O nome do ponto de encontro secreto do pequeno grupo de radicais de extrema-direita algures em Tempelhof, um bairro residencial de classe média longe do centro de Berlim, não podia ser mais simbólico: Preussen Quelle.
Para qualquer alemão, a palavra faz imediatamente soar campainhas de alarme politicamente incorreto, significa qualquer coisa como a “Fonte da Prússia”, a fazer entoar um certo orgulho nacional-imperialista supostamente perdido lá para trás no tempo.
Faltavam 20 minutos para as 18h de domingo, hora de fecho das urnas na Alemanha, e o discreto bar começava a encher de dirigentes e apoiantes da Alternative für Deutschland. Nada de cartazes, bandeiras ou algo à vista que identificasse o partido, apenas um pequeno crachá em meia dúzia de lapelas denunciava o que unia aquele grupo de cerca de 25 pessoas. A entrada estava, claro, reservada aos “amigos”, e só apelando ao nome de um deles foi possível entrar. Todos os que chegavam cumprimentavam-se alegremente à entrada com “passou-bens” confiantes.
O momento era de festa e todos já o antecipavam. A designada Alternativa para a Alemanha estaria prestes a conseguir um feito histórico pelo qual a extrema-direita aguardava desde o fim da Segunda Guerra Mundial: chegar ao parlamento alemão.
“O que é isto? Mas o que é que está a fazer aqui?!”, pergunta surpreendida Sabine Gollombeck, a candidata da AfD por Steglitz-Zehlendorf, um dos bairros de Berlim, reconhecendo à entrada a jornalista com quem se tinha cruzado no dia anterior numa ação de rua. Perante a justificação atirada algo a medo – um convite de um dos seus assessores -, abriu um inesperado sorriso de boas-vindas.
“Ah claro, entre, sente-se aqui comigo! Vamos beber algo.” Um paninho e uma vela ornamentam a mesa com aperitivos junto à televisão, onde dentro de momentos passariam as primeiras projeções dos resultados. Meia-luz, um tradicional balcão em madeira com canecas penduradas de vários tamanhos, máquinas de jogo dos anos 90 desligadas da corrente. O ambiente é estranhamente confortável, mesmo familiar. Não propriamente o que se imaginaria ser um “antro” da extrema-direita.
Sabine, 56 anos, senta-se numa cadeira, coloca uma manta amarela nos joelhos e manda vir um café, ao mesmo tempo que chama a atenção dos companheiros de causa para a “infiltrada”: “Hei, já viram quem está aqui!? A jornalista de ontem, a amiga do Wolfgang”. Ninguém diria que os jornalistas, sobretudo os dos meios de referência que criticam amplamente o partido, são normalmente personae non gratae entre os membros da AfD.
Bem vestida e bem maquilhada, pérolas nas orelhas e ao pescoço, Sabine é uma simpática e elegante mãe de família alemã, o casal de gémeos com 30 anos são o seu orgulho. “Sabe, foi por eles que me meti nisto. Nunca andei na política, sou funcionária pública, nunca pensei ver-me numa coisa destas. Mas tenho medo. Muito medo do futuro e tenho de fazer algo. Não posso deixar que a Alemanha fique entregue a esta gente”, diz, em alemão (inglês, nada), em tom de desabafo. “Esta gente” é uma expressão, neste contexto, com duplo sentido: a “Mutti” Merkel e os seus companheiros de coligação e os refugiados islâmicos, para a AfD os inimigos número um da ordem e sossego germânicos.
“É preciso distinguir migrantes e verdadeiros refugiados. Tenho muita pena deles, mas todos estes que entraram vão ter de sair do nosso país.” Faltavam 5 minutos para os resultados, e Sabine agita-se na cadeira. Começa a notar-se a ansiedade no grupo de cerca de 20 pessoas que fixavam os olhos na emissão televisiva.
OS PÁRIAS
Flashback. Sábado, dia 23. Por estranho que pareça, encontrar a AfD durante a campanha eleitoral é tudo menos tarefa fácil. Brevemente, o partido ocupará 94 lugares do Bundestag, mas toda a campanha, sobretudo nas grandes cidades, foi feita numa espécie de clandestinidade 4.0. À exceção dos raros eventos organizados pela direção central do partido, sempre muito restritos, as unidades locais espalhadas pelas “distritais” do país tiveram de fazer o seu melhor para lidar com a polarização nunca antes vista da sociedade alemã. Desde 2013, quando nasceu a Alternativa para a Alemanha, que desperta encantos de Messias e ódios violentos entre a população.
A solução encontrada pelos 26 mil militantes espalhados por toda a Alemanha (1300 em Berlim, a tomar por certas as informações dos próprios) foi usar o terreno fértil das redes sociais para promover o discurso nacionalista e populista antieuro, antirrefugiados, anti-imigrantes e anti-Islão. Encontros públicos só muito ocasionais, e sempre em versão pop-up, sem qualquer pré-aviso a não ser o passa-palavra ou porventura um post numa rede social minutos antes, para não serem recebidos com “desagradáveis” contramanifestações.
Na sede do estado de Berlim, nenhuma ajuda além de uma esquiva conversa off the record. E de nada serviram, pois, os telefonemas e os mails que enviámos para uma série de contactos a perguntar onde poderíamos encontrar ações do partido nos dias que antecederam a ida a votos, nem mesmo quando eram cidadãos alemães a fazer o pedido (afinal, os estrangeiros são uma espécie de inimigo).
“Deixe-se surpreender”, era a resposta misteriosa que invariavelmente chegava. Simpatizantes, nem vê-los: este é claramente um voto envergonhado que muito poucos confessam fazer, preferindo ocultar para fora do seu circuito mais íntimo que partilham de ideias tão politicamente incorretas. “Nós somos os párias da sociedade alemã. Mas isto tudo vai mudar, ah se vai!”, anunciava de forma ameaçadora Wolfgang Blum, abrindo bem os olhos azuis por detrás dos óculos na ponta do nariz.
Wolfgang, dirigente local da AfD fala len-ta-men-te, pronunciando sílaba a sílaba as palavras que quer enfatizar, sublinhando o fim de certas frases com um tom agudo de entusiasmo nervoso. Encontrei-o numa busca à deriva pelas ruas de Berlim de alguma coisa que pudesse indiciar a presença da AfD. O pequeno balcão desmontável, a bandeira e os balões azuis com o certo vermelho em forma de seta a apontar para o céu por um triz que não passaram despercebidos.
A mão cheia de militantes eram praticamente invisíveis quando comparados com a parafernália de campanha banda de música, carrinhos de gelados, grelhadores, guarda-sóis e ofertas de todo o tipo que os liberais da FDP ostentavam meia dúzia de quarteirões atrás, em Kirchstrasse.
Percebe-se rapidamente que Wolfgang não dispensa uma oportunidade para falar e, sobretudo, para se ouvir. Gosta de discutir as “forças escondidas para lá da superfície das coisas”. Afaga uma barba como a do Mefistófeles de Goethe e pousa as mãos em cima da barriga proeminente, enquanto explica tudo o que vai mal no mundo em geral e na Alemanha em particular.
“É preciso acabar com esta ideologia globalista e com o imperialismo 3.0 que nos está a esmagar”, enquadra. É assessor de Sabine na AfD e apresenta-se como professor de História e Geografia. “Esse senhor Obama, as Nações Unidas e o autodesignado Banco Mundial é que são os grandes culpados disto tudo. Angela Merkel é só uma marioneta nas mãos deles. Ela é uma escrava de um nível supremo”, resume. Sim, Wolfgang sabe como captar uma audiência.
Ali ao lado, o grupo a candidata sorridente, o senhor bem composto de blazer e a mulher com ar vagamente hippie, improvável de tão heterogéneo, desdobra-se em tentativas de abordar as pessoas que saem do supermercado. Vão parando alguns transeuntes para ouvir: um casal com ar modesto carregado de sacos, um homem com o neto pela mão, uma senhora com maquilhagem que carrega ainda mais as rugas das peles penduradas.
A maioria apressa-se em fingir que não os vê, quando não atira com comentários depreciativos.
Já lá vai quase uma hora de conversa ao frio e em pé, no meio da rua, mas nada que demova Wolfgang de fazer luz sobre a necessidades destas “forças malévolas” devolverem aos estados as suas competências nacionais “a qualquer custo”. Fala com entusiasmo professoral, mas pelo canto do olho deteta o insólito: uma família de muçulmanos que estava a passar recolhe balões com o símbolo da AfD.
Pareciam saídos de um satírico cartoon político do Die Zeit. “Está a ver: eles só querem pedir, pedir, pedir! Abocanham tudo o que veem pela frente!”, enerva-se. Wolfgang gosta de deambular por outras paragens retóricas mais abstratas, mas vê-se obrigado a descer à terra para falar do tema dos refugiados, tão caro ao partido.
Um milhão de sírios entrou na Alemanha em 2015 a convite de Angela Merkel, e eclodiu uma vaga de descontentamento entre os alemães muitos veem nisto o fator esmagador que catapultou a AfD para este sucesso eleitoral. Nem mesmo o argumento de que são jovens e qualificados, e que por isso fazem falta à economia alemã, o convence. “Isso é história! Nós não precisamos deles para nada. Nada! Temos os alemães para os nossos serviços e os robots para as nossas fábricas que já nos vêm roubar os lugares. Não fazem cá falta nenhuma!” Respira, baixa o tom, e continua. “E o pior é que acreditam que se consegue fazer uma civilização dos muçulmanos. Não! O que acontece é uma muçulmanização da Europa. E depois, os meninos na escola não podem comer salsichas porque aaaaah, e taaal, os rapazinhos muçulmanos não podem comer carne de porco. E se os pais alemães que querem que os filhos comam salsichas refilarem, ainda lhes tiram as crianças!!!”.
Não se deixa impressionar pelo epíteto neonazi. “Sabe, nazi é uma palavra muito eficiente na Alemanha. Afasta logo as pessoas. Sim, já tive vizinhos e supostos amigos a chamarem-me nazi. Eles não me conhecem? Eu não mordo! Eles não conseguem é ver tudo que está aqui em causa.” O discurso de Wolfgang é abafado pelos gritos de um rapaz que passa de bicicleta: “Sua gente de merda! Vocês são um perigo!” Prossegue, impávido, o raciocínio. “O Senhor ‘Gutierrez’, ele é o imperialista-mor. É ele quem está a manobrar toda a agenda. Mas não leva os refugiados lá para o vosso Portugal, vocês é que vão para África pedir ajuda aos países agora ricos. Isto é tudo uma farsa. E a União Europeia uma ‘EUCreatur’, uma junção das palavras democracia, ditadura e criatura artificial”. Mais de duas horas passaram desde que estamos a falar e Wolfgang não acusa o cansaço nem garganta seca: está entusiasmado com a perspetiva da vitória no dia seguinte que vai obrigar o mundo a abrir os olhos a esta visão alternativa.
Viro costas por cinco minutos para ir buscar um café ali ao lado. Quando regresso, nem rasto deles: todo o grupo tinha desaparecido. Wolfgang e o cenário AfD improvisado evaporaram-se pelo ar, como num truque de magia. Ainda bem que, momentos antes, tinha conseguido arrancar-lhe o telefone e o nome do local onde Wolfgang e os amigos se costumavam encontrar para os momentos de celebração. E era exatamente ali que queria estar na hora H do fecho das urnas para tentar perceber melhor quem são afinal estas pessoas.
Todos os especialistas com quem falei (da European Academy Berlin aos think tanks como o German Council for Foreign Relations, passando por técnicos em sondagens e em educação cívica), nesta visita de uma semana a convite do Ministério dos Negócios Estrangeiros alemão, tecem análises preocupadas sobre a AfD e seu novo papel no panorama democrático alemão. E todos concordam com o mesmo selo: trata-se de uma extrema–direita nacionalista com um discurso xenófobo e preconceituoso. “Alguns são mesmo neonazis, sim. Pensa-se que a sociedade alemã tenha uma propensão para cerca de 2% a 3% de pessoas que se identificam com esta ideologia, e estes votam AFD”, analisa Hennig Hoff, diretor-executivo do jornal daquele think tank. Sabe-se que o perfil do eleitor da AfD reúne gente muito diferente, mas no essencial alinha com os outros partidos nacionalistas internacionais: cidadãos mais velhos, de fracos rendimentos e baixa escolaridade, que discordam do rumo do país.
Mais a fundo poucos vão, e é isso que intriga. Quem são mesmo estas pessoas que mobilizaram tanta gente mais de 12% da população alemã e que na velha Alemanha de Leste conseguiram mesmo ir acima dos 22%, muito à frente do partido do centro SPD? Que pensam eles sobre o mundo? Como chegaram aqui? O que temem afinal, o que os move e o que os une? Nada melhor do que estar com eles na noite da sua grande vitória para descobrir.
NO EXTREMO OPOSTO
Domingo, 24, dia de eleições. Teclo Preussen Quelle no smartphone, carrego em “procurar”. Desbastando umas páginas do Google, chega a confirmação do que já esperava. E uma dor de cabeça acrescida: o bar está identificado no site da Antifa Berlin como um espaço onde membros AfD se costumam reunir. A Antifa é um grupo antifascista, conotado com uma extrema-esquerda anarquista, radical e violenta: foram eles que organizaram os protestos em Hamburgo contra os G20 e que incendiaram casas e carros, vandalizaram lojas e levaram quase centena e meia de pessoas para a prisão. “Vamos fazê-los sair da toca”, anuncia o grupo no site, prometendo luta. Na noite eleitoral, sobretudo se se confirmassem os piores cenários que as sondagens antecipavam, este seria um dos alvos fáceis do movimento que vê na AfD a encarnação de todos os males.
Na Rigaer Strasse, a rua onde os anarquistas se concentram e ocupam prédios inteiros desde o final dos anos 90, os sinais que anunciam a presença da Antifa estão por todo o lado. Já dos próprios, nem sombra. São duas da tarde, dia de eleições, e provavelmente ainda nem estão levantados.
Finalmente, um rapaz coberto de piercings e com um alargador de orelha que lhe chegava ao ombro sai com os três cães da “República de Anarquistas” no número 94. O “perfil-tipo” naquele prédio que se diz uma “zona antifascista”, como alerta o graffiti à entrada. “A AfD é um nojo. Um nojo de gente. Mas, na verdade, eles também são parte do sistema, são todos iguais. É por isso que nunca voto em nenhum deles”, atira-me, sem me dar mais conversa nem tão-pouco o nome. Cinco minutos depois, passa Rharwa At, 23 anos, simpática e bonita, de origens indianas que se advinham. Mora numa rua mais adiante, mas gosta de passar por ali. Tinha acabado de votar, e “ir votar é sempre o mais importante”.
“Neste caso, quaisquer uns são melhores do que a AfD. Eles são racistas, xenófobos, machistas. Tudo o que este país não precisa”, explica.
As suas razões alinham com as de Esrah Hreich e Abir Remmo, 20 e 19 anos, que tinha conhecido dois dias antes na festa de encerramento da SPD, onde Martin Schulz tentou animar as hostes à última hora com um desinspirado discurso. O véu de Esrah sobressaía no meio da multidão.
Ambas são de origem libanesa, as famílias originalmente da Palestina, mas já nasceram na Alemanha e podem votar. Contam que a comunidade muçulmana se mobilizou para apoiar a SPD, para ver se a AfD não chega ao Parlamento. “Temos muito medo desse cenário e de tudo o que eles representam”, confessam.
O DIA D
Domingo, 17h, falta uma hora para os resultados. Peço um táxi para chegar a Preussen Quelle. Plim, alerta de notificação no Facebook: era Wolfgang Blum a pedir “amizade” com uma fotografia de perfil a fitar-me com os olhos azuis pequenos e gelados.
Como me descobriu, eis a questão. Com certeza procurou pelo meu nome na rede social, por causa do endereço de Gmail que lhe dei. Se for esperto, consegue rapidamente traduzir os posts e perceber o tom crítico dos inúmeros textos de opinião que partilho em relação a este movimento de extrema-direita e a Trump. E, agora, vou ou não vou? Os meus amigos alemães desaconselham vivamente.
“Não é nada boa ideia, sobretudo sozinha. Essa gente é muito estranha. E eu não quereria lá estar se a Antifa decide aparecer eles estão só uns quarteirões acima.” Meto-me no carro, direção a Tempelhof.
Rapidamente me vejo sentada com Sabine numa sala iluminada a velas. Homens de meia-idade e blazer com as suas mulheres loiras, senhores mais velhos com lustrosos cabelos brancos. Apague-se da memória o imaginário neonazi das suásticas, das cabeças rapadas e das bandeiras. Nada disso. O mais agressivo que se encontra é uma t-shirt a dizer “Merkelmussweg”, ou a Merkel tem de sair.
18h00, as primeiras estimativas de resultado. Urros de contentamento. “Jawohl!” “Jetz geht’s loss!”, qualquer coisa como aqui vamos nós. As projeções davam 13,2% para a AfD, mas ninguém acreditava que iria parar por aqui. “Hoch geht das!”, antecipavam, isto ainda iria subir para os 15%. Sabine estava feliz, o marido eufórico finalmente a Alemanha seria devolvida aos alemães.
Saio de ao pé deles para poder apreciar melhor os jovens que faziam a festa na sala contígua. O líder não eleito do grupo era um rapaz moreno de casaco castanho antiquado, gola alta preta e cabelo impecavelmente cortado.
Segura de maneira formal as abas do blazer enquanto fala, ao mesmo tempo que se aproxima do interlocutor com ar grave e o fixa nos olhos. Tem apenas 25 anos, mas parece muito mais velho, diz que se chama Dejan “apelido não precisa, para que é que quer saber isso tudo?”. Sem grandes preliminares, começa a explicar-me o que o move. “Desde os 18 anos que percebi muito bem que vivemos num absoluto totalitarismo civilizado. Os deputados são eleitos mas ninguém pensa pela própria cabeça. Na hora de votar, são os partidos que mandam. E os partidos são todos iguais. Não se admite ninguém que pense diferente.” Ao seu lado, na mesa de pé alto, uma rapariga branca e loira de argola no nariz come uma sopa de cebola gordurosa e acena com a cabeça. Não é de grandes falas, mas esta tirada entusiasmou-a a mandar mais uma acha para a fogueira. “Este Bundestag parece a Coreia do Norte. O líder fala lá de cima e todos os outros batem palminhas”, ilustrando com as mãos o movimento. “Felizmente, hoje temos a net. E tudo o que se passou aqui era impossível sem a net”, continua Dejan.
Na tv, Merkel começa a falar. “Buuuh!”, ouve-se. Os cartazes com o slogan “voll mutiviert” falam de uma motivação da CDU a saber agora a derrota, e todos se riem da ironia. “Raus mit dir!”, gritam alto, anunciando que a querem ver pelas costas.
Entretanto, chega Wolfgang, esbaforido. O meu “amigo”. Traz a mesma roupa do dia anterior: um casaco roxo, uma camisola de lã com borbotos e um boné de retalhos. Qual seria a sua reação ao ver-me ali, agora que me tinha descoberto no Facebook? A melhor: “Então, por aqui, hein? Veio celebrar connosco. Muito bem, assim podemos falar mais um pouco. Até lhe trouxe um presente”, diz, oferecendo-me um cartaz “satírico” da AfD, provavelmente retirado da internet e impresso em papel de fotografia. Durante toda a campanha, foi esta a estratégia do partido: causar impacto com notícias falsas, “memes” agressivos e irónicos, cartazes e afirmações politicamente incorretas, que vendiam que nem pãezinhos quentes nas redes sociais e perduravam em ondas de choque nos meios de comunicação de referência durante dias. Publicidade gratuita que muito anima o estratega de marketing nacional, Thor Kunkle, que copiou o que se passa em todos os outros partidos populistas pelo mundo. Ele orgulha-se de ter recusado a Philipp Morris porque não fazia publicidade a tabaco, mas não vê nada de mal na linha política da AfD. Xenofobia e neonazismo são termos que recusa.
Wolfgang pede uma cerveja e parece manifestamente apostado em continuar a doutrinar-me, para ver se eu espalharia a palavra da boa nova em Portugal. Entra em despique com Dejan, que não gostou de se ver ultrapassado e começa a falar cada vez mais rápido, perdigotos pelo ar, indiferente ao facto de o meu alemão não ser nativo.
Dejan perde a corrida, Wolfgang toma a palavra novamente com mais um longo discurso carregado de teorias da conspiração globais. Sinto o estômago às voltas, preciso de sair. Já vi o suficiente e não me apetece ter um encontro imediato com a Antifa. Os receios não foram despropositados: no centro da cidade, à porta do local onde também se reuniu um grupo de dirigentes da AfD para celebrar, começava a formar-se uma barulhenta e potencialmente violenta demonstração com mais de 700 manifestantes liderados pelo grupo radical de esquerda.
O DIA SEGUINTE
20h, Alexanderplatz: Hora de falar Alexander Gauland, o cabeça de cartaz mais radical, embora ex-CDU. “Vamos caçá-los!”,”Wir jagen sie!”, grita eufórico com a conquista do Parlamento, em mais uma das suas tiradas estratégicas que sabe que vão perdurar na imprensa durante dias a fio. Ao seu lado, Alice Weidel, a contraditória companheira de proa, que trabalhou na Goldman Sachs, é casada com uma mulher do Sri Lanka, e segundo, a imprensa, empregou clandestinamente um refugiado sírio. Frauke Petri, a líder oficial do partido e aparentemente mais moderada, parecia eclipsada.
O dia seguinte acordou chuvoso e triste. “A Alemanha já não é a mesma”, ouvi. Na segunda-feira logo de manhã, Petri anunciou que não se juntaria ao grupo parlamentar da AfD no Bundestag, abrindo escassas 15 horas depois da vitória a primeira cisão pública no partido, sem mais explicações. Provavelmente, mais deputados entre a quase centena eleita juntar-se-ão a ela, demarcando-se de um tom cada vez mais radical de Gauland e companhia.
Nada que não se adivinhasse para quem acompanhou o fenómeno de perto: são tão diferentes entre si e nas suas ideias como o sombrio Wolfgang e a quase doce Sabine.