Se a América odeia a Califórnia, com as suas praias vaporosas, saladas biológicas e celebridades, há uma parte dos californianos que nutre o mesmo sentimento. A eleição de Donald Trump, profundamente impopular no Estado dourado, tornou evidente as diferenças entre as duas Américas: uma progressista, multicultural, ambientalista, a outra conservadora, zangada, afetada pela globalização. A perspetiva de oito anos de Trump não esteve na génese do movimento Yes California, mas é o motivo pelo qual está a ganhar força. A intenção é a independência total. Calexit. O Estado tem pujança para isso: é a sexta maior economia do mundo e a que mais contribui para o PIB dos EUA. Tem um território massivo, com recursos naturais ricos, e 38,8 milhões de habitantes.
O caminho legal é confuso, porque a Constituição classifica a União como perpétua e indissolúvel. A campanha tem de recolher 585 407 mil assinaturas até 25 de julho, para introduzir a questão nos boletins de voto de 2018, quando os californianos elegerem o novo governador. Se vencer, segue-se um referendo sobre a secessão em março de 2019. Aí precisa de uma emenda à Constituição, aprovada por dois terços da Casa dos Representantes e do Senado e depois por 38 dos 50 estados. Outra solução é convocar uma convenção dos Estados e conseguir a aprovação de dois terços. A VISÃO foi à procura do líder do movimento Louis J. Marinelli, um professor de Inglês de 30 anos, para perceber os fundamentos e objetivos da secessão.
Como surgiu a plataforma?
Não é resultado direto das eleições presidenciais, embora o apoio tenha disparado por causa disso. Houve um desejo de independência da Califórnia em 2004, quando George W. Bush foi reeleito. Envolvi-me em 2014, quando começámos esta campanha, depois de perceber que o sistema federal está avariado e é disfuncional. Há um bloqueio tão grande em Washington que nenhum progresso pode ser feito. Para mim, o problema pessoal foi a necessidade de uma reforma alargada da imigração. A minha mulher é imigrante e tivemos de navegar pelo sistema, foi difícil, caro e ainda não conseguimos obter um estatuto legal para que ela viva nos EUA.
Porquê?
Ela está “fora de estatuto”. É difícil passar para estatuto legal uma vez estando fora. Se deixar o país poderá ser-lhe barrada a reentrada por dez anos. Estávamos à espera que a reforma da imigração fosse aprovada em 2014, mas isso não aconteceu, porque o partido maioritário na Casa dos Representantes, o Republicano, recusou pôr a reforma a votação. Foi uma consciencialização simbólica de que o sistema está avariado. Ao mesmo tempo que isso acontecia em Washington, a Califórnia fazia o oposto, abraçando a população imigrante – coisas como a AB60, que permite aos imigrantes sem documentação obterem cartas de condução. De um lado temos a retórica anti-imigração e a incapacidade de aprovar reformas, e do outro temos a Califórnia com um governo que faz o que pode para ajudar imigrantes. Foi o que me levou a mudar a lealdade de Washington para Sacramento.
Então esta campanha é uma questão pessoal?
É pessoal para todos. Para mim é a imigração, para outros pode ser o muro no México, alterações climáticas.
O Texas tentou a secessão e falhou. Quais são as possibilidades de a Califórnia conseguir?
Só porque os texanos falharam não quer dizer que os californianos não consigam. O Texas tem um processo diferente. Nós podemos colocar a questão diretamente aos eleitores se conseguirmos as assinaturas suficientes. Eles não têm essa oportunidade no Texas; talvez já tivessem votado nisto há anos se fosse possível. O processo deles tem de passar pelo braço legislativo do governo, o que é um obstáculo adicional. Nós achamos que é muito realista. O nosso objetivo é colocar a questão no boletim de voto e deixar as pessoas votarem. O que acontece depois disso será outra questão, que tem a ver com o processo de negociação entre os EUA e a Califórnia, qual o tipo de convenção.
O que dizem as sondagens?
Muita gente está a olhar novamente para a independência agora que Donald Trump foi eleito, porque ele está a seguir políticas que terão impacto nas suas vidas, nos seus bolsos, no orgulho pelo seu país. Um grande número dos nossos apoiantes diz que está motivado diretamente pela eleição de Donald Trump, mas uma porção disse que se juntaria à campanha se Hillary tivesse ganho. Trump é um homem que se vai embora dentro de quatro ou oito anos. O problema está nas pessoas que o elegeram; elas não vão desaparecer em quatro anos. Esse tipo de pessoas, com a mentalidade e caráter que elege Donald Trump em 2016, vai eleger quem em 2020 ou 2024? Isto é sobre o estado da política neste país, que está de tal forma que uma pessoa como ele conseguiu ser eleita. Estamos a tentar desafiar o status quo ao abrir um novo caminho para a Califórnia como país independente.
Trump ameaçou cortar os fundos federais se a Califórnia mantivesse cidades santuário para imigrantes. Como é que haverá boa vontade nas negociações?Poderá haver uma guerra?
Não vamos fazer nada que possa causar uma guerra. No entanto, não seria a primeira vez na história que os americanos invadiam a Califórnia.
Que pertencia ao México.
Sim. Vamos expressar de forma pacífica, em boletins de voto, o nosso desejo de ser independentes ou de continuar na União. Se a América é um país tão grandioso que toda a gente quer fazer parte dele, então votem “não.” Pode ser uma excelente manobra de relações públicas para os EUA, se as pessoas votarem para ficar. É uma expressão de autodeterminação e democracia. Se isto é o país mais livre do mundo, porque não? Se tivermos uma votação em que as pessoas dizem que querem a independência e depois a América diz que não deixa, como é que vão à África e Médio Oriente falar de liberdade e direitos civis? Será hipócrita. Se o exército entrasse aqui e toda a gente pusesse isso no YouTube, o que é que acontecia? Não vai haver uma Praça de Tiananmen nos EUA.
O contra-argumento é de que a Califórnia não está sob uma ditadura. O resto da América poderá olhar para isto como sobranceria da elite costeira.
Temos uma campanha que apela a diversas ideologias, conservadoras e liberais. Não temos uma ditadura nos EUA, mas também não temos um sistema justo de impostos representativos, o que foi o motivo que levou à guerra revolucionária. Pagamos mais impostos ao sistema federal do que recebemos. Não temos suficiente representação em Washington. Se tivéssemos, talvez não fossemos explorados: perdemos 70 mil milhões de dólares em impostos por ano a subsidiar os outros estados e a agenda do país. Se tivéssemos a representação que merecemos com base na nossa população, poderíamos proteger-nos. Também nos falta voz no governo. Quase dois terços da Califórnia votou numa candidata e o outro ganhou apesar de perder o voto popular. Também ocorreu em 2000 com Bush. Se olhar para o Colégio Eleitoral, a última vez que os votos da Califórnia tiveram impacto numa eleição presidencial foi em 1876. A Califórnia é um estado Democrata. A maioria tem valores progressistas e merecemos poder governar-nos de acordo com eles. Trump vai nomear juízes que vão sentar-se nos tribunais por décadas e bloquear a legislação que aprovarmos. A única forma de sair disso é um divórcio político.
Seria satisfatório se em vez de secessão este movimento levasse a uma reforma?
Estaríamos abertos a reformas se elas pudessem acontecer. Mas há demasiado bloqueio, animosidade e desconfiança entre as fações. As pessoas têm tentado reformar o sistema, conseguir direitos para as mulheres e comunidade LGBT. Foi feito muito progresso, mas ainda não temos igualdade para toda a gente nos EUA, embora este seja o país mais democrático do mundo. Esta é uma estratégia diferente, que oferece mudança real.
Quantas pessoas estão a trabalhar na campanha?
Temos 40 mil seguidores no Facebook, 21 mil no Twitter, 8 mil voluntários, 160 mil na nossa lista de apoiantes, mais de mil que dão donativos. Há muito apoio, não temos é tamanho e capacidade de lidar com ele. O conselho tem seis membros e gere as coisas ao nível macro. Depois temos 42 capítulos locais em todo o estado. Nós damos materiais, apoio e financiamento. Precisamos que os políticos percebam que a campanha está a crescer e devem apoiá-la. Em novembro, as sondagens diziam que o apoio estava entre 22% e 23%, no início de janeiro era 27% e no final a Reuters já dava 32%. À medida que Trump continua a ir atrás dos muçulmanos, o muro no México e deportação de imigrantes, separando famílias, esse número vai crescer. Não temos de chegar a 100%, precisamos de uma maioria. Temos de crescer 20 pontos percentuais.
Já conversaram com políticos do Estado?
Contactámos vários legisladores. Dana Rohrabacher, congressista de Huntington Beach, apoia a ideia de haver uma votação. Evan Low, da Bay Area, disse que iria analisar a adição de um artigo para a secessão, e várias celebridades expressaram apoio ao Calexit. Se tivermos apoio político e financeiro, isto pode levantar voo. É uma organização de base popular, comunitária. Eu sou professor de Inglês, não sou um político rico e influente. O Marcus [Ruiz Evans, outro fundador] é analista de dados. Imagine-se se tivéssemos pessoas com influência por trás disto.
Qual é o vosso orçamento?
Tentamos gastar entre dois mil a três mil dólares por mês. Não temos milhões de dólares e não podemos pagar a pessoas para recolher assinaturas, só voluntários.
Em que contexto surge a embaixada do Yes California na Rússia?
Estou a dar aulas de Inglês na Rússia, até junho. Abrimos uma embaixada a partir de uma ideia que foi proposta por Nora Campos, membro da assembleia da Califórnia, de abrir uma embaixada em Washington D.C. para representar o Estado. Quando eu estava na Rússia, tivemos a oportunidade de abrir um escritório, onde podemos promover a cultura e negócios do Estado. Não serve qualquer propósito diplomático, não conduz negociações nem encontros governamentais. Quero que as pessoas saibam que não sou um espião misterioso. Não temos nada a esconder.
Se tivessem fundos, abririam embaixadas noutros países? Por exemplo, junto da UE?
Sim. Estamos em vias de abrir uma embaixada semelhante à de Moscovo na Alemanha e na Itália, e há a possibilidade de ter uma na Austrália. Na Rússia, temos dois projetos a decorrer. Um é a Rádio Califórnia, uma emissão de notícias e conversas em inglês. E vamos fazer uma exposição a 27 de fevereiro sobre os direitos humanos e civis que a Califórnia ajudou a progredir. É uma plataforma para promover os nossos valores, e trata-se de um bom país para fazer isso porque a Rússia tem progresso a fazer no que toca a direitos civis.
Isto é um planeta. Somos todos seres humanos, não devíamos ter tanta dificuldade em viajar entre linhas imaginárias. Claro que precisamos de fronteiras e de regular quem entra nos países. Mas as famílias não deviam ser separadas por linhas e muros.