Três juízes do Tribunal da Relação de Lisboa decidiram manter a condenação de todos os arguidos num processo de tráfico de estupefacientes sem que os seus recursos tivessem sido analisados. É pelo menos esta a conclusão de dois advogados, tendo por base o lapso que descobriram quando receberam o segundo acórdão daquele tribunal superior: a decisão, que teve como juiz relator o desembargador Rui Rangel, copia, de forma exata, vários parágrafos de um primeiro acórdão sobre o caso, também assinado por Rui Rangel. Os advogados duvidam que se trate de um mero lapso informático e entendem que o copy paste prova algo mais grave: que os arguidos foram prejudicados, acabando condenados sem poderem exercer todos os seus direitos de defesa.
A história conta-se assim: a 8 de janeiro de 2015, Rui Rangel e outros dois juízes da Relação de Lisboa olharam para os recursos dos arguidos e decidiram que aquele não era o momento de analisarem as nulidades que invocavam: o processo iria descer novamente ao tribunal de 1ª instância, porque havia prova proibida, como os dados de tráfego e localização celular, que devia ser considerada nula. Por essa razão, “por ora”, e por uma questão de “lógica processual” e para “evitar a prática de atos inúteis”, o tribunal superior não iria analisar o resto dos recursos dos arguidos. Até aqui tudo bem, nada de anormal.
O problema chegou uns meses depois. O tribunal de 1ª instância reviu o caso, os recursos voltaram a subir ao Tribunal da Relação de Lisboa e a 21 de abril de 2016 os arguidos receberam a decisão: o tribunal superior decidiu que deviam mesmo ser condenados, com a mesma pena que havia sido decidida pelo tribunal de 1ª instância. A surpresa é que, quando olhavam para o acórdão, os advogados descobriram passagens que lhes eram familiares. O documento com a assinatura à cabeça de Rui Rangel repetia, ipsis verbis, alguns parágrafos do primeiro acórdão, como esta passagem: “Por ora, evitando a prática de atos inúteis, [o tribunal] não conhecerá do que falta conhecer no âmbito dos recursos dos arguidos.” Só que desta vez aqueles parágrafos não faziam sentido. Desta vez, o recurso não iria subir nem descer a outro tribunal. E desta vez, já não se podia voltar a mandar a 1ª instância reanalisar a prova que já tinha reanalisado. Logo, os juízes não podiam adiar uma decisão que tinha, obrigatoriamente, de ser tomada naquele momento.
Os advogados recusam olhar para o copy paste como um mero lapso informático. É que, depois de escreverem que “por ora” não iriam analisar os recursos dos arguidos, os juízes da Relação de Lisboa escreveram que não davam provimento aos recursos, mantendo a decisão de 1ª instância. Podia ser apenas um lapso. Mas no acórdão não consta, de facto, qualquer análise às partes dos recursos que não tinham sido analisadas da primeira vez. O que significa que para além de um lapso teria havido um esquecimento. Pode um juiz tomar uma decisão destas sem se debruçar, um a um, sobre todos os argumentos dos arguidos?
“Já não sabemos que dizer sobre decisões deste jaez. As vítimas são os utentes da justiça, somos nós todos. É um acórdão que não tem ponta por onde se lhe pegue. Temos sérias dúvidas se o nosso recurso foi lido (…) O que se segue no acórdão é de fazer arrepiar o bom senso processual”, reclama Carlos Melo Alves, advogado de dois arguidos neste processo, na reclamação que dirigiu a Rui Rangel, juiz relator dos dois acórdãos. “Às vezes os juízes fazem copy paste de uma frase aqui ou ali, às vezes há lapsos, mas este é inacreditável. Não vejo isto tanto como uma infração, entendo que tem mais a ver com o mérito e com a capacidade técnica de um juiz”, diz à VISÃO Carlos Melo Alves.
João Nabais, advogado de outro dos arguidos do processo, também já pediu a nulidade do acórdão, reclamando não perceber como o tribunal superior “transmite a ideia de que a decisão não é definitiva, através da utilização, por duas vezes, do advérbio de tempo ‘por ora’” quando aquele era “o único (e último) momento para conhecer todas e quaisquer questões apresentadas nos recursos dos arguidos”. Não é possível recorrer desta decisão para o Supremo Tribunal de Justiça, pelo que só Rui Rangel poderá alterar a sua decisão. João Nabais não termina a reclamação sem recorrer à ironia: “A absoluta coincidência do texto da decisão aqui em causa datada de 21 de abril de 2016, com a anteriormente proferida por este Tribunal da Relação de Lisboa, datada de 8 de janeiro de 2015, apenas se poderá tratar de um mero lapso, ou de um infeliz erro informático que determinou que este acórdão”, na parte que diz respeito ao seu cliente, “seja cópia exata, linha por linha, do acórdão anterior desta Relação, quando a realidade anterior era completamente diferente da atual.”
O juiz Rui Rangel – que se mantém em funções apesar de estar a ser investigado no processo conhecido como Rota do Atlântico, que tem como principal arguido José Veiga – é o primeiro responsável por ser o juiz relator do acórdão. Outros dois juízes da Relação de Lisboa concordaram com o teor e assinaram por baixo.
A VISÃO tentou contactar o juiz-desembargador Rui Rangel, mas não obteve respostas. Já o presidente daquele tribunal, Orlando Santos Nascimento, diz não poder prestar toda a informação “porque a mesma implica análise e formulação de juízo sobre o conteúdo do acórdão”, para as quais diz não dispor de competência: “No entanto, posso dizer-lhe que, a ser assim, como ‘suspeitam’ os Exmos Causídicos, a Lei Processual Penal dispõe de mecanismos para reagirem contra o acórdão.”
Esta não é a primeira vez que Rui Rangel é suspeito de fazer copy paste. Em 2015, o Público noticiou que no acórdão que acabou com o segredo de justiça no processo Marquês (que tem como principal arguido o ex-primeiro-ministro José Sócrates) quatro páginas eram quase iguais a uma decisão do juiz de 2010 e outros cinco parágrafos teriam sido retirados do texto científico de um professor universitário, mas sem qualquer recurso a aspas.