Os olhos tristes de Yevhenia Benda têm exatamente a mesma cor do lenço que lhe cobre os cabelos. Um verde água que contrasta com o papel de parede enegrecido da casa onde vive, em Zorin, uma aldeia perdida no meio dos bosques de Ivankiv, a cidade habitada mais próxima da Central Nuclear de Chernobyl. Em 1986, quando aconteceu o desastre, Yevhenia já vivia a escassos 50 quilómetros do local do acidente. Para esta babusya (avó, em ucraniano) de 77 anos, o acontecimento mais relevante daquele 26 de abril era o aniversário da neta, que completava dois anos. Juliia Shpak, hoje com 34 anos, escuta a avó com atenção e devolve-lhe um sorriso, sabendo-se protagonista da história. “Mesmo assim fizemos a festa, em nossa casa, naquele sábado. Afinal, era um dia de aniversário como os outros”, remata, baixando o olhar, envergonhada da ignorância da época. Um obscurantismo intencionalmente alimentado pela URSS.
Só ao final do dia 28 de abril a agência de notícias soviética, a TASS, daria conta de um acidente em Chernobyl, mas sem revelar a real gravidade do acontecimento. Algumas aldeias localizadas dentro do perímetro de 30 quilómetros à volta da central – a chamada zona de exclusão, onde viviam cerca de 115 mil pessoas – só seriam evacuadas uma semana depois. Todos os animais vivos foram, então, abatidos. Vinte dias após a tragédia, o Presidente da URSS naquela época, Mikhail Gorbachev, falaria finalmente ao povo. Chernobyl ficava na História como símbolo da decadência da União Soviética, que acabaria por implodir cinco anos depois, em 1991.
O silêncio opressivo força a viagem no tempo. A pilhagem impiedosa das últimas décadas deixou apenas móveis revirados, carrinhos de compras ferrugentos e alguns objetos que lembram todas as histórias da História que ficam por contar. Sapatos perdidos, um bloco de notas, uma boneca semidestruída… As paredes dos edifícios de apartamentos, com dez andares, confundem-se com o céu cinzento. Portas e janelas estão camufladas pela natureza que toma o espaço abandonado como seu. Pripyat, outrora exemplo da modernidade da URSS, albergava muitos dos trabalhadores qualificados da central, e também as suas famílias, orgulhando-se de ser uma das cidades mais jovens da Ucrânia, com uma média de idades abaixo dos 30 anos. Agora, alberga apenas os fantasmas de todas as vidas subitamente desestabilizadas pelo acidente de Chernobyl. Uma espécie de cinecittà do horror. Quase cinquenta mil pessoas foram evacuadas desta cidade, localizada a apenas cinco quilómetros da central, 36 horas depois do desastre. Quase cinquenta mil pessoas a quem foi dito para levarem apenas o essencial porque regressariam a casa dentro de dois ou três dias. Ninguém voltou.
Passavam 23 minutos da uma da manhã quando uma série de explosões destruiu o reator nº 4 da Central Nuclear de Chernobyl na madrugada de 26 de abril de 1986. Um teste de resistência correu extraordinariamente mal. O reator esteve em chamas até 10 de maio. Durante quinze dias terão sido libertados 50MCi (megacuries) de combustível nuclear na atmosfera, o equivalente a várias bombas de Hiroxima e Nagasáqui. Os três países mais afetados pela pluma radioativa seriam a Bielorrússia, a Ucrânia e a Rússia. “Acontecimento monstro”, chama-lhe a Prémio Nobel da Literatura de 2015, a bielorrussa Svetlana Alexievich, no livro que recupera as memórias das testemunhas do acidente, Vozes de Chernobyl (Elsinone, 2016).
Turismo radioativo
A roda gigante mais triste do mundo está em Pripyat. Não chegou a ser inaugurada devido ao acidente. O parque de diversões – onde não faltam carrinhos de choque enferrujados – é o ex-libris das viagens turísticas, que oferecem (ou melhor, vendem) as emoções de uma visita à Zona de Exclusão. Num dia frio de novembro, duas dezenas de pessoas deambulam pelo parque de máquina fotográfica em riste. Na altura do acidente, a radiação em Pripyat chegou aos 500 000 microsieverts, mas atualmente ronda os 0,62 microsieverts por hora, o dobro da radiação habitual numa cidade como Londres, o que a torna segura para visitas de curta duração. É isso mesmo que indicam as brochuras distribuídas à chegada ao primeiro check-point – controlado por militares – que permite a entrada no perímetro de 30 quilómetros à volta da central. O segundo check-point fica a 10 quilómetros do reator. As autorizações são requisitadas com semanas de antecedência e é indispensável mostrar o passaporte. Os preços dos tours variam entre os €20 e os €300 por pessoa. É proibido entrar nos edifícios ou tocar em alguma coisa, mas as indicações não são cumpridas à risca.
Yevgen Goncharenko, 44 anos, é guia em Chernobyl há uma dúzia de anos. Um pi-pi-pi permanente ressoa do dosímetro de radiação que traz ao pescoço. “Em 2016, estiveram cá 25 mil pessoas mas, em 2017, ultrapassámos as 30 mil”, garante. “Antes vinham sobretudo cientistas e jornalistas, agora, 80% são visitantes”, contabiliza, antes de explicar que não gosta de chamar aos seus clientes turistas, antes “visitantes” curiosos pela História. “Vir à Zona de Exclusão é como visitar um museu da União Soviética.” Aliás, é aqui que está aquela que será “a última estátua de Lenine na Ucrânia” – nos últimos dois anos foram retirados mais de 1 300 monumentos do líder soviético do país. Mas também há quem venha em busca das emoções do cenário que inspirou um dos níveis do videojogo Call of Duty.
Atualmente, a central tem cerca de 1 500 funcionários. Algumas centenas de trabalhadores ucranianos pernoitam na cidade abandonada de Chernobyl – onde há 30 anos viviam 14 mil pessoas. Devido à radiação, passam quinze dias seguidos na zona e outros quinze fora.
À medida que a carrinha turística se aproxima da central, uma montanha reluzente começa a desenhar-se no horizonte. A cúpula prateada do Novo Confinamento Seguro, o arco de 1,5 mil milhões de euros que cobre o reator nº 4, reflete o tímido sol de inverno. O Banco Europeu para a Reconstrução e Desenvolvimento (EBRD) geriu e cofinanciou o projeto com as contribuições de 45 países. O diretor de segurança nuclear da instituição, Vince Novak, garante que “a primeira mudança depois da instalação do novo sarcófago foi a descida da radiação no local para metade”. A próxima tarefa é o desmantelamento das partes mais instáveis do antigo sarcófago, mas serão necessárias várias décadas até começar a remoção dos materiais combustíveis. Questiona-se se o governo ucraniano terá capacidade para liderar o processo depois de o EBRD terminar a sua missão, ainda este ano. “Acredito que existe capacidade de financiamento para garantir o pleno funcionamento da estrutura, que já teve um custo de 2,5 mil milhões de euros. O governo ucraniano está numa boa posição para operar as instalações”, defende Vince Novak. A central nuclear deixou de produzir energia em 2000, depois de insistente pressão europeia, mas o desmantelamento dos três reatores não acidentados em 1986 só deverá estar concluído em 2065. Quanto ao do nº 4, é impossível prever uma data.
À saída da Zona de Exclusão é obrigatório passar pelo controlo de radiação nos dois check-points existentes. Máquinas de fabrico soviético com aspeto rudimentar, uma espécie de cabinas telefónicas sem as paredes laterais, fazem medições depois de colocadas as mãos e os pés em sensores. Se tudo correr bem, uma luz amarela ilumina a palavra chisto (limpo). Caso não corra bem, é necessário detetar se a radioatividade está na pele ou na roupa, o que pode ser facilmente descontaminado, ou em qualquer objeto retirado ilegalmente do local. Mas, há 32 anos, as medições chegaram demasiado tarde para muitos.
Feridos de morte
Quatro dias depois das explosões, no primeiro de maio de 1986, foi entregue uma missão a Oleksander Martynenko. Como era motorista de camião, tinha de transportar comida para os trabalhadores que permaneciam na central. “Ninguém me explicou mais nada, nem uma máscara levava, e o camião ia para onde fosse preciso”, recorda Sasha, como é conhecido, agora com 68 anos. Além de comida, levava vodka, ajudava-os a aguentar a tragédia. “Naquela altura, era autorizado trabalhar e conduzir bêbedo na Zona de Exclusão. Parece mentira, mas o governo recomendava beber vodka para eliminar a radiação”, ridiculariza. Sasha, tal como todos aqueles que foram chamados a ajudar na gestão imediata dos efeitos do desastre nuclear, foi um likvidator (liquidador). Estima-se que 600 mil pessoas, entre bombeiros, militares, engenheiros, médicos ou voluntários, tenham sido mobilizadas. Foram os liquidadores que construíram à pressa o sarcófago agora coberto pelo Novo Confinamento Seguro. Heróis forçados – desconheciam as altas doses de radiação a que estavam sujeitos – muitos seriam, mais tarde, medalhados pelo governo. Os liquidadores estão entre as principais vítimas dos efeitos da radiação. “Dos que conduziam os autocarros de evacuação, apenas dois terços estão vivos. Só na minha rua morreram dois”, contabiliza Sasha, residente em Ivankiv, cidade que nunca chegou a ser evacuada.
Cerca de trinta pessoas morreram nos três meses seguintes ao acidente, devido à exposição aguda à radiação. A Organização Mundial de Saúde (OMS), estima um total de 4 mil mortes ao longo do tempo, entre trabalhadores de emergência, população evacuada e residentes em zonas contaminadas. Números controversos, já que a organização Médicos Internacionais pela Prevenção da Guerra Nuclear (Nobel da Paz em 1985) defende que mais de 100 mil liquidadores morreram nos 20 anos seguintes ao acidente devido à radiação. Enquanto a Greenpeace situa o potencial número de mortos nos 90 mil. Além dos liquidadores, entre as principais vítimas estão as crianças, hoje adultos que procuram lidar com o trauma que lhes interrompeu a infância. E sobreviver-lhe.
Naquele sábado, Serhii Osypenko foi inesperadamente chamado ao trabalho na central nuclear. Havia um incêndio no reator nº 4, mas isso em nada o esclarecia sobre o que realmente se passava. Foi com a roupa que tinha no corpo e levou o seu automóvel. “Trabalhávamos quase 24 horas por dia, os helicópteros atiravam areia para cima do sítio do acidente e nós alisávamos cá em baixo”, recorda, aos 56 anos. O automóvel que o levava de casa, em Ivankiv, para a central, era o mesmo no qual transportava a mulher e a filha de 9 meses. Ao fim de um mês, o veículo foi-lhe retirado devido à elevada radiação que emanava. Hoje, recorda a história com amargura à mesa da sala de jantar de sua casa, com um copo de licor à frente, além de um sortido de bombons da marca mais popular do país, a Roshen, propriedade do atual presidente da Ucrânia, Petro Poroshenko. Serhii acredita que o seu velho automóvel Lada ajuda a explicar o “pesadelo” do presente. A filha de 32 anos sofre de cancro da tiroide e da mama. “Não tenho dúvidas de que a minha doença está relacionada com a radiação”, afirma Iryna Osypenko, mais uma das crianças que cresceu a fazer desenhos do reator em chamas.
Uma das principais consequências do acidente foi o aumento da incidência de cancro da tiroide entre a população afetada, sobretudo no grupo daqueles que eram menores de idade na altura da catástrofe. Há dez anos, o comité das Nações Unidas responsável pelo estudo das consequências da radiação, o UNSCEAR, estimava em quase 7 mil o número de casos de cancro na tiroide entre os menores de 18 anos – com uma taxa de sobrevivência a rondar os 99% – provocados pela elevada exposição à radiação. Uma forma de diminuir as consequências da inalação de iodo radioativo (que se acumula na tiroide) é a distribuição de pastilhas de iodo saudável. Em Chernobyl, as pastilhas foram distribuídas semanas depois do acidente. Demasiado tarde.
Eleita presidente da Câmara de Ivankiv há um ano, Tetiana Svyrydenko, 49 anos, nunca pensou em sair da sua cidade. “Ninguém me esperava em mais lugar nenhum.” Vivem ali 11 mil pessoas e as 25 escolas do município somam quase três mil alunos. Não há fábricas na região. O desemprego é um problema. E a má publicidade da área dificulta o comércio de produtos agrícolas. A autarca garante que as análises ao solo revelam que os campos de Ivankiv não estão contaminados, mas preocupam-na os relatos de pessoas que vão colher cogumelos dentro da Zona de Exclusão – um raio de 30 quilómetros fora da sua jurisdição. Os cogumelos absorvem a radiação dos solos, mas não é essa a principal preocupação da população, explica Inna Sheremet, 50 anos, assistente social do Centro de Apoio Social e Psicológico Doviria, que ajuda os residentes das zonas contaminadas: “As pessoas sabem do perigo, mas vão morrer de fome? Não. Apanham os cogumelos, comem-nos e vendem-nos. E eu também os compro”.
Ausrele Kesminiene, 62 anos, investigadora convidada da Agência Internacional para a Investigação do Cancro, um organismo da OMS, explica que “se as pessoas comerem cogumelos com baixa contaminação, de vez em quando, provavelmente não terão problemas de saúde”, mas defende a importância de os consumidores terem meios para medirem a radiação dos alimentos, evitando a especulação. “Se as pessoas sentirem permanentemente a ameaça da radioatividade, isso prejudica a sua saúde mental”. A cientista lamenta que as consequências psicológicas do acidente nuclear sejam desvalorizadas: “Quando falamos de pessoas que ficaram com stresse pós-traumático, stresse crónico ou problemas de ansiedade e depressão, estamos a falar de verdadeiras consequências para a saúde que acabam por ser somatizadas.” Entre as vítimas dos efeitos psicológicos do acidente estarão as cerca de 350 mil pessoas deslocadas de suas casas. Mas houve quem não aceitasse deixar tudo para trás.
Imediatamente a seguir ao acidente, cerca de mil residentes idosos contrariaram as autoridades e regressaram ilegalmente ao território da Zona de Exclusão. Chamam-lhes samosely. Atualmente, restam cerca de uma centena, a maioria com mais de 80 anos.
Nos bosques vizinhos da central, o efeito nefasto da radiação desceu para um quarto da registada na altura do acidente. Atualmente, o nível médio é de 100 microsieverts por hora, comparável à exposição a que um passageiro está sujeito durante um voo transatlântico. É legal vender madeira dali desde 2004, na condição de passar os testes radiológicos mas, em 2016, a organização ucraniana Stop Corruption denunciava ao jornal The New York Times o tráfico ilegal de madeira da Zona. A Ucrânia ocupa o 131.º lugar (em 176 países) no índice da perceção de corrupção da organização Transparência Internacional.
O Investigador do Instituto Superior Técnico Mário Reis, 54 anos, explica que “a madeira da Zona pode estar, de facto, contaminada e, se for usada para aquecimento, liberta radionuclídeos na atmosfera que ainda hoje podem ser perigosos.” O especialista doutorado em Física dá um exemplo: “O césio-137 tem um período de semidesintegração de trinta anos, ao fim desse tempo tem metade da atividade, e só passados 300 anos terá um milionésimo da atividade inicial.”
Guerras sem fim
Os Voloshchuk vivem numa casa de piso térreo rodeada de galinhas, duas vacas e um cavalo, numa aldeia de Ivankiv. Também têm a sua própria horta. “Aqui é impossível sobreviver sem cultivar alguma coisa”, garante Oleksander, 33 anos. Preocupa-o que os filhos, de 9 e 5 anos, possam comer alguma refeição contaminada, mas a mulher, Oksana, 33 anos, confessa que não é esse o motivo da atual inquietação da família. “Estamos mais preocupados com a guerra em Lugansk”, revela. As forças do governo ucraniano combatem separatistas pró-russos em Donetsk e Lugansk desde 2014. O marido, vigilante de profissão, foi requisitado para o exército e só regressou da frente em 2016, mas pode ser obrigado a voltar para lá a qualquer momento. O seu ar doce e afável contrasta com o camuflado que traz vestido. “A informação não chega à Europa, mas todos os dias morrem pessoas”, garante o militar, dando voz a uma reclamação recorrente entre os ucranianos.
No final de 2017, o exército ucraniano e a forças rebeldes realizaram a maior troca de prisioneiros desde o início do confronto: envolveu mais de 300 pessoas. Este é um dos poucos princípios do Acordo de Minsk – o cessar-fogo assinado em 2015 – que tem vindo a ser respeitado. Apesar da baixa intensidade do conflito desde o início do ano passado, as tréguas são quebradas quase diariamente. A guerra já causou mais de 10 mil mortos e desalojou milhões de pessoas. Em dezembro, o Departamento de Estado dos EUA anunciou que o país vai vender armamento “de natureza defensiva” aos ucranianos. O nacionalismo está ao rubro, as cores da Ucrânia veem-se por todo o lado e, nas lojas e mercados, nunca faltam rolos de papel higiénico com a cara do Presidente russo, Vladimir Putin. Na semana passada, o parlamento ucraniano aprovou uma lei que classifica o conflito como “ocupação temporária russa”, levando o Kremlin a acusar Kiev de se estar a preparar para “uma nova batalha”.
Em Ivankiv, foram mobilizadas 340 pessoas. Vitalii Konowenko, 39 anos, faz parte da unidade 72, também conhecida como unidade negra, e tem ajudado a angariar voluntários. Não vê fim à vista. “Antigamente havia guerras de cem anos e, com os russos, pode voltar a haver.” Inna Sheremet, a assistente social do centro social Doviria, tem uma explicação simples: “Os russos sabem que, enquanto estivermos em guerra, não entramos na União Europeia e, por isso, este confronto vai prolongar-se.” Tal como a luta contra o inimigo invisível que assombra Chernobyl.