A comparação pode parecer estranha, mas o que está aqui em causa é a interpretação e o tempo em que ambas foram escritas – até porque uma é canção e outra a “mãe” de todas as leis.
Ponto 1 – A Portuguesa. O nosso hino nacional, composto em 1890 por Alfredo Keil a partir de uma letra de Henrique Lopes Mendonça, tem, na segunda metade, as seguintes frases: “Às armas, às armas! / Sobre a terra, sobre o mar, / Às armas, às armas! / Pela Pátria lutar! / Contra os canhões marchar, marchar!”
Isto não é um apelo nacional para que as pessoas comprem armas. Teve, sim, a ver com a altura em que foi escrita. A canção apareceu como resposta ao ultimato inglês para que as nossas tropas batessem em retirada da zona compreendida entre as, então, colónias de Moçambique e Angola (local onde são os atuais Zimbabué e Zâmbia).
Ponto 2 – A 2ª Emenda da Constituição dos EUA diz o seguinte: “Sendo necessária à segurança de um Estado livre a existência de uma milícia bem organizada, o direito do povo de possuir e usar armas não poderá ser infringido.” (No original: “A well regulated Militia, being necessary to the security of a free State, the right of the people to keep and bear Arms, shall not be infringed.”)
A questão é se estas palavras devem ser interpretadas no contexto atual, dando direito aos cidadãos o direito de terem armas, ou se deve lida à luz do tempo em que foi escrita, em 1791.
As opiniões dividem-se. E, uma semana depois da carnificina numa escola secundária na Florida que vitimou 17 pessoas – um antigo aluno entrou recinto adentro e disparou em todas as direções – as discussão à volta das armas nos EUA voltou à agenda norte-americana.
Na quinta-feira, o presidente Donald Trump, reuniu na Casa Branca, alunos, pais e professores da escola da Florida e, também, familiares de vítimas de outros massacres iguais.
Trump anunciou que está a pensar numa proposta para fornecer armas de fogo aos professores como medida para prevenir tiroteios em escolas. Os presentes ficaram divididos. Um pai que perdeu a filha num ataque, em 2012, disse, frente-a-frente com Trump que “de todas as responsabilidades que os professores já têm, matar pessoas não deveria ser uma delas”.
Quando se sabe que a NRA (Associação Nacional de Armas) é um dos maiores financiadores das campanhas eleitorais americanas e tem um dos mais poderosos lobbies junto da Casa Branca, o seu líder, Wayne LaPierre, falou, finalmente. “Para parar uma pessoa má com uma arma é preciso uma pessoa boa com uma arma”. E acrescentou: “As elites não se preocupam com o sistema de ensino americano nem com as crianças. O seu objetivo é eliminar a 2ª Emenda e as nossas liberdades em relação às armas, para que possam erradicar todas as liberdades individuais”.
Vamos, então, à 2ª Emenda. No séc. XIX, os tribunais americanos começaram a dar diferentes interpretações ao texto e, nos tempos que correm, estas palavras são discutidas entre investigadores académicos, juristas e políticos. Isto deve-se ao facto de tentar perceber se o direito de ter armas é um direito de qualquer cidadão ou se estará limitado apenas à milícias (que mais não são, segundo a interpretação de muitos, os atuais exércitos nacionais). Pois, no tempo da Revolução Americana, as milícias eram grupos de homens que protegiam as suas aldeias e cidades, como se de uma instituição estatal se tratasse.
Já a expressão”bem organizada”, no séc. XVIII, queria dizer “bem-disciplinada”, não “regulada” ou “regulamentada” no sentido que usamos nos dias de hoje, explicam Jeffrey Rosen e Jack Rakove, dois especialistas na Constituição dos EUA, à CNN.
E, neste contexto, o que é que quer dizer “povo” (“people” pode significar povo ou pessoa)?
“Quando se diz pessoas, quer dizer-se pessoas individuais”, diz Rakove. “Mas, se formos ao artigo I, secção 2 da Constituição, diz-se que a Câmara dos Deputados será escolhida pelas pessoas – quem são, então, as pessoas? Quem tem direito a votar? Pode-se usar o termo “pessoas” para falar de uma massa coletiva, mas existem algumas pessoas que podem ser excluídas”.
Recorde-se que, quando a Constituição foi escrita, os escravos eram considerados propriedade dos seus donos e as mulheres não podiam votar. No entanto, dizem, o consenso legal é que a 2ª Emenda se aplica aos direitos individuais, dentro daquilo que são os regulamentos razoáveis.