que este país poderia ter na pasta da Justiça. É profundamente conhecedora das questões da Justiça e, num tempo em que a Ordem dos Advogados não tem uma palavra a dizer acerca das questões prementes relativas não só ao exercício da profissão, como relativamente às matérias que relevam das garantias do Estado de Direito tem sido a senhora ministra quem tem tido a iniciativa de alterar medidas governativas anteriores, sem qualquer contributo da Ordem dos Advogados, Veja-se, por exemplo, o caso do chamado mapa judiciário. Isto não quer dizer que a Senhora Bastonária não continue a reclamar louros pelo trabalho da iniciativa e do labor exclusivo do Ministério da Justiça, o que me parece absolutamente reprovável.
E o que diria à ministra da justiça se quando se sentasse à mesma mesa que ela já fosse bastonário?
Diria que poderia contar institucionalmente comigo e com a Ordem dos Advogados para, de forma transparente, frontal, oportuna e crítica, apresentarmos a nossa opinião e pareceres fundamentados. E isto quer quando estivéssemos de acordo, quer quando estivéssemos contra. Tudo faríamos para demonstrar a importância da advocacia e dos advogados para a administração da justiça no Estado de Direito Democrático, e para a credibilização do sistema da justiça. Nessa mesma altura, apresentaríamos, desde logo, um conjunto de questões que entendemos urgentes, designadamente sobre:
– O processo de inventário, que deveria voltar aos tribunais, ou a uma instância jurisdicional com cultura para a decisão de litígios e não permanecer atribuída a entidades cujo propósito não é o de dirimir conflitos, mas de exarar convergências de vontade ou declarações unilaterais de vontade, com tudo o que isto acarreta de ilusória simplificação;
– O mapa judiciário, relativamente ao qual seria necessário alterar os critérios sobre a proximidade e especialização efetiva dos tribunais, os quais só se encontram constitucionalmente constituídos igualmente com a presença dos advogados;
– Apresentaria um projeto para a definição da identidade das profissões onde se incluiriam os atos próprios dos advogados;
– Proporia uma alteração do IRC no sentido de a advocacia portuguesa não carregar uma discriminação negativa que a impede de optar pelo regime geral em vez do regime, atualmente obrigatório, da transparência fiscal;
– Apresentaria uma proposta com vista à alteração do procedimento no âmbito da ação executiva, para permitir que os advogados tenham acesso aos bens suscetíveis de penhora, afastando os agentes de execução dessa fase inicial;
– No sistema de acesso ao direito e aos tribunais, apresentaria medidas no sentido de garantir a resposta do sistema judicial aos novos excluídos da justiça, que são todos os cidadãos entre os mais ricos e os mais pobres, através de redução substancial das custas judiciais,
– Proporia o aumento do valor dos honorários no âmbito do apoio judiciário, o pagamento oportuno através do orçamento geral do Estado com a criação de um Instituto para esse fim exclusivo;
– E proporia a participação do Ministério da Justiça num Fórum permanente que criaríamos para a discussão e consensualização sobre as reformas na justiça.
Que problemas pretende resolver na justiça?
O grande problema do nosso sistema de justiça reside na exclusão daqueles que, não preenchendo os critérios económicos para acederem ao regime de acesso ao direito, se veem, na prática, privados do sistema de justiça porque não têm meios para suportar as custas e os honorários dos advogados. Estou a falar não só da chamada classe média, que a crise económico-financeira de 2011-2013 praticamente erradicou, mas dos remediados. Das pessoas que trabalham para viver e pagar contas ao fim do mês. Este problema é, em meu entender, gravíssimo, porque significa que uma parte importante da população portuguesa está privada de aceder ao sistema de justiça.
Por outro lado temos uma profunda instabilidade legislativa, ao nível de setores que costumavam ser pautados pela tendencial estabilidade. Falo, concretamente, das leis relativas à organização judiciária. Passámos de um modelo misto, na justiça cível (geral e experimental) que passou, depois, para um modelo unitário, que contemplou todas as espécies processuais e que erradicou muitos tribunais sem justificação e ao arrepio daquele que tinha sido o sentido de reformas anteriores. Recuou-se, por exemplo, na especialização, quando penso que esse deveria ter sido o caminho, no sentido da prestação de uma melhor justiça.
O primeiro problema vai ser agravado com a aprovação da atual proposta de orçamento do Estado, que altera o regulamento das custas, eliminando a possibilidade de o juiz, atenta a especificidade e complexidade do processo e a conduta das partes, poder isentar ou reduzir o valor da taxa de remanescente, nas ações de valor superior a € 275.000,00. Esta possibilidade de ajustamento, por parte do Juiz, foi o que ainda foi salvando o regime do remanescente da taxa de justiça da inconstitucionalidade declarada pelo TC em 2013. E foram decisões anteriores a essa, em sede de fiscalização concreta, que permitiram a introdução da intervenção do juiz, nas alterações introduzidas no Regulamento das Custas Processuais em 2012. Essa intervenção do juiz na fixação do remanescente (que é devido, independentemente de quem obtiver ganho de causa) foi uma melhoria introduzida num sistema draconiano de taxas de justiça (que, de taxa, só têm o nome, porque são verdadeiros impostos) que, agora, é retirada.
Por outro lado, uma das principais preocupações do nosso mandato irá ser a revisão das tabelas, para que o advogado que presta a sua atividade no âmbito do apoio judiciário deixe de ser compensado e passe a ser efetivamente pago. O serviço que o advogado presta no âmbito do apoio judiciário tem a mesma dignidade e o mesmo grau de exigência de qualquer outro serviço. E o trabalho – é disso mesmo que se trata – tem de ser pago a tempo e horas. Por isso é que propomos a criação de um instituto público autónomo, com a participação do Ministério da Justiça e da Ordem dos Advogados, que permita que os pagamentos aos Colegas deixem de estar dependentes de circunstâncias aleatórias e subjetivas.
Portugal tem advogados a mais?
Tem, efetivamente. E dizer o contrário significa negar os factos. Todavia, entendo que não se deve condicionar a liberdade de quem o entender ser advogado, desde que o venha a ser por mérito e cumprindo os pressupostos legalmente exigíveis.
Reconhecendo a realidade, como primeiro passo, dever-se-á consagrar incompatibilidades com outras profissões, designadamente com os agentes de execução, criando um estatuto e uma associação profissional própria e autónoma destes profissionais; integrar um representante da Ordem dos Advogados na comissão de avaliação e acreditação dos cursos de Direito; alterar os cursos de estágio na Ordem dos Advogados no sentido profissionalizante; alargar a área de ação da advocacia, desde logo com a regulamentação das identidades de cada profissão jurídica e forense e extensão dos atos próprios dos advogados. Devem ser implementadas medidas sobre a formação ético-deontológica e medidas sobre os procedimentos disciplinares, de modo a que possamos ter não apenas a decisões céleres, ao mesmo tempo que devem ser cobrados emolumentos a quem participa contra os advogados de má-fé.
Alguma coisa melhorou na justiça com a reforma do mapa judiciário?
Não tenho dúvidas de que a intenção da atual Ministra da Justiça foi norteada pela preocupação de corrigir o modelo anterior. Mas continuo a pensar que é preciso fazer mais, sobretudo no que diz respeito à especialização dos magistrados. A competência em razão da matéria deve implicar mais do que a consagração de um tribunal competente em função do assunto de que trata o litígio. Deve comportar, igualmente, a garantia de que o magistrado que julga está dotado de competências diferenciadoras, no que diz respeito às matérias que é chamado a decidir.
Marinho e Pinto ou Elina Fraga?
Tenho uma boa relação com o Dr. Marinho e Pinto e nunca lhe escondi a minha discordância relativamente à forma como conduziu os seus dois mandatos. Refiro-me, concretamente, à generalização das críticas que fazia aos mais diversos intervenientes do sistema de justiça. Quando se aponta o dedo, devemos ser consequentes e assumir, integralmente, todas as implicações das nossas denúncias, levando-as até ao fim. Respondendo à sua questão: como bastonário, nenhum. Mas reconheço no Dr. Marinho e Pinto a defesa que fez relativa ao Estado de Direito que não identifico, infelizmente, na Dra. Elina Fraga.
A Ordem dos Advogados devia tomar posição ou constituir-se assistente em processos em que são suspeitos de corrupção advogados, juízes ou outros atores judiciários?
Qualquer cidadão pode constituir-se assistente quando estejam em causa crimes de corrupção. Trata-se de uma faculdade, não de um dever. A Ordem dos Advogados deve ponderar sempre a sua atuação em todos os domínios, incluindo neste, adotando critérios objetivos. Essa intervenção poderá justificar-se em função do caso que, em concreto, se perfile. A Ordem dos Advogados não pode adotar uma postura populista e demagoga em matérias desta sensibilidade.
Um advogado deve obrigatoriamente exercer em exclusividade?
Não, mas… Penso que há muita confusão e alguma demagogia na discussão que estes assuntos têm merecido no espaço público. Por um lado a advocacia é uma profissão liberal. Por outro, a advocacia, em nome dos princípios éticos e deontológicos que a caracterizam, regula os impedimentos, absolutos (incompatibilidades) e relativos, que diminuem o âmbito do exercício da profissão, impedindo o seu ou restringindo esse exercício “tendo em vista determinada relação com o cliente, com os assuntos ou por inconciliável disponibilidade da profissão”, impedindo a própria inscrição na Ordem dos Advogados em face de certas circunstâncias.
Nos últimos anos assistimos a investigações a ministros, a altos funcionários do Estado, procuradores, polícias e até a ex-primeiro-ministros. Perdeu-se o medo de investigar os poderosos?
Não acredito que um tal medo alguma vez tenha existido no Portugal democrático, porque isso seria uma negação absoluta do modelo de Estado e de sociedade que a Constituição de 1976 veio implementar. Penso que sucedeu algo único com a Constituição de 1976: a Constituição era mais democrática, mas plural e mais moderna que o país saído da Revolução. Não acredito na existência desse ou de qualquer outro medo que condicione a ação da Justiça. Mas sigo, apreensivo, a mediatização de algumas investigações.
Em alguma circunstância um advogado deve denunciar o seu cliente?
Quando foi transposta, para o ordenamento jurídico português, a terceira diretiva em matéria de branqueamento, foi criado um dever de abstenção do exercício do patrocínio e de denúncia por parte dos advogados, sempre que qualquer ato em que fossem chamados a representar interesses de terceiros indiciasse a prática desse crime, à exceção dos atos praticados no decurso de processos judiciais e dos atos de consultadoria jurídica. Foi, de resto, atribuída competência à Ordem dos Advogados para fiscalizar e sancionar a atuação dos advogados quanto a essa matéria. Não se ouviu, na altura (estamos a falar de 2008) uma palavra à Ordem dos Advogados acerca dessa limitação ao dever de patrocínio e do dever de segredo por parte dos advogados. Houve países comunitários que não adotaram tal solução. Ela veio a ocorrer, sem qualquer oposição da entidade que tinha por obrigação obviar à mesma. Note-se que o CCBE, que congrega todas as Ordens de Advogados da Europa, produziu um Parecer, em 2004, bastante crítico e que – estou em crer – travou a transposição desses deveres para os ordenamentos jurídicos da maior parte dos Estados comunitários.
Qual a sua opinião sobre a delação premiada?
A delação premiada está muito enraizada, por exemplo, no Brasil, onde há uma proliferação de textos legislativos que a consagram. No nosso país, esta figura não tem grande capacidade expansiva, desde logo, por razões de cultura jurídica e judiciária. O estatuto do arrependido está pensado para as situações em que é o agente do crime a cooperar com a investigação, situação que pode conduzir a um aligeiramento da pena. No modelo da delação premiada, aquilo que está em causa é apontar o dedo a outros, para com isso ter benefícios, que podem passar pela atenuação da pena (há outras benesses previstas no ordenamento jurídico brasileiro). No nosso ordenamento jurídico, a relevância probatória de declarações de coarguido (sobretudo quando incriminatórias de outro coarguido) costuma ser menor que a dos restantes meios de prova, exigindo os tribunais superiores que essas declarações tenham de ser “corroboradas” por outros meios de prova. Podemos com isto concluir que a nossa cultura judiciária encara com alguma reserva estas declarações, sendo que a lei não lhes atribui qualquer benesse que possa aliviar a responsabilidade de um arguido que aponta o dedo a outro. Vejo, por isso, com muita dificuldade a transposição de uma solução destas para o nosso país.
Por outro lado, um modelo processual que privilegia delatores terá muita dificuldade em afirmar a superioridade ética do Estado na administração da Justiça penal, ao mesmo tempo que duvido que se traduzisse na melhoria dos mecanismos de investigação.
Conhece alguém que tenha violado o segredo de justiça?
A violação do segredo de justiça não é apenas imputável aos mensageiros finais. Entre a fonte da fuga e o conhecimento dado a terceiros pode haver uma longa cadeia de pessoas. Infelizmente, todos conhecem a divulgação de dados sujeitos a segredo de Justiça. Mas, frequentemente, esquecemo-nos da cadeia que a propicia. E quando a informação chega o mensageiro já não tem rosto. Dito isto, não posso dizer que consiga pôr nomes a estes mensageiros ou às fontes da fuga.
Se pudesse fazer um Simplex, o que simplificaria?
Agregaria num único diploma, com regras simples e precisas, todas as normas relativas ao Sistema de Acesso ao Direito.
Regra geral, percebe tudo o que os juristas escrevem?
Sim, salvo algumas exceções. Mas confesso que cada vez tenho mais dificuldades a interpretar as leis. Quer pelo português empregue, quer pela proliferação e contradição de normas, quer, sobretudo – é preciso dizer isto com desassombro – pela degradação generalizada da qualidade da legislação.
E as cartas da Autoridade Tributária?
Essas têm muito pouca escrita para entender.
Com quem – e porquê – é que preferia ir almoçar: Francisca Van Dunem ou Paula Teixeira da Cruz?
Com as duas em simultâneo. Aí poria um sem número de questões. Teria muita coisa para lhes dizer e perguntar e penso que o que falta no nosso País é a capacidade de discutirmos abertamente as questões da justiça sem nos refugiarmos em defesas, imputações a terceiros ou retóricas políticas.
Imagine que tem como cliente um arguido acusado num megaprocesso do DCIAP. Pede a abertura da instrução ou salta para julgamento para evitar o juiz Carlos Alexandre?
Nunca deixaria de fazer o que fosse melhor para o cliente, sendo indiferente quem fosse o juiz do Tribunal de Instrução.
(Depoimento recolhido na véspera da primeira volta das eleições)