Em 1995, e depois de vários recursos, já não havia margem para dúvidas no tribunal australiano que julgava o assassinato de Colin Winchester, comissário da Polícia Federal: David Eastman, então com 50 anos, era seguramente o responsável por aquela morte e merecedor da pena de prisão perpétua. Só que agora, 24 anos depois, confirma-se a decisão superior em sentido absolutamente contrário. Afinal, Eastman sofreu um julgamento injusto e não é culpado daquele assassinato – que permanece sem solução. Vai para casa com quase 4,5 milhões de euros.
Além disso, em audiências anteriores, o Supremo Tribunal da Austrália ouviu a defesa de Eastman salientar que ele perdera a oportunidade de ter uma família e uma carreira por causa daquela decisão. Para o compensar, começou por lhe oferecer qualquer coisa como cerca de 3,5 milhões de euros, que Eastman, hoje com 74 anos, rejeitou. “Estamos a falar de uma pessoa que perdeu parte significante da sua vida”, acentuou o seu advogado, Sam Tierney, citado pela BBC, na sessão que decorreu esta segunda-feira de manhã, na porta do Supremo.
A figura (muito) pouco querida da opinião pública
À época, a morte violenta de Winchester abalou todo o sistema jurídico e político do país, desencadeando uma das maiores investigações criminais de sempre. Além disso, David Eastman era uma figura conhecida do grande público, mas pouco apreciada por uma grande maioria. Talvez soe a eufemismo, já que a expressão usada pelo australiano The Monthly para o definir é mesmo “muito irritante”. Durante as décadas de 1970 e 1980, muitas pessoas na capital no país recebiam regularmente reclamações, sugestões, ameaças e manobras ocultas de Eastman, um antigo líder associativo da Secundária da capital, Canberra, que era filho de embaixador e até entrara na Universidade aos 16 anos. Era já considerado um prodígio nas questões do Tesouro quando – tinha apenas 21 anos – começou a ser seguido por um psiquiatra: “sentia-se só e extremamente infeliz, porque não conseguia relacionar-se com os outros”, conta a sua página da Wikipedia.
Ainda assim era uma figura frequente nas palestras públicas da universidade e não se continha a interromper, e aborrecer, os palestrantes, discutindo vigorosamente questões sobre economia. E quando o argumento não funcionava, não se ensaiava nada em recorrer à força – aliás, o seu soco num apresentador de uma dessas conferências ganhou quase fama de lenda na universidade. Depois, basicamente perseguiu os responsáveis que lhe recusaram o acesso à biblioteca parlamentar e teve de ser escoltado para fora da biblioteca de Direito por se pôr aos gritos quando não lhe foi permitir requisitar determinada legislação especial.
Um dia, Eastman invadiu a sala do responsável pela disciplina de francês e exigiu a tutoria, porque determinado palestrante, um aclamado tradutor de Proust, admitiu não possuir um diploma em linguística. Acabou por ser levado pela polícia. Em 1977, ao ver-se preterido para uma promoção no Departamento do Tesouro, fez de tudo para se ir embora – mas não demitido, antes reformado por uma invalidez causada por stress.
Depois, passou a década seguinte, aparentemente, a tentar prejudicar a equipa que ficara. Mesmo que para isso tivesse de inventar razões. Um dos casos ocorreu quando um jovem líder da oposição chamado Paul Keating pediu ao governo que explicasse as alegações de suborno japonês “em relação a uma proposta de investimento estrangeiro”. O então ministro do Comércio Exterior, Doug Anthony, confirmou que uma “fonte australiana” lhe havia dito que uma empresa local, com laços com o governo, recebera 9 milhões de euros de uma empresa japonesa no ano anterior; O tesoureiro Phillip Lynch assegurou no Parlamento local que um “exame exaustivo de todas as propostas de investimento estrangeiro por empresas japonesas” não tinha descoberto qualquer sinal de corrupção. Claro, a fonte era Eastman.
Como não resultou, tentou socorrer-se da imprensa. Ao mesmo tempo, massacrava os serviços públicos agora a tentar revogar a tal reforma por invalidez, procurando provar a sua aptidão mental para voltar ao serviço público. Pelo meio, estrangulou “um burocrata que estava a obstruir os seus esforços” e ainda despejou um copo de sumo de laranja em cima de outro.
Descrito pela imprensa australiana como um agitador, movendo-se entre a denúncia e a guerrilha, quando uma das suas muitas ligações telefónicas para o gabinete do ministro da Justiça foi acidentalmente enviada ao próprio ministro, Eastman foi mesmo insultado.
Nada que lhe refreasse as maneiras. Ameaçou matar a senadora liberal Margaret Reid, o procurador-geral do Trabalho e até ameaçou o tal comissário assistente da Polícia Federal Australiana Colin Winchester. Foi então que as autoridades deixaram de desvalorizar aquilo que até então eram consideradas apenas travessuras inofensivas. Porque numa certa noite, a 10 de janeiro de 1989, Colin Winchester foi morto a tiro a pé de casa.
A batalha pela liberdade
Ainda hoje Winchester é considerado o polícia mais graduado a ter morrido assassinado na Austrália. Daí que Eastman, nas bocas do mundo por o ter ameaçado publicamente, facilmente se tenha visto acusado. Apesar de ter sempre declarado a sua inocência, até ao fim do inquérito, no final de 1991, no ano seguinte o processo foi reaberto e Eastman acusado de assassínio.
O julgamento foi longo e difícil e durante aqueles sete meses, ele enfureceu-se de tal forma que acabou a ser interrogado numa sala isolada do tribunal, e o depoimento transmitido por vídeo. Quando a linguagem se tornou demasiado obscena, a solução foi baixar o volume.
Eastman parecia sempre mais preocupado em sublinhar a ação da polícia do que em provar a sua inocência – e por variadíssimas vezes desconsiderou os seus conselhos, alegando que absolutamente incapazes. Os insultos ao juiz do julgamento não ficaram atrás. Digamos que era fácil não gostar (nada!) de David Eastman. Daí que a pena de prisão perpétua não tenha surpreendido.
Mas dado o seu reconhecido transtorno obsessivo, Eastman passou, obviamente, boa parte do tempo em que esteve preso a lutar contra a sua condenação. Apresentou recursos em 1999, 2000, 2001, 2005 e 2008. Todos foram recusados.
Até que, em 2014, lhe viu ser reconhecido o direito à liberdade, depois de um inquérito judicial ter determinado que Eastman fora vítima de “um erro substancial da justiça”, devido a falhas nas evidências policiais usadas em seu julgamento. No ano passado, novo julgamento confirmaria a decisão, que agora lhe valeu uma indemnização milionária – os tais 4,5 milhões de euros. Mas desta vez, Eastman não apareceu para dizer de sua justiça.