Nos dez anos da ASAE, fizemos o teste do algodão ao País: estarão os portugueses mais “limpinhos”? A VISÃO acompanhou operações em rulotes de farturas e em hotéis de cinco estrelas, em feiras de contrafação e em alto-mar, em pastelarias gourmet e bancas de bolinhos caseiros.
Estamos mais limpos, sem dúvida, mas, sobretudo, mais exigentes e com muita queda para a denúncia
A rapidez é a alma de qualquer inspeção. É chegar, mostrar o distintivo e entrar. Sem explicações.
Os inspetores da ASAE, entre abeirarem-se de um balcão de um restaurante ou da receção de um hotel e entrarem, não demoraram mais do que cinco minutos.
O modo de operar não difere muito das ações da PJ. Aliás, é com estes agentes que os inspetores da Autoridade de Segurança Alimentar e Económica mais se assemelham.
Tal como a PJ, têm porte de arma (fica ao critério de cada um se a deve levar consigo), não usam fardamento (apenas, em determinadas ocasiões, uns coletes pretos e bonés identificativos), também batizam as operações e expõem “decorativamente” o material apreendido, as operações preservam-se secretas até ao último momento (não querem correr riscos de fuga de informação) e andam sempre aos pares: “É mais seguro.” Houve uma vez em que uma inspetora foi fechada numa câmara frigorífica por um armazenista em pânico.
“Há muita adrenalina”, comentam. “Entrar num estabelecimento é sempre imprevisível, nunca se pode supor quem está por detrás da velhinha inofensiva que aparece à porta, há ocorrências inesperadas, pisar sem querer os tapetes de orações pode gerar conflitos.” É tensão que se sente, quando os inspetores entram de súbito nos ‘bastidores’ de um hotel de 5 estrelas, um dos mais afamados e sofisticados de Lisboa, premiado internacionalmente, que alberga ilustres com frequência. Na verdade, chegam por causa de uma reclamação de uma hóspede que encontrou baratas no quarto, mas não dizem ao que vão. E passam as entranhas daquele hotel a pente-fino. Mesmo a pente-fino. Várias horas, com vagar, para desespero da chefe de secção alimentar que, com o seu séquito de funcionários e chefs de cozinha, tenta esbater as sucessivas suspeitas e dúvidas dos inspetores da ASAE. Abrem todas as portas, espreitam os recantos, espiolham debaixo de armários e frigoríficos, fotografam, questionam… a que temperatura conservam a sopa, se o sumo do jarro é natural ou de pacote (era de pacote…), com que frequência renovam o gelo, se está funcional o pedal do caixote do lixo, se está ativado o sistema de controlo de pragas. “Não estou a fazer nada contra a lei, pois não?”, pergunta ansiosa a responsável. Os inspetores mantém-se imperturbáveis. Não parecem muito sensíveis à ansiedade nem à pressão que a legião de funcionários tentam exercer. Eles que estão habituados a entrar em restaurantes e deparar com empregados a fugirem com caixotes de alimentos estragados pelo pátio das traseiras, não se hão de atemorizar neste hotel onde tudo parece estar “nos conformes”. Só que há sempre um pormenor, um reparo, qualquer coisa que não deve acontecer, muito menos num hotel de 5 estrelas. Agora querem saber onde está exposta a lista dos alergénicos (uma nova lei comunitária exige que esteja presente no menu ou em local consultável toda a composição dos alimentos servidos para precaver alergias e incompatibilidades). A inspetora encolhe os ombros aos sinais de exasperação: “Se eu chegasse aqui e visse que o chão da cozinha estava molhado e tinha acabado de ser lavado à pressa era muito mau sinal.”
Intolerância à sujidade
Procuram tratar com o mesmo brio o grande hotel ou o café da esquina, a grande superfície ou a mercearia de bairro, a tasca dos produtos artesanais ou uma pastelaria gourmet, muito conceituada, num bairro fino da capital, mas que suscita um número elevadíssimo de queixas no livro de reclamações inspeção esta que a VISÃO também acompanhou. A ASAE não tem mãos a medir. As denúncias chegam a uma velocidade de 800 por dia.
Os portugueses queixam-se muito, desde há dez anos tomaram-lhe o gosto. Os que ridicularizam e se insurgem contra “o excesso de zelo”, porque estão a acabar, dizem, com a tradições gastronómicas, são os mesmos que pedem o livro de reclamações, fazem queixas, telefonemas, mandam mails. “Apareceram os profissionais das queixas, fazem-no por tudo e por nada, alguns até já os conhecemos.” “São”, riem-se, “uns senhores muito assíduos.” Às vezes, são pessoas sós, é a necessidade de desabafar, devia haver mais em Portugal, mencionam, a “cultura do elogio”. Mas não. Vigora a da denúncia.
Ainda há pouco uma senhora se queixou repetidamente e com muita insistência de um hotel no Algarve por encontrar uma melga no quarto e até contabilizava as picadas nos filhos. Ou então um sem-abrigo que reclamava da má qualidade da comida oferecida por uma instituição de caridade.
“É natural que as pessoas reclamem mais [numa década, as denúncias aumentaram de cerca de 7 mil por ano para mais 20 mil, e as queixas no livro de reclamações subiram de 40 mil para 131 mil), as pessoas estão muito mais sensíveis aos seus direitos”, comenta a inspetora-chefe Ana Moura. “E a questão ‘sujidade’ impera, as pessoas já não toleram a falta de higiene.” Os inspetores vão a todo o lado; se os reclusos reclamam da cantina, entram nas prisões, se há queixas de bebidas adulteradas em bares de alterne, vão até lá, se há suspeitas de irregularidades na pesca, embarcam numa operação que terminou, ainda este mês (Operação Mar Alto), a bordo de oito navios-fábrica, entre as 11 e as 260 milhas, que envolveu 21 inspetores, e ainda veterinários da ASAE, que detetaram caixas de meixão, uma espécie de enguia-bebé, com comercialização interdita, considerada iguaria no mercado asiático, vendida a 500 euros o quilo, e ainda tubarões, desmembrados das barbatanas para os fazerem passar por outro peixe.
Mas no que toca a queixas, têm de filtrar as denúncias, separar muito bem o trigo do joio: o empregado despedido que se queixa do estabelecimento onde trabalhou, zangas de vizinhos, vinganças de restaurantes concorrentes: “A ASAE não pode ser instrumentalizada.” José Manuel Esteves, diretor-geral da AHRESP, associação que representa 25 mil dos cerca de 80 mil restaurantes e hotéis do País, compreende esta “tensão” de se ser alvo de fiscalização. As coimas são “exorbitantes e incomportáveis”: 30 mil euros se não tiverem visível o dístico de proibição de venda de tabaco a menores; 15 mil euros se não facultarem imediatamente o livro de reclamações… Nesta “convivência” de 10 anos, José Manuel Esteves refere um começo “muito doloroso”. Os inspetores apresentavam–se de forma ostensiva, de cara encoberta, afugentavam a clientela…. Recorda o show off televisivo, empresários a serem filmados algemados à saída dos estabelecimentos, os caprichos e a discricionariedade dos agentes que se assumiam como “uma polícia criminal repressiva”.
Mas, ao fim de uns anos, tudo mudou, agora os donos de restaurantes encaram a ASAE enquanto “interlocutor”, chamam–lhes “dialogante”, falam de “uma relação excelente de cooperação institucional, de ação preventiva e formativa”. E ainda os ajudam na “concorrência desleal”: “A ASAE esforça-se por localizar esses estabelecimentos clandestinos.”
O fim do ‘fascismo alimentar’
O inspetor-geral Pedro Portugal (que, a par dos dez anos da ASAE em novembro, completa dois anos à frente da Autoridade) confirma que é realmente assim.
Correu o rótulo de “fascismo alimentar”, criaram-se 44 mitos e boatos para ridicularizar e desestabilizar, mas são águas passadas. Depois de uma fase inicial de endurecimento da instituição, porque ela necessitava de se impor, apostam na prevenção, nas ações formativas e investem agora muito mais na produção do que no retalho. “Entrámos na fase adulta da instituição, colocámo-la no mapa, agora não precisamos de holofotes e alaridos, não queremos ser agitadores, mas tranquilizadores.” E a prova de que esta década de funcionamento da ASAE valeu a pena, e de que houve uma “alteração de hábitos, uma mudança comportamental e no nível de exigência dos portugueses, é que a taxa de incumprimento se reduziu drasticamente: de 38% em 2006 para menos de 18% agora”. “Em termos de qualidade e higiene, temos padrões de oferta superiores a certos países europeus. Evoluímos muito”, afirma. A ASAE tem laboratórios ultraespecializados que lhes permitem detetar a carne de cavalo na lasanha, ou o peixe-caracol no bacalhau com natas, perca no arroz de cherne, potas em vez das lulas ou a dourada de mar alto que, afinal, é de aquicultura, mas também de investigar molecularmente a genuinidade “das nossas produções de referência no mercado internacional: o vinho e o azeite”.
O inspetor-geral também se orgulha das doações; ainda o mês passado, 10 toneladas de tenra carne dos Açores, cuja cadeia de frio foi interrompida devido a um acidente, foram entregues aos felinos do Jardim Zoológico de Lisboa; quase 69 mil euros em vestuário falsificado, mas por estrear, entregue, só em 2015, a instituições de cariz social por todo o País.
Também se orgulha das apreensões feitas no campo da contrafação durante o seu mandato: a operação Mala Dourada (140 mil euros), Operação Portoluxe (6 milhões de euros), Operação Globo (800 mil euros) esta última valeu–lhes uma menção de reconhecimento, com direito a placa e tudo, por parte de uma marca sueca: rolamentos contrafeitos que punham em risco a segurança de máquinas nas indústrias, elevadores e até transportes, em Portugal e Espanha.
Foram apreendidos 6677 rolamentos que vinham em embalagens que continham ironicamente a inscrição: “This package is protected against counterfeiting”…
Está muito sofisticado o mercado paralelo, e surgem novos problemas em vendas pela internet. Não são só as habituais malas Louis Vitton, dez euros por artigos que valem 200, agora falsifica-se todo o tipo de gadgets, até cigarros eletrónicos que podem prejudicar a saúde. “Para isto é que os consumidores portugueses não estão sensibilizados”, lamenta Paulo Portugal. “A indústria ilegal põe em causa postos de trabalho e pode ocultar financiamento terrorista.” Numa operação para confiscar produtos de contrafação, todos os passos são estudados com muita cautela. Nem os cerca de 20 inspetores convocados sabem onde vão atuar naquela manhã. Temem–se conflitos, preveem-se detenções, a GNR é chamada numa ação concertada.
Há informadores no terreno (uma feira regional numa cidade do interior alentejano), muitos briefings, estudo de mapas, antes de avançarem. Qualquer coisa não está a correr como o previsto. Os feirantes mantém os produtos dentro das carrinhas.
A inspetora-chefe, que coordena a operação, improvisa um plano alternativo. Em vez de aparecerem de rompante, vão vestidos de coletes, dar o máximo possível nas vistas, a simular um controlo de rotina das bancas de enchidos, queijos, farturas e bolinhos. A GNR fica a cercar a vila, em pontos rodoviários estratégicos, a detetar fugas súbitas da feira. “Vamos testar o sangue frio do cigano”, sintetiza um militar.
A operação ainda não foi batizada, continua, debaixo do maior sigilo, em próxima oportunidade. Foram anotadas matrículas, uma morada, manobras suspeitas de carrinhas.
Nenhuma apreensão. Os “ciganos”, desta vez, passaram no teste.