Aconteceu outra vez, na Argentina. No início do ano, uma rapariga de 12 anos que tinha sido violada acabou por ser sujeita a uma cesariana, depois de não lhe ter sido autorizado o aborto a que tinha direito por lei. Agora, o cenário repetiu-se.
Violada pelo companheiro da avó, uma menina de 11 anos acabou por ser obrigada a levar a gravidez até ao fim, depois de pedir várias vezes aos médicos que lhe interrompessem a gestação. As autoridades da província de Tucumán, no noroeste da Argentina, ignoraram o pedido e, às 23 semanas de gravidez, a menina dava entrada no bloco operatório para fazer uma cesariana. Com 600 gramas à nascença, e probabilidades de sobrevivência mínimas, o bebé acabou por morrer.
Foi no final de janeiro que a menina chegou ao hospital. Acompanhada pela mãe, dizia apenas que lhe doía o estômago. Na realidade, estava na 19ª semana de gravidez. Pouco depois, Lúcia, como ficou conhecida, acabou por contar que o namorado da avó abusara dela.
Mãe e filha solicitaram a aplicação do artigo que, desde 1921, permite a interrupção legal da gravidez em casos de crianças violentadas ou quando há risco para a mãe. Podia ter sido feita em menos de 48 horas. Mas, segundo denunciaram vários grupos feministas, as autoridades da região atrasaram o mais possível a decisão até ao momento que a cesariana se tornou inevitável.
O secretário da Saúde de Tucumán, Gustavo Vigliocco, defendeu-se dizendo que, durante o processo, manteve a maior proximidade com a menina e a sua mãe – e que a rapariga tinha manifestado o desejo de continuar com a gravidez. “Avaliámos os riscos, mas ela tem uma estrutura grande e mais de 50 quilos”, justificou.
No entanto, a declaração judicial da menor, divulgada pelo Página 12, contradiz aquela afirmação. Segundo a psicóloga do hospital, a menina fora clara no seu desejo de fazer um aborto. “Quero que tirem isto que o velho colocou em mim”, dissera Lúcia, referindo-se ao companheiro da avó, a quem fora entregue por ordem de um juiz. Ironia das ironias, a mãe perdera a sua tutela em 2015 depois de o seu parceiro ter abusado das duas filhas mais velhas.
O desfecho da história acabou por ser provocado pela subida da tensão arterial e consequente risco de pré-eclampsia, quando a menina já ia nas 23 semanas de gestação.
“Lembro-me de entrar no quarto e deparar-me com uma criança a brincar com bonecas em cima da cama”, recorda Cecilia Ousset, a médica chamada para a operar. “Primeiro, recusei porque sou objetora de consciência. Mas depois decidi acompanhar o médico que avançou porque sabíamos que íamos encontrar algo que nos ia chocar muito”, explicou, citada pelo El País.”Naquele momento, era mais arriscado continuar com a gravidez do que fazer a cirurgia. Se não o fizéssemos, a menina morreria”, disse ainda aquela médica.
Estávamos a 26 de fevereiro. A menina passou o dia em jejum, recebendo apenas medicação para aumentar o crescimento e desenvolvimento do feto – informação que, soube-se depois, fora ocultada à mãe da criança. “Disseram-lhe que eram vitaminas”, denunciou a especialista da ONG que acompanhou o caso – e que tem estado na frente da luta pela mudança da lei, naquele país.
“Gravidez infantil forçada é violência. Os atos que levam à gravidez são profundamente traumáticos para uma criança e têm implicações ao longo da vida, tanto psicológicas quanto físicas. Antes de mais porque o seu corpo não está completamente desenvolvido para levar uma gravidez até ao fim”, sublinhou ainda Laura Jimenez, reconhecendo que a gravidez infantil forçada não é apenas um problema na Argentina, mas em toda a América Latina – segundo uma pesquisa do Comité da América Latina e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher, que abrange 14 países, os casos ascendem às dezenas de milhares. “Os governos precisam tomar medidas imediatas para proteger as meninas contra esse abuso sexual generalizado”, rematou Jimenez.
Lúcia, entretanto, já teve alta hospitalar. Mas o bebé, cumprindo as escassas probabilidades de sobrevivência, acabou por morrer. Não aguentou nem uma semana depois do parto.