Até à última quarta-feira, Katherine Bouman era uma investigadora anónima. Mas pouco depois da revelação, por um grupo de cientistas financiados pela União Europeia, da inédita imagem de um buraco negro, a astrofísica, de 29 anos tinha o nome “estampado” nos órgãos de comunicação social de todo o mundo. Daí até se tornarem virais memes a tirar-lhe quase todo o mérito no desenvolvimento do algoritmo foi outro instante.
Tanto no Reddit como no Twitter, multiplicaram-se imagens a comparar o papel de Bouman com o de Andrew Chael, também membro do Event Horizon Telescope (EHT), uma rede à escala planetária de oito radiotelescópios. A avaliar pelas imagens, este último teria sido o verdadeiro responsável por “850 mil das 900 mil linhas de código que foram escritas no histórico algoritmo da imagem do buraco negro”. A implicação era clara: a astrofísica estava, simplesmente, a beneficiar do foco dos media nas mulheres, quando tinha sido um homem a fazer todo o trabalho.
Um dos tópicos no Reddit recebeu milhares de votos positivos e centenas de comentários, com muitos a criticar Bouman.
A reação de Chael, de 28 anos, não se fez esperar e, na quinta-feira, publicava uma série de tweets a agradecer as felicitações pelos resultados de um trabalho de vários anos, mas a sublinhar que não servia como meio para atacar a colega.
“Se estão a dar-me os parabéns porque querem uma vingança sexista contra Katie, por favor vão-se embora e reconsiderem as vossas prioridades na vida”, atira.
Em entrevista ao The Washington Post, Chael garantiu que não escreveu 850 mil linhas de código e esclareceu que é o autor, sim, de uma peça de uma parte do software que permitiu a fotografia histórica, que resultou do trabalho de uma vasta equipa de cientistas.
Além disso, sublinha Chael, “é irónico” ter sido o escolhido como arma contra Bouman, em representação do modelo clássico de homem caucasiano: o astrofísico, natural no Novo México, consta da lista de cientistas da comunidade LGBTQ nos campos da astronomia e astrofísica.
A própria Katherine Bouman, cuja expressão de alegria perante a imagem do buraco de negro correu mundo, facilitando a ideia de que foi a principal responsável pelo momento inédito, já realçou que “nenhum algoritmo ou pessoa criou esta imagem”. “Foi preciso o talento extraordinário de uma equipa de cientistas de todo o mundo e anos de trabalho árduo para desenvolver o instrumento, o processamento de dados, os métodos de imagem e as técnicas de análise que foram necessários para alcançar este feito que parecia impossível”, escreveu, no Facebook.
As observações do EHT foram feitas a partir de uma técnica conhecida como “interferometria de linha de base muito longa”, que sincroniza os diversos telescópios colocados em diferentes pontos do mundo e “explora a rotação” da Terra para formar “um enorme telescópio do tamanho da Terra”. A técnica permitiu à rede de oito radiotelescópios ter “a maior resolução angular alguma vez atingida”, conforme, explicaram, na altura, em comunicado, o Observatório Europeu do Sul e o EHT.
A presença de buracos negros, os objetos cósmicos mais extremos que foram previstos em 1915 pelo físico Albert Einstein na Teoria da Relatividade Geral, deforma o espaço-tempo e sobreaquece o material em seu redor. Até à fotografia divulgada esta semana, as imagens de um buraco negro eram meramente conceções artísticas.