Em fevereiro, a professora Isabelle Oliveira quis dar um presente aos portugueses. Anunciou nos meios de comunicação social – em Portugal – que era vice-reitora da Universidade da Sorbonne, em Paris, especificando que fora eleita para esta função. Aos 38 anos, deu a saber que já era professora catedrática. E recordou o que dizia em entrevistas anteriores em Portugal – desde 2012 -, que tinha sido até então diretora da Faculdade de Línguas Estrangeiras Aplicadas (LEA), na Sorbonne.
O papel de embrulho era muito bonito. O conteúdo nem tanto. Isabelle Oliveira não é vice-reitora da Sorbonne. Não é professora catedrática. E não foi, nem é, diretora da Faculdade de LEA na Sorbonne, porque LEA é um mero departamento dentro da Faculdade de Línguas, Literaturas, Civilizações e Sociedades Estrangeiras – LLCSE. E é esse departamento que a docente dirige, desde 2011, na Universidade de Sorbonne Nouvelle Paris3. Entidade esta que, no imaginário coletivo dos leigos, seja injusto ou não, não é o mesmo que aquela Sorbonne com o peso mítico de oito séculos em que pensamos com uma pontinha de veneração quando, cá fora, se ouve esse nome. Quanto mais não seja por só ter 45 anos de história. Mas aqui entramos no terreno escorregadio das interpretações e das reformas de ensino, que só veremos mais adiante.
História de um ‘rendez-vous’
Vamos, então, por partes. Quando um analista como Marcelo Rebelo de Sousa citou Isabelle Oliveira na televisão como um exemplo, ficou patente o entusiasmo que o percurso da docente franco-portuguesa estava a suscitar no País de onde saíra ainda menina, com os pais, rumo a França. As redes sociais confirmavam o sucesso. O comissário europeu Carlos Moedas quis tê-la à sua mesa, em Bruxelas, para um almoço no âmbito do Dia da Mulher. A VISÃO queria um perfil.
Pedimos uma entrevista e fomos pesquisar à internet. Não era possível confirmar as informações que Isabelle Oliveira fornecera ao semanário Expresso (a 21 de fevereiro) e à edição online do Acção Socialista, órgão oficial do PS (a 4 de março). O seu nome não aparecia em nenhuma vice-reitoria no site da Universidade Sorbonne Nouvelle Paris 3. Sublinhe-se desde já que o equivalente de “reitor”, em França, é “presidente” de universidade, e “vice-reitor” é, portanto, “vice-presidente”.
Entretanto, o pedido de entrevista começava a assumir aspetos surpreendentes. Respondeu uma senhora, Custódia Domingues, que se apresentou a fazer a assessoria de imprensa de Isabelle Oliveira, inquirindo conteúdos e falando de datas. Houve vários telefonemas com ela, fez-se um encontro, onde foi muitas vezes repetido o aviso de que haveria um processo jurídico “contra quem sujasse o nome” de Isabelle Oliveira (que depois qualificou estas intervenções de “ajuda cordial”), foi enviada por email a lista de perguntas da VISÃO – nesta fase já reduzida a dúvidas por esclarecer – e, finalmente, veio a resposta: entrevista para segunda-feira, 16 de março, às 10h45, na Sorbonne Nouvelle – “Uma das minhas secretárias a acompanhará até ao meu gabinete particular.”
No entanto, nessa mesma manhã, às 9h32, chega um SMS, simpatiquíssimo: “Acabei de receber um telefonema para me deslocar a Matignon [sede oficial do primeiro-ministro francês] com o meu adjunto, os tais contratempos (…)” O nosso encontro passa para as 14 horas. E aí, surpresa: Isabelle Oliveira aparece acompanhada de dois professores do seu departamento. Ambos vão assistir à entrevista, que durará duas horas, os dois vão participar nela e, às vezes, responder por Isabelle Oliveira.
Reitor nega nomeação
Primeira questão: é vice-reitora? Impossível de obter um sim ou não. A entrevistada, tensa, quer ler uns papéis, mas é Loïc Depecker que acaba por responder: “O reitor eleito pode escolher o número de vice-reitores. A vice-reitoria de Isabelle Oliveira está em curso.” Com que tutela? Isabelle Oliveira e Loïc Depecker ao mesmo tempo: “Isso é segredo da universidade”. Mas anunciou na imprensa portuguesa que já é vice-reitora, eleita. “É incrível!” zanga-se Isabelle Oliveira, “fui eleita pela lista”. “Estava na lista de apoios a Carle Bonnafous-Murat [o reitor eleito]”, explica. “Pela lista das eleições em dezembro”, conclui Loïc Depecker.
“É falso”, desmentirá o gabinete da reitoria da Sorbonne Nouvelle. Isabelle Oliveira não foi eleita vice-reitora, nem foi nomeada para nenhuma das vice-reitorias que dependem do poder discricionário do reitor, assegura o gabinete da reitoria à VISÃO. Também “não há nenhuma vice-reitoria em curso”. As duas últimas nomeações, recentes, vão ser acrescentadas no site da instituição e nenhuma é relativa à docente nascida no Minho, segundo o mesmo gabinete. Em contrapartida, há uma reforma complexa, relativa à reformulação da “acreditação dos diplomas” que deverá ainda ser levada a cabo em Paris 3, sem data definida, e Isabelle Oliveira teria mostrado um interesse explícito por uma missão específica dentro dessa reforma – missão essa que poderá ter, ou não, o título de vice-reitoria. O tempo o dirá.
Pormenores polémicos de um currículo pouco transparente
- Confusão com o nome Sorbonne – A Sorbonne Nouvelle Paris 3 foi criada em 1970, virada para o futuro, numa reforma do ensino superior que repartiu a Sorbonne centenária em várias universidades. “A Universidade Paris-Sorbonne foi criada em 1257 por Robert de Sorbon (…) Em 1970, com a reforma Edgar Faure, ela torna-se a Universidade Paris IV Paris-Sorbonne” lia-se na ficha de apresentação da história da instituição, em 2010. Os docentes dos dois estabelecimentos, por norma, explicam de forma clara a qual pertencem.
- Professora catedrática – Isabelle Oliveira apresentou provas de “Habilitação a dirigir investigações” (HDR) em novembro de 2014, na Sorbonne Nouvelle. A HDR é o diploma mais equivalente à Agregação em Portugal: atesta da qualidade do currículo do “Habilité” e da sua aptidão a dirigir e realizar trabalhos de investigação. Como sublinha a própria Isabelle Oliveira, é “o diploma mais elevado do sistema universitário francês”, criado em 1984. “Portanto”, conclui, “é professor catedrático em Portugal”. Mas a docente confunde diplomas e postos académicos. O topo da carreira docente em Portugal corresponde ao título de professor catedrático. Em França é “Professeur des Universités”, a que é possível concorrer (caso haja vagas) depois de um derradeiro filtro, inexistente em Portugal: a qualificação no Conseil National des Universités (CNU). O título a que Isabelle Oliveira tem direito, por ora (tendo obtido a qualificação na secção 7 do CNU – Ciências da Linguagem), é de “Maître de Conférences avec HDR”, que seria equivalente a Professor Associado com Agregação.
- Investigadora no CNRS – Isabelle Oliveira afirma colaborar atualmente num laboratório deste prestigiado centro científico, o L2C2, estar a preparar uma versão em português do “Atlas Sémantique” e desenvolver um software de deteção de metáforas para as línguas portuguesa e francesa. Um assessor de imprensa do CNRS (Centro Nacional de Investigação Científica) na região de Lyon confirmou à VISÃO que Isabelle Oliveira esteve inscrita numa pós-graduação no laboratório L2C2, mas acrescenta: “Segundo informações que obtive da diretora de L2C2, Isabelle Oliveira já não colabora com L2C2, tanto quanto ela sabe.”
- Mestrado de Direito em Coimbra – Obtido supostamente em 2009 com a menção “Direito Internacional e Europeu”, segundo o CV oficial de Isabelle Oliveira, no site de Paris 3. A Universidade de Coimbra informa que “não possui o Mestrado em Direito Internacional e Europeu e mais informa que não foi encontrado registo da frequência de Isabelle Oliveira na Universidade de Coimbra”. A docente assegura porém que nunca viu o seu CV no site de Paris 3 e que não sabe quem o lá colocou. E considera que Direito é um hobby seu.
- Diretora dA Faculdade DE Línguas Estrangeiras Aplicadas (LEA) – É um departamento da UFR (Unidade de Formação e Investigação) LLCSE, em Paris 3. A professora argumenta que tem responsabilidades muito vastas e que LEA (Línguas Estrangeiras Aplicadas) já foi uma faculdade (antes da sua chegada a Paris 3,?em 2008) : “Bem, não somos uma UFR. Por razões de política interna deram-nos o título de departamento, mas vamos voltar a ser UFR. Mas isso é secreto. É uma questão de política interna.”
- Erasmus e Mestrado na Universidade Nova de Lisboa – Segundo o mesmo CV, que a professora alega nunca ter visto, obteve o Mestrado em Linguística a 21 de setembro de 1999, no âmbito do programa Erasmus na Universidade Nova de Lisboa, com a dissertação: “A metáfora na linguagem médica: as interações entre paciente e médico”, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. Na entrevista, esclarece que fez um ano de licenciatura Erasmus na Universidade Nova de Lisboa: “Depois quis ficar para o mestrado, mas a cavalo (à cheval) com a França. Estava lá, fazendo investigação, mas ao mesmo tempo aqui também para efetuar as mesmas investigações.” No âmbito de um convénio entre as duas universidades?, perguntamos: “Exatamente.”
O ‘hobby’ de estudar em Coimbra
Explicações de Isabelle Oliveira sobre a sua passagem pela Cidade dos Estudantes, da qual não existe registo na mais antiga universidade portuguesa
> Então o Curso em Coimbra: qual foi?
Estive inscrita em Coimbra.
> Em que curso?
Frequentei o ensino, tenho excelentes colegas em Coimbra, com quem pude… frequentei efetivamente tudo isso.
> O quê?
Não fiz o estágio.
> Estágio de quê, Sr.ª Prof.ª Dr.ª?
Depois, há um estágio profissional.
> Depois de quê, Sr.ª Prof.ª Dr.ª?
Do diploma.
> E é essa a pergunta: que diploma tirou em Coimbra?
Já lhe disse que estive inscrita, que frequentei a licenciatura.
> Em 2008?
Não me lembro do ano, só ia lá para fazer os exames.
> Ah! Fez o ensino à distância, em Direito, em Coimbra?
Não havia ensino à distância. Estudei, comprei os livros, desembaracei-me… pedi efetivamente as sebentas… mas para mim, portanto, é um hobby. Gostei sempre de Direito.
> É um hobby, mas com que diploma? Porque disse que, depois do diploma, não fez estágio…
Não fiz o estágio.
> Mas então de que diploma se trata?
Não fiz estágio e, repito, é um hobby, para mim, o Direito. Vou dar-lhe… eu disse-o, também… na…
> Mas qual é o diploma?
Eu disse-o, nessa entrevista [ao Expresso] que é um hobby! Portanto, o que disse também nessa entrevista, é a minha formação em França. Tenho uma formação francesa. Fui clara nesse ponto. É a minha formação em França. O resto, para mim…
> E um diploma em Portugal?
Não. É a minha formação em França. O resto, em Portugal, é um hobby.