Há dez anos, Ursula Colmenares não entraria no restaurante La Terraza, na noctívaga zona das Mercedes, em Caracas. Provavelmente, nem sequer teria salário para tal. Se, mesmo assim, arriscasse, a clientela da steak house, frequentada pela classe média alta venezuelana, desataria, como de costume, a bater pratos, protestando pela presença da ferrenha chavista numa das mesas.
Os tempos mudaram, entretanto. O restaurante foi vendido por quantia choruda a um empresário da nova burguesia bolivariana, os preços subiram e, agora, até o chefe de mesa se abeira dos clientes com um pin de Hugo Chávez na lapela. A ementa, essa, resistiu aos apetites políticos: o bacalhau à Frank Sinatra e a punta trasera continuam a fazer salivar os comensais, sem olhar a ideologias.
Mas “a Venezuela mudou. O povo conhece os seus direitos e quer ser tratado com dignidade em qualquer lado”, diz a magistrada Ursula, mulata, Blackberry de último grito pousado na mesa e copo de cerveja na mão. Nesta noite, o restaurante contorna a lei seca imposta pelo Governo e ela esquece os deveres. O La Terraza quer-se território livre de proibições, enquanto os plasmas transmitem excertos de discursos de Chávez e reposições de entrevistas do seu sucessor. “Temos gente, temos doutrina, temos futuro”, despede-se Ursula, animada, de mão dada com o companheiro.
Os avatares de Maduro
Como se previa, Nicolás Maduro vai agora ocupar o lugar que, durante 14 anos, pertenceu a Hugo Chávez, derrotando Capriles Radonski, candidato da oposição, na qual se reúne a direita radical, a classe média devota de Miami e a burguesia moderada.
Mas conduzir a Venezuela não é mesma coisa do que ser motorista de autocarros da Metrobus de Caracas. Além do caminho estreito que espera Maduro, o seu currículo ao volante não augura nada de bom: segundo relatos de ex-companheiros, o recorde de acidentes com autocarros na capital pertence ainda ao antigo chofer, agora político.
Maduro, 50 anos, não tem sequer o verbo e o magnetismo do falecido Comandante.
Mas o seu bigode, ao contrário dos fastidiosos discursos, já foi adotado pelos chavistas.
“Os bigodes não são casuais, são fruto de uma maturidade inevitável [da revolução]” ilustrou, humorada, Carola Chávez, escritora aficionada do PSUV, o partido que une as tendências, movimentos e partidos pró-bolivarianos.
À falta de carisma e talento na prédica às massas, o retrato de Maduro é colorido por particularidades pop. Recordado pelo diário Últimas Notícias como um jovem rebelde “que não levava nada a sério e nunca chegava a horas”, ele foi guitarrista da banda rock Enigma e teve John Lennon e Mick Jagger entre as suas referências. Qual Santana crioulo, usava cabeleira afro e adorava passear pelas avenidas de Caracas no Ford Fairlane de 1957, do pai. Também foi guarda-costas, pitch de basebol e olhado de soslaio pelos socialistas dogmáticos daqueles anos oitenta. Não admira: além do comportamento roqueiro, o rapaz simpatizava com a Ação Democrática, partido social-democrata de fortes tradições, que o pai ajudou a fundar. A aproximação à esquerda revolucionária deu-se através de Cilia Flores, atual mulher, ex-procuradora-geral da República.
Apaixonaram-se quando a advogada defendia militares presos, entre os quais Chávez, detido após o fracasso do golpe de Estado contra o Presidente Andrés Pérez, em 1992.
O currículo político de Maduro é outra música. De sindicalista a ministro dos Negócios Estrangeiros, ocupou cargos de destaque no movimento bolivariano e no Governo, até chegar à vice-presidência. Fez amigos no estrangeiro e tem fama de bom negociador. Em relatórios confidenciais da inteligência norte-americana divulgados pelo Wikileaks, foi considerado o homem de mão dos russos e chineses, mas aberto e pragmático para manter pontes com a Presidência de Obama.
Paulo Portas, ministro português dos Negócios Estrangeiros, conhece-lhe o perfil.
O relacionamento entre ambos vai além da cordialidade e do respeito, tendo a sintonia propiciado bons negócios a Portugal. Do ponto vista espiritual, também se intuem paralelismos. Em 2002, Portas disse que só a intervenção da Virgem de Fátima salvou Portugal da maré negra do Prestige. Há dias, Maduro garantiu ter sido visitado pelo espírito de Chávez em forma de passarinho.
Nicolás é, de resto, um seguidor do controverso guru indiano Sai Baba, falecido há dois anos. Nesta afeição que inclui passepartouts e medalhas com as imagens do “santo” da “religião do amor”, Maduro está acompanhado pela atriz Goldie Hawn, pela duquesa de York, Sarah Ferguson, e pelo fundador do Hard Rock Cafe, Isaac Trigett. O provável sucessor de Chávez na liderança do país nunca vacilou na veneração, nem quando se multiplicaram acusações de envolvimento do líder religioso indiano em abusos sexuais e suspeitas de acumulação de uma fortuna colossal, nada espiritual. No fundo, Maduro adotou para a vida dois avatares, aos quais tributa uma devoção cega: Chávez e Sai Baba, cuja proteção reclama.
Depois do Robin dos Bosques
Maduro vai, porém, precisar de algo mais tangível para manter a Venezuela imune às oscilações do preço do petróleo, à dívida externa e às debilidades da economia, cujos transtornos se fazem sentir na rua.
Num mercal improvisado da Candelária, várias pessoas não disfarçam a ansiedade enquanto aguardam a sua vez para comprar os produtos básicos de baixo custo, subsidiados e distribuídos pelo Governo, através da rede de mercados sociais. Na manhã desta reportagem, há azeite, arroz, frango congelado, farinha de milho e outros alimentos duas e três vezes mais baratos do que num vulgar supermercado, mas é frequente faltar açúcar e leite em pó. No mercal, não se fazem exclusões: uma mãe do bairro popular 23 de janeiro, com um bebé ao colo e uma criança pela mão, tem tanto direito a estar na fila como um jovem loiro, com ar de empresário de sucesso, vestido com roupa de marca.
O pior vem depois: “Na tabela, as lentilhas marcam dois bolívares e tu queres cobrar-me cinco?!”, protesta um homem. Angel Hernandez, que está ali para impor a ordem, tenta acalmar os ânimos. “As pessoas têm os produtos baratos, mas queixam-se sempre. Não dão valor ao que Chávez fez por elas”, desabafa. Ao lado, uma mulher também se irritava. “Não me estás a obrigar a pagar o saco de plástico, pois não?”, reagira, indignada.
Minutos depois, regressaria a calma.
Capriles fala de 400 mil famílias que ainda se deitam sem comer, mas, segundo o último relatório de Desenvolvimento Humano da ONU, a Venezuela está entre os 47 países que registaram melhorias apreciáveis, nos últimos anos, tendo retirado milhões de pessoas da pobreza extrema. “Houve progresso material, político e espiritual.
Mas seria um erro grave agirmos como se fôssemos um partido perfeito, onde não há corruptos, onde não existem oportunistas e tipos que se dizem mais chavistas do que Chávez”, afirma Reinaldo Iturriza, diretor de informação e assessor, nos ministérios da Comunicação, do Trabalho e da Segurança Social. “Não podemos generalizar, mas temos de perceber o que vai gerando críticas. As pessoas não são tontas e merecem ver a sua opinião refletida”, defende, enquanto toma um café, na feira do livro de Caracas.
Os camaleões portugueses
A tensão em vésperas de eleições era indisfarçável. Maduro até ameaçou lançar uma maldição ancestral sobre quem não votasse nele, apesar de dizer que Chávez lhe apareceu, com asas, para abençoá-lo. Não esqueçamos: este é um dos países onde há cultos para todos os gostos, retórica apimentada e insegurança ao rubro. Foi esse, de resto, o tema que Maduro quis atacar, nos primeiros comícios, prometendo ir bairro a bairro desarmar os grupos organizados em nome “do povo decente”.
Maduro pretende converter-se no primeiro Presidente “a salvar a Venezuela da criminalidade e da violência”.
Petare é bom sítio para começar: são 500 bairros, mais de milhão e meio de pessoas num município só. É considerado o aglomerado urbano mais violento da América do Sul. Onde o dinheiro “nunca dorme”, onde o assassino é “condecorado” e “o sangue cai como chuva”, canta o rapper venezuelano El Prieto. O português Humberto Sousa, 35 anos, engenheiro civil, vive na área calma de Petare, mas desloca-se diariamente à zona mais “quente”, onde gere a padaria da família. “Vou instalar câmaras de segurança internas”, desabafa, enquanto considera “muito bom” ter sido assaltado “apenas umas quatro ou cinco vezes”.
Nos bairros de Petare, os polícias passam de jipe, com o braço pendurado à janela, de pistola na mão. Há gente que leva a arma atrás das costas, como nos filmes. Ali paga-se à polícia para proteger os negócios e aos criminosos para evitar assaltos. “Nós, portugueses, somos camaleões. Alguns dos nossos adaptam-se tão bem que até chegam a chefes da máfia”, ironiza Humberto.
De um lado da estrada que segue para o centro de Caracas, temos Petare das casas humildes, ruas sinuosas de esgotos a céu aberto. Do outro lado, temos Petare das universidades privadas, apartamentos de luxo e hotéis de statu. “Chávez foi o Robin dos Bosques da Venezuela. Há muito ainda por fazer, mas até em Petare as coisas mudaram: chegou à zona pobre a saúde, a educação e até o teleférico”, reconhece.